Sábado, 26 de dezembro de 2015
Do resistir.info
por Prabhat Patnaik
[*]
A defesa liberal do capitalismo assume duas formas distintas na teoria econômica. Uma declara que o sistema capitalista opera de maneira a
assegurar o pleno emprego de todos os recursos e produz um conjunto de bens com
"eficiência", a qual é definida como um estado onde nada
mais de qualquer bem dentro deste conjunto pode ser produzido sem produzir
menos de algum outro bem. Esta afirmação do pleno emprego
é tão palpavelmente falsa – como mostra toda a
história do capitalismo, marcada pela sistemática
coexistência de trabalho desempregado e equipamento ocioso – que
aqueles economistas liberais algo mais honestos recorrem a uma segunda linha de
argumentação.
Esta segunda linha, se bem que admitindo que o capitalismo realmente não
opera da maneira descrita na primeira e que, ao contrário caracteriza-se
sistematicamente pela coexistência de trabalhadores desempregados e
equipamento ocioso, afirma, entretanto, que a sua operação pode
ser retificada através da intervenção do Estado a fim de
fazer desaparecer esta deficiência. Ela encara o Estado como uma entidade
externa, a posicionar-se do lado de fora do sistema e a intervir na sua
operação "espontânea" a fim de libertá-lo
dos seus efeitos danosos.
A tradição keynesiana pertence obviamente a esta segunda linha.
Ela partilha com o marxismo a percepção de que o sistema entregue
a si mesmo é na verdade assolado por crises e é
incompatível com a exigência de uma sociedade humana, mas difere
do marxismo na sua crença de que o Estado, mesmo numa sociedade
capitalista, pode intervir para libertar o sistema dos seus males
básicos. Como afirmou Keynes, não havia qualquer necessidade de
propriedade social dos meios de produção como queriam os
socialistas; pelo que pretendia a utilização de um conjunto de
"controles sociais" para assegurar que o nível de investimento
fosse suficientemente elevado a fim de impedir qualquer escassez de procura
agregada com pleno emprego. Isso era tudo o que seria necessário para
ultrapassar a deficiência básica do sistema capitalista.
Não discutirei aqui a crítica marxista desta
posição. Ao invés disso examinarei a lógica desta
linha de argumentação nos seus próprios termos e
quão longe ela se adequa à realidade do capitalismo
contemporâneo. Uma questão óbvia que se levanta é:
como pode o Estado intervir para alcançar pleno emprego se os
capitalistas se opõem a tal intervenção? A resposta a esta
pergunta, dada por Keynes, era que os capitalistas não se oporiam a tal
intervenção uma vez que dela também se beneficiariam. Ou
seja, que a intervenção do Estado para promover a procura
agregada era um "jogo de soma não zero", no sentido de que
toda a gente
podia sair-se melhor através de tal intervenção: os
trabalhadores através de emprego mais vasto e os capitalistas
através de maiores lucros que decorreriam da melhor
utilização da capacidade produtiva sob o seu comando. A ainda que
os proponentes desta segunda linha admitam que "pleno emprego"
no verdadeiro sentido da expressão
teria a oposição dos capitalistas, devido ao receio de que um
desaparecimento do exército de reserva do trabalho significaria que os
trabalhadores ficariam "fora de controle", eles ainda assim
sustentavam que a intervenção do Estado pode pressionar um
nível de emprego muito mais alto do que se verificaria em economias
capitalistas a operarem "espontaneamente".
Mas então pode-se levantar a questão: se a
intervenção do Estado para manter altos níveis de
atividade é um "jogo de soma não zero", isto é,
funciona também em benefício dos capitalistas, então por
que não foi tentada mais cedo? A resposta dada por Keynes a esta
pergunta era que havia uma falta de entendimento teórico entre os
capitalistas, razão pela qual os mesmos encaravam a
intervenção do Estado com suspeição ou hostilidade.
Uma vez que desenvolvessem um entendimento correto do que produz
deficiência da procura, o qual ele pensava que a sua teoria
providenciara, então desapareceriam os obstáculos contra a
intervenção do Estado na "administração da
procura", que se levantavam devido à oposição dos
capitalistas.
Naturalmente, mesmo que estivessem armados com um tal entendimento, os
capitalistas,
em termos individuais
não poderiam ultrapassar a deficiência da procura. Eles têm
de atuar em conformidade com as "racionalidade privada" (fazer tanto
lucro quanto possível) porque é o que o mercado os força a
fazer. Ultrapassar a deficiência da procura exigiria portanto o
esforço de uma entidade supra-individual, o Estado capitalista. E os
capitalistas, embora incapazes de atuar contra a deficiência da procura
em termos individuais, não se oporiam a tal esforço por parte do
Estado uma vez que houvessem adquirido um entendimento correto. Capitalistas
individuais, em suma, estavam necessariamente presos dentro do âmago da
"racionalidade privada", a única entidade que poderia atuar
de acordo com a "racionalidade social" seria o Estado.
O ESTADO COMO ENTIDADE EXTERNA
Isto entretanto significa necessariamente que o Estado tem de atuar não
de acordo com o que dita o mercado, não em conformidade com o
critério mercado, não a imitar os participantes do mercado, mas
sim de modo totalmente independente do mercado. Ele tem de ser, em suma, um
"observador externo" do mercado. E instituições
apropriadas têm de ser postas em vigor dentro do sistema para tornar isto
possível. Durante vários anos após a guerra o capitalismo
teve tais instituições em vigor, dentre as quais pelo menos
três merecem ser mencionadas.
