Terça, 8 de dezembro de 2015
Do Esquerda.Net
Viagem ao mundo do
medicamento-mercadoria, da investigação subordinada ao marketing, do
trabalho infernal nos laboratórios e da eficácia dos medicamentos
testados em estudos fraudulentos. “Para aumentar ou manter a sua fatia
do mercado, os grandes grupos farmacêuticos implementam artifícios de
engenhosidade mirabolante, como alterar as indicações dos seus
medicamentos para conquistar novos clientes”. Por Quentin Ravelli.
8 de Dezembro, 2015
Um
dos problemas de fundo da indústria farmacêutica: o facto de os testes
clínicos, ou seja, a prova da eficácia dos medicamentos, serem
estabelecidos por aqueles que produzem esses mesmos medicamentos. Foto
de Samantha Celera/Flickr.
“Percebi
que estava bloqueado, que sabiam exatamente o que eu receitava”,
indigna-se um médico instalado em Paris. “Fui ingénuo, não fazia ideia.
[Um dia], uma representante comercial disse-me: “Você não prescreve
muito!” Eu questionei-me: “Como pode ela saber isso?” Essa prática de
vigilância, que choca muitos profissionais, é articulada pelos serviços
comerciais dos laboratórios. Para aumentar ou manter a sua fatia do
mercado, os grandes grupos farmacêuticos implementam artifícios de
engenhosidade mirabolante. Não hesitam, por exemplo, em alterar as
indicações dos seus medicamentos para conquistar novos clientes.
Considerado por certos médicos como “o Rolls Royce dos antibióticos
dermatológicos”, o Pyostacyne, fabricado pela Sanofi – um dos primeiros
grupos farmacêuticos do mundo em volume de negócios (33 mil milhões de
euros em 2013) – conheceu tal destino. Durante muito tempo de uso
dermatológico, o antibiótico viveu uma “viragem respiratória”: é agora
utilizado maciçamente em casos de infeção bronco-pulmonar e de ouvidos,
nariz e garganta. Este último uso, criticado por numerosos médicos e
depois denunciado pelo poder público, podia conduzir a um super-consumo
de antibióticos, sendo assim parte do problema mais amplo do
fortalecimento das resistências bacterianas – um grande desafio de saúde
pública, responsável por setecentas mil mortes por ano em todo o mundo
(ver “O outro pesadelo de Darwin”).
Para compreender a natureza versátil da mercadoria da indústria
farmacêutica, acompanhámos a vida desse medicamento comum, desde os
laboratórios de investigação até aos visitantes comerciais, passando
pela fábrica de produção do princípio ativo1. A cada etapa, a mercadoria muda de nome: os biólogos falam da bactéria Pristinae Spiralis;
os químicos, da pristinamicina fabricada pela bactéria; os
representantes exaltam os méritos da “Pyol” aos médicos; os
trabalhadores denominam-na afetuosamente “a Pristina”. Ao longo dessa
cadeia, o antagonismo entre as necessidades do doente e os lucros do
industrial, entre o valor de uso e o valor de troca2
nunca param de se manifestar. No final desta linha, continua a
manifestar-se a oposição entre assalariados e executivos,
particularmente sensível numa empresa em plena reestruturação, onde os
trabalhadores estão lutando para conter os despedimentos e impor as suas
próprias conceções do papel do medicamento.
Vender
“O teu trabalho é manter o seu desempenho”
“O teu trabalho é manter o seu desempenho”
Um grande bloco todo de vidro, com 37 mil metros quadrados, a sede da
Sanofi na França evoca transparência e respeito aos pacientes, com as
suas silhuetas estilizadas que dominam o alto do edifício, cercadas por
um coração azul. No terceiro andar desse edifício, situado no sul de
Paris encontram-se os escritórios de marketing, onde se agitam os
funcionários que trabalharam, desde a década de 1990, na introdução da
Pristinamicina no mercado de infeções respiratórias. Com êxito evidente,
já que, do inverno de 2002 até ao inverno de 2010, o número de vendas
para infeções bronco-pulmonares deu um salto de 112%, enquanto o aumento
foi de apenas 32,6% no campo dermatológico.
