Sexta, 11
de dezembro de 2015
Por Aldemario
Araujo Castro*

É preciso destacar que o processo de impeachment está
expressamente previsto na Constituição diante da prática de eventuais crimes de
responsabilidade (art. 85), detalhados na Lei n. 1.079, de 1950. O afastamento
do Presidente da República depende da admissão da acusação por dois terços da
Câmara dos Deputados (art. 86), uma quantidade de votos superior a exigida para
uma mudança na própria Constituição (art. 60, parágrafo segundo). Assim, sem
elementos robustos e uma sintomática ausência de mínima sustentação
político-parlamentar não prospera um pedido de impeachment. O atual pedido foi
apresentado por juristas renomados e conta com uma narrativa político-jurídica
consistente. Não é, por óbvio, uma tentativa de golpe. Somente uma provocação
completamente vazia, sem a menor condição de ser aceita e tramitar, poderia ser
qualificada de tentativa de golpe contra o eleito e, portanto, contra a
democracia.

Nesse caso específico, a abertura do processo de
impeachment decorre de um ato de vingança, inserido numa sucessão de
chantagens, pressões e ameaças, do Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo
Cunha. Trata-se de uma das figuras mais reprováveis do mundo político, artífice
de uma série de medidas retrógradas que buscam reforçar os mecanismos de
opressão e aviltar as já difíceis situações de várias minorias sociais e
profundamente envolvido com uma considerável quantidade de condutas escusas.
Entretanto, essas circunstâncias, relacionadas com as motivações e o perfil do
personagem responsável pela abertura do processo, não afastam a necessidade de
análise dos argumentos postos na denúncia.
A análise estritamente jurídica desse pedido de
impeachment não é das mais simples. Com efeito, a problemática das “pedaladas
fiscais” reclama uma verificação cuidadosa, com boa quantidade de tempo e
reflexão acerca da consumação de eventuais irregularidades com densidade para
caracterização como crime de responsabilidade (art. 10, item 9, da Lei n.
1.079, de 1950).
Existe, entretanto, uma perspectiva de análise do processo
de impeachment muito mais importante para a sociedade brasileira. Vejamos os
dois cenários possíveis.
Derrotado o impeachment. Teremos a manutenção de Dilma e
seu projeto político a serviço das elites socioeconômicas nacionais e
internacionais. Disse Maquiavel, no famoso livro “O Príncipe”, quando os
grandes não conseguem governar com um dos seus (Aécio, por exemplo), governam
com um do povo (Lula-Dilma). Em longos anos de governo, o PT sequer arranhou os
pilares fundamentais de sustentação de uma das sociedades mais desiguais do
mundo (embora seja a sétima ou oitava em produção de riquezas). Com Lula-Dilma:
a) a estrutura agrária, majoritariamente latifundiária e retrógrada, permaneceu
intocada; b) houve a criação e o aumento vertiginoso do bolsa-empresário no
âmbito do BNDES; c) manteve-se o sistema da dívida pública de mais de 4
trilhões de reais que consome mais de 40% do orçamento anual da União no
respectivo serviço (Segundo Vicente Nunes, no jornal Correio Braziliense de 9
de dezembro do corrente, "o custo efetivo da dívida pública do governo
federal e do Banco Central chegou a inacreditáveis 41,4% nos 12 meses
terminados em outubro. (...) O custo efetivo da dívida pública está camuflado
nas estatísticas do Banco Central. (...) Para se ter uma ideia do estrago que o
custo efetivo da dívida está fazendo nas finanças públicas, os 41,4% resultaram
em uma despesa de R$ 506,9 bilhões com juros, o equivalente a 9% do Produto
Interno Bruto (PIB). Nunca, na história do país, se pagou tanto aos credores”);
d) preservou-se o tripé macroeconômico: câmbio flutuante-metas de
inflação-superávit primário, base para extorsivas e artificiais taxas de juros;
e) alimentou-se um sistema tributário profundamente injusto; f) a enorme
concentração de mídia persiste; g) foi “prestigiado” o modelo
político-eleitoral que amplia o conservadorismo e a corrupção, em especial a
partir do bilionário financiamento de campanhas eleitorais por grandes empresas;
h) constata-se um aumento da violência epidêmica, com destaque para aquela
promovida pelas forças de segurança militarizadas em relação aos jovens negros
e pobres das periferias das grandes cidades e i) observa-se um contínuo ataque
retrógrado aos direitos humanos, notadamente aqueles relacionados com a
comunidade LGBT, os negros e às mulheres.
A dupla Lula-Dilma, de forma secundária, para não romper
totalmente com as origens do “seu” PT, acentuou políticas assistencialistas e
limitados “ganhos” sociais. Esses “ganhos” estavam fundados num ambiente
externo favorável, relativa estabilidade da moeda e profundo endividamento das
famílias (pagando os maiores juros do mundo). Esse ciclo já está esgotado e a
própria crise fiscal do Estado inviabiliza a distribuição das “sobras” até
agora observada.
Portanto, a derrota do impeachment será a vitória de
projeto, em claro esgotamento, de manutenção das condições de exploração da
maioria da população brasileira. Aliás, um projeto com requintes de crueldade
porque mergulhado de corpo e alma nos maiores escândalos de corrupção da
história recente do Brasil.
Nesse sentido, qualifica-se como pura desfaçatez a
afirmação do Senhor Luís Inácio Lula da Silva, em discurso recente, de que está
por trás da tentativa de afastamento de Dilma o "desejo da oposição de
tirar o pobre do poder". Há bastante tempo, Lula, Dilma e o PT abandonaram
os pobres por um projeto político de ocupação de postos estatais e para bem
servir os verdadeiros donos do poder.
Consumado o impeachment. A posse de Michel Temer, seu
PMDB, as forças políticas da “governabilidade”, presentes na salada partidária
do PP, PSD, PTB, PSC, PHS, PR, PROS, SD, PRB, entre outros, e talvez o PSDB e o
DEM, não implicará em nenhuma mudança significativa naquelas amarras, antes
mencionadas, intocadas pelos governos Lula-Dilma. Teremos mais do mesmo,
mudadas as fisionomias e os nomes que desfilarão nas mídias como gestores
governamentais. Dependendo de uma série de fatores, o peso da direita mais
empedernida pode implementar um ataque mais forte aos direitos sociais e as
posições duramente conquistadas pelos setores democráticos e populares.
Portanto, temos uma falsa polêmica quando olhado o
problema e seus desdobramentos de forma mais profunda. Para os segmentos mais
desvalidos da sociedade brasileira teremos a manutenção, com todos os seus
instrumentos intocados, do presente projeto de opressão e produção de
desigualdades. Uma eventual mudança será cosmética, superficial e meramente
institucional. Dilma ou Temer, e as respectivas forças de sustentação política,
em boa medida as mesmas, são as duas faces da mesma moeda.
A real saída para a atual crise conjuntural, e mesmo a
superação do festival de desigualdades socioeconômicas e opressões de toda
ordem que marcam a sociedade brasileira (uma espécie de crise crônica e
estrutural que se abate sobre a imensa maioria da população brasileira),
pressupõe a construção de um campo e um programa político verdadeiramente
representativo dos interesses democráticos e populares. Nenhum dos desfechos
para o impeachment, e nenhuma das forças políticas beneficiárias deles (PT,
PMDB, PSDB e DEM, para citar os principais), significa uma perspectiva de
superação da crise conjuntural e, principalmente, da estrutural.
*Aldemario
Araujo Castro é Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da
Universidade Católica de Brasília e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil (pela OAB/DF)
Fonte: Facebook de Aldemario Araujo