A primeira foi o controle estatal sobre fluxos de capital
transfronteiriços, o qual assegurava que o Estado podia atuar sem medo
de disparar fugas de capital
(outflows)
, isto é, sem preocupação com aquilo que financeiros
"irritados", os quais de outra forma retirariam os seus fundos,
pensassem das suas acções. O sistema de Bretton Woods permitia
aos países terem controles de capitais e todos eles tiveram tais
controles em vigor.
A segunda era que a contração de empréstimos pelo Estado
para financiar o défice orçamental não estava
necessariamente dependente de "sentimentos do mercado". O banco
central do país, na sua capacidade de subscritor e administrador da
dívida pública, obtinha qualquer porção da
dívida pública que não fosse subscrita pelo mercado. Isto
significava que o governo tinha liberdade de ação para incidir
em défices orçamentais sem se preocupar com o que o
"mercado" pensasse acerca da dimensão do seu défice.
A terceira era que a despesa do Estado era comprometida em muitas esferas
prescindindo do critério aplicado para julgar a validade de despesas
aplicado pelo setor privado. Muitas destas esferas em qualquer caso, tais como
educação e saúde, estavam primariamente dentro do
domínio público, de modo que mesmo a questão de comparar
os desempenhos dos fornecedores de serviço público e privado
não se levantava. E a ideia de fornecedores públicos terem de
fazer lucros, ou levantar seus próprios recursos, nunca foi acolhida. A
liberdade do Estado para gastar sem ser constrangido pelo "mercado"
dava-lhe uma certa liberdade de movimento para despender como quisesse.
Todas estas instituições agora desapareceram. Agora a
globalização da finança significa que o Estado é
constrangido em relação às políticas que segue por
medo de perder a "confiança" de "investidores
internacionais". E uma vez que tais "investidores", como o
capital financeiro, tradicionalmente prefere "finanças
sãs", isto é, orçamentos equilibrados, ou no
máximo incidindo num pequeno défice orçamental
(tipicamente 3 por cento do PIB), a maior parte dos países agora tem
legislação de "responsabilidade orçamental" que
limita a dimensão do défice. Além disso, a
"autonomia" do banco central, não apenas
de jure
mas
de facto,
significa que a contração de empréstimos públicos
tem de obedecer a "sentimentos do mercado". Na verdade, em
agrupamentos como a Eurozona, o facto de que o próprio banco central
está completamente fora do alcance do Estado-nação,
reforçou ainda mais esta dependência do Estado em
relação aos "sentimentos do mercado" para os seus
empréstimos. E com a privatização de serviços, ela
própria resultante das restrições à despesa do
Estado, fornecedores de serviços públicos agora têm de se
defender por si próprios e estão portanto em
competição com os privados.
PRISIONEIRO DO MERCADO
O que tudo isto significa é que o Estado, longe de ser um
"observador externo" do mercado, longe de ser uma
corporificação da "racionalidade social" que poderia
intervir para retificar o funcionamento do mercado o qual constitui o
domínio da "racionalidade privada", como os teóricos
econômicos liberais da segunda linha haviam imaginado, tornou-se ele
próprio um prisioneiro do mercado. Ele foi tão absorvido como
participante do mercado ao ponto de a [agência] Moody's ter mesmo
degradado a classificação de crédito do Estado americano.
Em suma, nos termos da perspectiva liberal o Estado foi incorporado dentro do
mercado e já não é mais uma entidade externa que possa
impor uma "racionalidade" diferente sobre o sistema.
Se a primeira linha de teorização econômica liberal fosse
na verdade correta, isto é, não houvesse necessidade da
intervenção do Estado e que o capitalismo operasse de um modo que
assegurasse pleno emprego e eficiência, então esta
"incorporação do Estado dentro do mercado", ou uma
"anexação do Estado pelo mercado" (a qual, de uma
perspectiva marxista, é nada mais do que o capital financeiro
internacional a pressionar o Estado para que actue exclusivamente de acordo com
as suas exigências), não importaria. Mas esta
afirmação, a qual é realmente avançada como defesa
ideológica da "anexação do Estado pelo mercado"
é obviamente absurda. A prolongada crise capitalista que ainda hoje
mantém pelo menos 11 por cento da força de trabalho desempregada
nos EUA (a posição é pior na Eurozona e no terceiro mundo)
testemunha o absurdo da afirmação.
Uma vez que a primeira linha da teoria econômica liberal em defesa do
capitalismo está errada e uma vez que a segunda linha da mesma é
infrutífera, porque não se pode recorrer à
intervenção do Estado para retificar os males do sistema –
em que deposita suas esperanças – devido à
"incorporação do Estado dentro do mercado", segue-se
que hoje não há qualquer argumentação liberal
contra o socialismo.
O socialismo certamente tem de atualizar a sua própria teoria; e o
movimento socialista ainda tem de ganhar impulso. Mas no ambiente no interior
do qual ele tem de cuidar destas tarefas já não existe qualquer
oposição teórica crível ao socialismo.
20/Dezembro/2015
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2015/1220_pd/liberal-defence-capitalism . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/