Este aumento não corresponde a uma explosão do número de doenças ou a uma epidemia devastadora, mas a uma estratégia comercial: o mercado de infeções respiratórias envolve um volume de prescrições muito mais importante que o de infeções dermatológicas.
Este aumento não corresponde a uma explosão do número de doenças ou a
uma epidemia devastadora, mas a uma estratégia comercial: o mercado de
infeções respiratórias envolve um volume de prescrições muito mais
importante que o de infeções dermatológicas. “Acontece que, contra os
germes que infetam os brônquios, pulmões, maçãs do rosto, o medicamento
vai muito bem”, diz um médico da empresa. “Por isso, em seguida ele foi
desenvolvido com essa indicação.” Da pele ao pulmão, o valor de troca
metamorfoseou o valor de uso.
Os ourives deste género de reviravolta terapêutica são os “gerentes
de produto”, funcionários especializados na promoção de um só
medicamento ou de alguns medicamentos com indicações aproximadas. Aqui,
se é “gerente de produto Pristinamicina”, “gerente de produto Tavanic”,
“gerente de produtos analgésicos” e até mesmo “gerente de produtos
psicóticos”. Célia Davos3,
gerente de produto Pristinamicina, que se diz “muito voltada para os
negócios”, descreve o conteúdo do seu ofício: “Seu trabalho é
monitorizar o desempenho do medicamento, é seguir o seu produto para ver
aonde ele vai, de acordo com os concorrentes, de acordo com o mercado,
de acordo com a patologia, e fazer todos os esforços para maximizar o
volume de negócios”. Esse posto, situado no coração do serviço de
marketing, ele próprio no centro da sede social, funciona como uma mesa
giratória onde os funcionários chegam de várias áreas e podem em seguida
ser recolocados noutros horizontes, como gerentes, responsáveis pelas
áreas de marketing, comunicações, relações públicas, vendas.
O papel do gerente de produto consiste em destacar a utilidade de um
medicamento na preparação do material dos propagandistas de laboratório,
esses comerciantes que se deslocam pelos consultórios para convencer os
médicos a prescrever os seus produtos. No arsenal da Pristinomicina,
encontram-se a ajuda de visita, uma espécie de guia a partir do qual o visitante constrói o seu discurso segundo os argumentos elaborados pelo marketing; os elementos-chave, de informação médica, que sintetizam os pontos mais importantes; os número de uma revista científica como a Infectologia, cujo
patrono é a Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa
(Spilf) e que apresentam apenas os últimos resultados de ensaios
clínicos bem sucedidos relativos à Pristinomicina. Mas também uma
multidão de gadgets paramédicos – pequenas lâmpadas plásticas
com uma espátula para pensar sobre o Pristinomicina, ao olhar o fundo da
garganta do paciente; caixas de tecido para decorar o escritório do
médico; canetas Pristinomicina; pen-drive Pristinomicina. Esses textos e
objetos, que se repetem por todo lugar no consultório do profissional,
serão encontrados no porta-malas dos propagandistas.
Nem todos os médicos interessam aos laboratórios na mesma medida.
Aqueles que têm um importante “potencial de prescrição” tornam-se objeto
de atenção particular. Para identificá-los, os laboratórios utilizam os
serviços do Grupo de Elaboração e Realização de Estatísticas (GERS),
que dispõe das cifras das vendas aos distribuidores e das vendas diretas
em farmácias; ou do Centro de gestão, de documentação de informática e
de marketing (Cegedim), que fornece dados do software das prescrições
dos médicos. A essas fontes oficiais, somam-se as redes de inteligência
informais, como as investigações das visitas médicas a farmacêuticos e
aos seus colegas. Para os serviços de marketing, toda informação
relativa às práticas dos médicos interessa, pois permite estabelecer uma
“segmentação de clientes” em potencial. Assim, há os ”baixos ATB,
baixos Pristinomacina” (os que prescrevem pouco antibiótico em geral, ou
pouca Pristinomacina) e os “baixos ATB, altos Pristinomacina” (que já
prescrevem abundantemente o produto promovido). Estes, serão menos
visados que os “altos ATB, pequenos Pristinomacina” — pois podem
substituir uma parte importante de suas receitas de outros antibióticos
com receitas de Pristinomacina.
