Sexta, 16 de setembro de 2016
Do Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br
Escrito por Pedro Munhoz*
Não, meu amigo, não é hora de unir as esquerdas em torno de um partido, de um nome, um post de facebook,
um projeto eleitoral ou qualquer outra quimera, principalmente se essa
união significa abafar dissensos, forjar artificialmente uma unidade em
um hegemonismo capenga, frágil. Além disso, unida, a esquerda ideológica
brasileira de hoje, todas as vertentes partidárias somadas, é capaz, no
máximo, de abrir um grupo de oração. Somos poucos, somos bem poucos,
somos menores do que nos faz crer a bolha.
O uso da palavra “oração”, aqui, não é aleatório. Muitos de nós
achamos ser possível alcançar uma mítica redenção por meio da recitação
de um credo, da repetição de palavras de ordem, do comparecimento a
procissões cívicas, ecumênicas, apascentadoras do espírito, mas que têm
pouco efeito transformador na realidade material.
Ir às ruas, fechar o trânsito, tornar pública a nossa insatisfação
com o atual estado de coisas é essencial, mas não basta. Pode ser um
ensaio, pode ser a semente de alguma coisa, mas é preciso encarar a
realidade: em curto prazo, conseguiremos, no máximo, pouco mais do que
acuar ou criar alguma dificuldade para o governo ilegítimo, pois nossas
insatisfações ainda são difusas demais ou têm apelo popular de menos. A
construção de um campo de esquerda que efetivamente transforme a
realidade para conferir à população conquistas emancipatórias é
incompatível com a impaciência, com esse atabalhoado senso de urgência
que o golpe parlamentar incutiu em nosso campo.
É preciso dizer, ainda, que a conjuntura nos tragou como um tsunami a
um bando de banhistas bêbados. Muitos daqueles que carregam na lapela
as dignas insígnias da esquerda estavam a defender, até anteontem, a
inevitabilidade de uma série de ajustes impopulares levados a cabo por
ninguém menos que a presidenta deposta. A confusão é claríssima: não
foram poucas as medidas antipovo propostas pelo governo petista que,
levadas ao parlamento no pós-golpe, surgiram nas redes sociais como
provas irrefutáveis da maldade do governo Temer. Sim, são provas
irrefutáveis do caráter impopular do governo Temer, pois ele as
encaminhou, mas não podemos nos esquecer de que boa parte dessas provas
também poderiam ser usadas contra o governo Dilma, que as formulou.
E o que dizer dos dignos companheiros que, saudosos, talvez, do tempo
em que a conciliação de classes rendeu alguns frutos concretos, apostam
suas fichas em um triunfal retorno do presidente Lula, após convocação
de novas eleições ou em 2018? Lula, aquele que, ao ser nomeado ministro
por Dilma, apostou que uma nomeação de Meirelles apascentaria o mercado e
a base parlamentar do governo, ignorando o fato de que o superministro,
no máximo, faria com que as pautas do ajuste deslizassem pelo
parlamento com maior desenvoltura?
Se, por algum tempo, na época das vacas gordas, onde (em que) era
possível agradar ao povo e ao mercado, o lulismo conseguiu angariar
apoio de massas, o projeto petista acabou por afastar sua base popular
quando, na crise, escolheu seu lado. A queda vertiginosa da popularidade
de Dilma não se deveu somente às denúncias de corrupção e à Lava Jato,
embora ambas as narrativas tenham conseguido conferir mais substância a
uma indignação popular que já se encontrava presente. Lembrem-se: Lula
se reelegeu em 2006 debaixo de uma saraivada de denúncias gravíssimas,
mas sobreviveu porque a economia ia bem e o projeto de conciliação de
classes caminhava a todo vapor. Corrupção não é razão bastante para
derrubar governo algum quando existe apoio popular e Dilma,
infelizmente, conseguiu consumir boa parte do apoio que a reconduziu à
presidência da República em poucos meses de governo.
Se não é possível dizer que o povo saiu às ruas para pedir a
deposição de Dilma, com suas panelas e camisas da seleção canarinho,
tampouco é possível dizer que o povo saiu às ruas para defender o seu
mandato. As manifestações contra Temer cresceram após o afastamento
definitivo da presidenta, o que é, de alguma forma, sintomático, mas não
ao (a) ponto de dizermos que “o povo hoje está nas ruas contra Temer”. O
grosso da população, simplesmente, não se abalou para ir às ruas para
defender ninguém. Antes de as esquerdas se unirem em torno de alguém ou
de alguma coisa, é preciso descobrir o porquê desse fenômeno. As
esquerdas sem povo não passam de um broche identitário, uma
excentricidade sem substância.
Talvez os ajustes de Temer, aplicados, acabem por despertar a
população por conta de sua gravidade e alcance, mas honestamente não sei
se ela compraria a solução consubstanciada na volta de Dilma ou no
redentor retorno de Lula da Silva, já que a discussão sobre a
institucionalidade democrática e a soberania do voto passa longe dos
rincões onde a democracia representa pouco mais do que um incômodo ao
qual as pessoas devem se submeter de tempos em tempos.
Se não é hora de unir as esquerdas em torno das pautas institucionais
que estão dadas, é hora de nos lembrarmos o que significa ser de
esquerda e de dialogarmos entre nós e com a população. Ser de esquerda
não é, ou não deveria ser, apenas lançar mão de uma série de símbolos
que nos são caros, ou recitar determinadas palavras, ou adotar certa
retórica.
Ser de esquerda é lutar pela emancipação da classe trabalhadora e
combater retrocessos, redução de direitos e pautas antipopulares, venham
de onde venham. Talvez o encastelamento daqueles que muitos denominaram
“a esquerda possível” tenha feito com que, para muita gente, isso tenha
se perdido em algum lugar, no meio do caminho. Fique o Temer até 2018,
aconteçam ou não novas eleições, nossa construção está apenas
(re)começando.
Enquanto profetas do apocalipse, dedo em riste, sobem em seus
banquinhos nas redes sociais propondo soluções mágicas, de unidade e
consenso fragilíssimos para este terrível enrosco, penso que, para nós,
um bom começo seria tentar ouvir, humildemente, o que estão a sussurrar
as ruas: é com elas, mais do que entre nós, que urge construir um
consenso.
Leia também:
*Pedro Munhoz é jornalista.
Publicado originalmente na Revista Língua de Trapo.