Evidentemente, essas estratégias não se traduzem mecanicamente em
vendas. É necessário que elas sejam postas em prática pelos visitantes
médicos. Em França, em 2014, havia dezasseis mil empregados em empresas
farmacêuticas, que passavam o tempo todo em reuniões com os médicos. À
taxa de duzentos e treze dias de trabalho por ano e seis visitas por
dia, são mais de vinte milhões de conversas que travadas, anualmente com
os médicos. Essas entrevistas são minuciosamente preparadas. Para
aumentar a eficácia, os serviços de marketing redigem por exemplo
brochuras apresentando diversos “tipos de perfil” de médicos: a “mulher
médica sindicalista”, o “médico amigo”, o “médico cientista”, o “médico
stressado”… Essas brochuras são utilizadas no decorrer de seminários de
formação para ajudar os visitantes médicos a colocar em prática a “rota
de fidelização”, com vistas a conhecer melhor as suas metas. Aprendemos,
nesses “workshops sobre produtos”, que o médico da família – 55 anos,
grande clientela, presidente de um programa de educação médica
continuada – é mais “sensível à abordagem humanística do paciente” do
que o médico cientista “instalado no campo”, de “contacto muito frio”,
ao contrário do namorado companheiro, “alegre, mas um pouco mole.” Uma
vez formados neste jogo, os representantes comerciais devem fazer saídas
de campo para melhorar a “elasticidade” dos médicos. Quanto mais um
médico é considerado “elástico”, mais recetivo ele é ao discurso da
indústria farmacêutica.
Ou então, os médicos tornam-se cada vez mais críticos, a ponto de
fechar as suas portas para os visitantes médicos, cujo número caiu
depois de dez anos. Esta resistência crescente empurra a empresa a
encontrar outras formas de lobbying, mais científicas e menos
percetíveis, particularmente ao dirigir-se a formadores de opinião
(chamados KOL, key opinion leaders/líderes-chave de opinião) –
ouvidos e respeitados por milhares de prescritores. Assim, a Sanofi
procura influenciar docentes de universidades, por vezes reconhecidos
como responsáveis pelo espírito crítico dos jovens médicos.
Quando fui estagiário na Sanofi, tive por exemplo de construir
“argumentos para decanos”, buscando convencer os mais reticentes em
acolher a empresa em suas classes. Os maus resultados de algumas
faculdades foram usados – especialmente em Paris-V, onde houve uma queda
dramática na proporção de alunos classificados no primeiro trimestre da
competição nacional. Esse resultado era explicado, de acordo com a
Sanofi, pela personalidade do decano, considerado um dos mais indóceis,
por não permitir a livre circulação de panfletos, cartazes e outros
produtos de publicidade disfarçada.
Toda essa máquina de influência não funciona sem choque ou oposição.
Há, em todos os níveis, dúvidas, dissonâncias, contradições. Certos
representantes, particularmente conscientes dos problemas de resistência
bacteriana, procuravam, por exemplo, falar com os médicos sobre todos
os antibióticos disponíveis e não apenas daqueles que geram mais
dinheiro. Eles esforçam-se por tecer laços não comerciais com os
profissionais, não hesitam em partilhar as suas dúvidas e as suas
críticas. Mas encontram-se frequentemente confrontadas com mudanças
arbitrárias, transferências de zona, a chamadas da direção, que são
difíceis de contrariar quando pairam ameaças de demissão.
Produzir
“Há dois anos que perdi o sono”
“Há dois anos que perdi o sono”
A fábrica onde é produzido o princípio ativo da Pristinomicina, a
partir de bactérias colocadas para fermentar, encontra-se perto do rio
Sena, ao sul de Rouen (França), onde estão espalhadas diversas
indústrias, como as da Total ou da ASK Químicos. Na fábrica da Sanofi,
afetada por cortes de pessoal, alguns espaços foram substituídos por
retângulos de relva que são alternados com oficinas de atividades,
interligados por feixes de tubos de oxigénio, água purificada,
solventes, ácidos. Quando se entra pela primeira vez, um odor contrai as
narinas: é dos dejetos agrícolas que as bactérias em fermentação
consomem em quantidade antes de segregar os princípios ativos. O perfume
inebriante de melaço de açúcar de beterraba, que chega da fábrica pelos
camiões-cisterna, domina a atmosfera.
Na oficina de fermentação, o barulho atinge,
como hélices de avião em marcha lenta, as longas lâminas de dezenas de
fermentadores de duzentos e vinte metros cúbicos, movimentadas
continuamente. É aqui que nasce a molécula pristinamicina, que se
encontrará nas milhões de caixas acondicionadas em Espanha, depois
vendidas em farmácias. Segundo os trabalhadores, o trabalho em si mesmo é
interessante e frequentemente imprevisível, pois envolve organismos
vivos. Mas as condições são particularmente duras. Os operários
trabalham em regime 5 × 8. Significa que são divididos em cinco equipas,
que trabalham dois dias das 5h00 às 12h00, em seguida, dois dias das
12h00 às 20h00, e finalmente dois dias das 20h00 às 5h00.
Frequentemente, portanto, não restam mais do que três dias de repouso, fortemente encurtados pela noite do último ciclo ou pela manhã do próximo. Quem segue este ritmo não dorme, jamais, três vezes seguidas no mesmo horário.
Oficialmente, de seguida eles beneficiariam de quatro dias de
descanso. Mas, onze vezes no ano, um desses quatro dias é suprimido,
segundo o sistema de “remontagem” sem o qual o tempo de trabalho seria
inferior a trinta e cinco horas semanais, a jornada legal na França.
Frequentemente, portanto, não restam mais do que três dias de repouso,
fortemente encurtados pela noite do último ciclo ou pela manhã do
próximo. Quem segue este ritmo não dorme, jamais, três vezes seguidas no
mesmo horário. “O cérebro não é mais capaz de retomar os ritmos de
vigília e sono”, diz o Sr. Etienne Warheit, que está no 34º ano de 5 ×
8. “Há dois anos atrás, perdi o sono e não conseguia mais fazer seis
horas por noite. Ficava cansado às 22 horas, mas estava acordado à
meia-noite e não havia maneira para dormir antes das 2h00. E vice-versa…
chegava ao trabalho, estava cansado, e por isso tomava café.
Tornamo-nos incapazes de fazer o trabalho. É preciso repeti-lo novamente
três vezes, porque temos medo de esquecer as coisas, ter cometido um
erro, perdemos a confiança em nós mesmos”.
Quando os trabalhadores acham esse ritmo muito desgastante e querem
mudar de horário o gestor recusa o pedido, principalmente porque não tem
outros postos para lhes oferecer. O objetivo primeiro é rentabilizar as
máquinas, que funcionam permanentemente. Para justificar este ritmo
infernal, a direção esconde-se atrás de uma espécie de determinismo
tecnológico: os ritmos da fermentação bioquímica e extração de bactérias
tornariam inevitável o sistema 5 × 8. “É óbvio que, numa fábrica como
esta, a partir do momento em que a produção é contínua e só pode ser
contínua, não é possível fazer de outra forma”, diz o médico da fábrica.
Esta explicação científica desestimula a pesquisa de organização
coletiva do trabalho. É parte de um discurso mais geral, que pode ser
chamado de “biotecnologia”: a fábrica, voltada para produtos do futuro,
seria mais semelhante a um laboratório, onde o protesto sindical não
teria mais razão de ser.
Há, portanto, um abismo entre as práticas concretas do grupo
industrial e o seu discurso – “O essencial é a saúde”, proclama o slogan
inscrito na entrada da fábrica. Mas os protestos, que dão a um dos
responsáveis da área de recursos humanos a impressão de “um barril de
pólvora”, e que inclusive provocam medo no gerente de “descer” nas
oficinas, são integrados à estratégia de negócios da empresa. Ao
oferecer a vários trabalhadores a possibilidade de se tornarem técnicos,
usando o discurso da biotecnologia como forma de mascarar a realidade
da fábrica, a empresa tem conseguido transformar a reivindicação
coletiva de unificar todas as forças sindicais em promoção de desejos
profissionais individuais. Esta recuperação repousa, notoriamente, sobre
o medo: durante vários anos, do final dos anos 1990 até 2005, a direção
do grupo fez pairar a ameaça de venda da fábrica. Esse cenário, que
jamais se concretizou, permitiu sobretudo que os trabalhadores
aceitassem uma reestruturação e o corte de 15 dos 77 postos de trabalho
no sistema 5 x 8. De ameaçada, a fábrica foi promovida a “unidade
piloto” do grupo Sanofi.
Tal reviravolta – que não mudou as condições de trabalho nem os
salários – reflete a forte utilidade industrial das bactérias. O “bom da
biotecnologia” marca uma orientação geral do capitalismo industrial
deste início do século XXI, que desenvolve biotecnologias ditas verdes
(agricultura), brancas (indústria), amarelas (tratamento de poluição),
azuis (a partir de organismos marinhos) ou vermelhas (medicina). Por
causa de todas essas aplicações, os mercados desenvolvem-se, e
frequentemente as taxas de lucro são excecionais, o que explica a razão
pela qual a indústria farmacêutica tem comprado, no últimos anos, as
empresas de biotecnologia. Em abril de 2011, a Sanofi comprou por 20 mil
milhões de dólares a Genzyme, uma empresa norte-americana especializada
em produtos biofarmacêuticos para esclerose múltipla e doenças
cardiovasculares. Esta atração pode ser explicada pelo facto de que as
novas moléculas utilizadas no tratamento de muitas doenças não vêm da
química de síntese clássica, mas do uso de materiais vivos, muitas vezes
geneticamente modificados, que permitem fazer importante economia na
produção.
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“O conflito de interesses é permanente”
“O conflito de interesses é permanente”
Nas Jornadas Nacionais de Infectologia da França, dois “espaços” se
defrontam. De um lado, o “espaço das marcas”, onde os comerciantes falam
da Pristinamicina: 56 stands de laboratórios farmacêuticos, dispostos
em sete fileiras, segundo uma lógica de blocos desalinhados que impõe um
deslocamento em zigue-zague aos 1,5 mil médicos inscritos. Do outro, o
“espaço das moléculas”: dois auditórios, batizados de Einstein e
Pasteur, onde acontecem simpósios científicos. Assim, paralelamente a um
desinvestimento na pesquisa privada – a Sanofi fechou, em 2004, seu
centro de pesquisa anti-infecciosa de Romainville –, os laboratórios
exercem um certo controlo sobre a pesquisa pública: eles financiam os
congressos médicos e influenciam, em contrapartida, a organização
científica, material e espacial deles.
Para chegar ao espaço científico das Jornadas de Infectologia, que se
encontra do lado oposto da entrada do congresso, os médicos devem
passar, no mínimo, diante de treze stands, cujo aspeto reflete o peso e a
influência do expositor. Aos deliciosos petits fours da
transnacional Boehringer-Ingelheim, degustados entre assentos com design
e sob a luz azul de grandes lâmpadas halogéneas verticais, responde o
suco de maçã, servido sobre uma grande mesa de fórmica coberta de
objetos em desordem, oferecido pelo StudioSanté, uma rede francesa de
coordenação de cuidados médicos especializada na perfusão em domicílio…
No primeiro ano, eu levei-os para Singapura. No segundo, aconteceu serem, no geral, os mesmos. Onde fomos? A Durban [África do Sul]! Um ano depois, estávamos em Cancún [México] e, no seguinte, na Birmânia. É desnecessário dizer – isso não se diz porque não se tem o direito –, mas é assim que se criam parceiros de verdade”.
Apesar da aparente separação dos espaços, as ligações entre o
universo comercial e o mundo científico são sólidas. Durante o
congresso, o principal objetivo das empresas é mostrar a superioridade
científica de seus produtos. Os simpósios exibem, portanto, o nome de
seus patrocinadores – “Simpósio Bayer”, “Simpósio GSK”, “Simpósio
Sanofi” – nos quais se enfrentam os KOLs de cada laboratório. Para
assegurar os serviços de médicos influentes, os lobistas dos grandes
grupos conduzem um trabalho de fôlego que passa principalmente pela
organização de viagens com vocação pseudo-científica. Uma “médica de
produto” da Sanofi conta como constituiu o grupo de especialistas de um
medicamento apoiando-se sobre os médicos cuidadores que influenciavam os
outros “receitadores”. “Eu disse: tenho dez lugares, só quero aqueles
que ganham 1 milhão de euros ou mais [em volume de negócios]. No
primeiro ano, eu levei-os para Singapura. No segundo, aconteceu serem,
no geral, os mesmos. Onde fomos? A Durban [África do Sul]! Um ano
depois, estávamos em Cancún [México] e, no seguinte, na Birmânia. É
desnecessário dizer – isso não se diz porque não se tem o direito –, mas
é assim que se criam parceiros de verdade”.
Reencontramos, na organização dos testes clínicos, uma imbricação
similar do valor de troca e do valor de uso. Um dos KOLs da
Pristinamicina, o doutor Jean-Jacques Sernine, responsável por alguns
testes clínicos, é um dos infectologistas mais reconhecidos da França.
Sua carreira foi construída em torno de duas práticas profissionais: a
coordenação de testes clínicos para a indústria farmacêutica (sobretudo
para Pristinamicina, na Sanofi) e a expertise junto às agências
públicas do medicamento. Ainda que não avaliasse os mesmos medicamentos
nos dois casos – ou haveria um flagrante conflito de interesses –, ele
fazia parte de um pequeno grupo de especialistas que, tomados
coletivamente, passava de uma margem para a outra, da indústria
farmacêutica à medicina pública. “O conflito de interesses é permanente.
O principal deles, quando se está lá dentro, é interessar-se pelos
antibióticos!”, justifica. “As coisas só são possíveis se há uma troca
entre os avaliadores que somos no nível administrativo e a indústria
farmacêutica”. Juiz e, em parte, condenado ao conflito de interesses, o
grupo social dos especialistas fica desta forma prisioneiro da sua
própria competência.
Tal situação repercute na Agência Nacional de Segurança do
Medicamento e dos Produtos de Saúde francesa (ANSM), cujo trabalho se
baseia inteiramente na expertise. Situada na periferia norte de
Paris, situa-se num imponente prédio com vidros que não têm a graça e a
leveza da sede comercial da Sanofi: quando chegamos ali, a porta
giratória, temporariamente travada pelas intempéries, estava cercada por
uma fita de construção vermelha e branca. Foi por uma porta clássica
que tivemos de passar, para chegar a uma sala de espera à qual várias
plantas de plástico, com folhas cheias de poeira, davam um ar de
gabinete de taxidermista.
Essa desigualdade estética reflete uma profunda ausência de simetria
social e económica, que torna difícil acreditar que a ANSM exerça um
contrapoder eficaz. Com efeito, esta muitas vezes não tem o tempo nem os
meios para ler e analisar o conjunto dos dossiês de pedidos de
autorização de colocação no mercado (AMM) que as empresas fazem chegar a
ela. Sernine ironiza sobre um pedido de AMM para o qual ele contribuiu:
“Eram 57 volumes de seiscentas ou setecentas páginas cada um, que
pesavam 110 quilos e atingiam 2 metros de altura. E era apenas uma parte
do dossier”. Esta situação está longe de ser nova. A crónica jurídica
de Bertrand Poirot-Delpech no Le Monde, durante o escândalo
sanitário do Stalinon em 1957, já a mencionava como um problema
fundamental: “Mestre Floriot, por exemplo, dedicou-se a um cálculo
indiscreto. Sabendo que 2.276 vistos tinham sido concedidos em 1953 e
que os comissários se reuniram oito vezes por ano à razão de algumas
horas a cada vez, ele chegou ao tempo recorde de 40 segundos por exame
de dossier”4
Hoje, os testes clínicos sobre os antibióticos desenvolvem-se em
condições opacas, sobre um fundo de divisão seletivo e mesmo com
manipulações de dados. Um teste sobre a utilização da Pristinamicina nos
casos de pneumonia ilustra o problema: havia, segundo Sernine, sete
fracassos do tratamento para o grupo de pacientes tratados com a droga e
somente quatro no grupo de controlo. Segundo o especialista, que
partilha a opinião da diretora médica do laboratório, teriam sido
incluídos doentes em situações a tal ponto severas que requereriam outro
tratamento diferente. “Portanto, a conclusão a que cheguei sobre isso é
que se trata do fracasso não do antibiótico, e sim da estratégia”. Um
argumento surpreendente do ponto de vista lógico: como julgar a eficácia
de um medicamento, se os pacientes que ele não cura não são
imediatamente desqualificados, se se parte do princípio de que ele só é
eficaz quando é eficaz?
É difícil para a ANSM desviar-se desse tipo de raciocínio circular no
seio de dossiês estatísticos complexos, que hoje substituíram a
argumentação baseada no olhar médico que percorre os casos clínicos
individuais. Com frequência, essa manipulação dos números conduz a
falsificações. Em 2007, o caso do Ketek suscitou várias mortes de
pacientes por causa de problemas hepáticos e levou um dos responsáveis
pelos testes a purgar uma pena de prisão de dois anos nos Estados
Unidos, por ter “inventado” pacientes para insuflar artificialmente a
eficácia do medicamento. Longe de ignorar o problema, certos dirigentes
científicos lembram, vários anos após o escândalo, que para esse
medicamento “havia cadáveres nos armários”.
Essa expressão, utilizada por uma das diretoras médicas do grupo,
testemunha certo cinismo no interior da empresa, cujos altos executivos
interiorizaram profundamente os códigos. Para eles, os interesses do
grupo vêm antes da saúde dos pacientes, sempre que surge, entre estes
dois sistemas de valores, um conflito. De maneira geral, nos escritórios
do serviço médico e nos do marketing reina uma forma de amnésia
seletiva do medicamento. A história dos efeitos colaterais imprevistos,
dos testes clínicos deturpados e dos escândalos sanitários não é
memorizada, e o fracasso clínico não tem o mesmo status do sucesso.
Toca-se aqui num dos problemas de fundo da indústria farmacêutica: o
facto de os testes clínicos, ou seja, a prova da eficácia dos
medicamentos, serem estabelecidos por aqueles que produzem esses mesmos
medicamentos. Alguns chamaram esse fenómeno de dependência de “captura
regulamentar” do Estado pelas empresas. Esta engrenagem ressurge a cada
novo escândalo: Stalinon (1957), talidomida (1962), Distilbène (1977),
Prozac (1994), cerivastatina (2001), Vioxx (2004)… A cada onda daquilo
que os tribunais chamam de “homicídios involuntários”, a questão da
independência dos testes clínicos volta à tona, mas nunca as reformas
que se seguem questionam o regime de propriedade comercial do
medicamento.
O problema está profundamente enraizado no sistema económico, que não
é mais moral para o medicamento do que para o petróleo ou os
cosméticos. Não somente porque são os mesmos acionistas que se encontram
nos comandos – a L’Oréal continua a ser a principal acionista da
Sanofi, desde a recente saída da Total –, mas também porque a
possibilidade de lucrar com os medicamentos aguça os velhos antagonismos
entre o valor de uso e o valor de troca.
Artigo de Quentin Ravelli, Le Monde Diplomatique, Janeiro de 2015.
Tradução Inês Castilho, Outras Palavras.net.
Tradução Inês Castilho, Outras Palavras.net.
1Realizada
no quadro de um doutoramento em sociologia, a investigação durou quatro
anos, durante os quais o autor foi contratado para vários postos:
estagiário nos serviços comerciais da Sanofi, operário nas fábricas do
grupo, etc.
2Por
exemplo, o diamante tem um alto valor de troca e um baixo valor de uso,
por comparação com a água que tem um baixo valor de troca e elevado
valor de uso.
3Todos os nomes foram alterados para preservar o anonimato.
4Bertrand Poirot-Delpech, Le Monde, 1 de novembro de 1957.