Domingo, 2 de outubro de 2016
Elaine Patricia Cruz - da Agência Brasil
“É um tempo de impunidade”, resumiu Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, quando indagado pela Agência Brasil
sobre o que significam os 24 anos do Massacre do Carandiru, que serão
completados neste domingo (2). Passado todo esse tempo, ninguém cumpriu
pena pela morte dos 111 detentos do Pavilhão 9 do antigo complexo
penitenciário do Carandiru, desativado em 2002.
“São mais de duas
décadas sem que a gente tenha, efetivamente, alguma forma de
responsabilidade do Estado ou dos agentes que participaram ou que foram
seus mandantes políticos”, disse Malvezzi. Ele acredita que o governador
de São Paulo à época, Luiz Antônio Fleury Filho, e o então secretário
de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, deveriam ser
responsabilizados pelo massacre. “Toda a cadeia de comando deveria ter
sido envolvida na responsabilização. Não digo criminal, mas de alguma
forma de responsabilização, seja na área cível, administrativa ou de
alguma forma política”, acrescentou o assessor da pastoral.
Cinco
julgamentos ocorreram nesse período. No primeiro deles, em 2001, o
coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães, que comandou a operação
no Carandiru, foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos
111 prisioneiros do complexo penitenciário. A defesa do coronel recorreu
da sentença e ela foi revertida, sendo anulada pelo Tribunal de Justiça
em 2006.
Os outros julgamentos aconteceram entre os anos de 2013
e 2014. Por ser um processo que envolvia uma grande quantidade de
vítimas e de réus, o julgamento foi desmembrado em quatro partes. Ao
final delas, 73 policiais foram condenados pelas 111 mortes.
A
defesa dos policiais decidiu recorrer ao Tribunal de Justiça de São
Paulo, pedindo a anulação dos julgamentos, sob a alegação de que não
seria possível individualizar a conduta dos policiais, dizendo se cada
um deles efetuou os disparos ou que policiais foram responsáveis pela
morte de quais vítimas.
Na última terça-feira (27), três
desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Tribunal do Júri, responsáveis
pelo recurso da defesa dos réus, decidiram anular os julgamentos
anteriores entendendo que não há elementos para mostrar quais foram os
crimes cometidos por cada um dos agentes. Além da anulação, o presidente
da 4ª Câmara, desembargador Ivan Sartori, chegou a pedir a absolvição
dos réus em vez da realização de um novo julgamento. Porém, o pedido não
foi aceito pelos demais membros do colegiado.
Saiba Mais
Malvezzi
concorda que é muito difícil individualizar as condutas. “É legítimo
que a gente questione se há possibilidade de individualizar condutas. A
perícia no Brasil é tão frágil que você, de fato, não consegue
identificar quem fez os disparos. E dentro de uma perspectiva penal mais
garantista, há alguma legitimidade na argumentação, sim, de que você
não consegue fazer a individualização da responsabilidade pelo massacre.
Por isso, achamos importante a responsabilidade política. Mas o que não
se pode é negar que existiu”, argumentou.
Durante o julgamento, o
juiz Ivan Sartori chegou a dizer que não houve massacre e que os
detentos estavam armados e os policiais agiram em legítima defesa.
O
secretário estadual de Justiça e da Defesa da Cidadania Márcio Fernando
Elias Rosa, também critica a impunidade dos responsáveis pelas mortes
no Carandiru. “A Justiça, depois de 24 anos do ocorrido, não se
pronuncia de maneira definitiva e não faz justiça. E digo isso não
apenas porque me convenço da necessidade de o Estado e o Poder
Judiciário darem uma resposta para aquele terrível episódio, terrível
pelo número de vítimas e também pelo número de réus, e depois de 24 anos
o processo criminal não teve fim. Os julgamentos ocorreram quando eu
exercia a Procuradoria-Geral de Justiça e confesso que me empenhei muito
para que eles fossem realizados. O que a sociedade espera que ocorra é
uma conclusão, uma elucidação, o fim do processo”, disse.
O procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Smanio, disse à Agência Brasil
que o Ministério Público pretende recorrer da decisão do Tribunal de
Justiça.“Da parte do Ministério Público, não estamos conformados, não
aceitamos a decisão e vamos apresentar os recursos competentes para
reverter a decisão e manter a condenação, evidentemente.”
O massacre
Na
tarde do dia 2 de outubro de 1992, por volta das 14h, a dois dias das
eleições municipais, dois detentos brigaram no Pavilhão 9, na Casa de
Detenção de São Paulo, complexo penitenciário construído nos anos 1920
no bairro do Carandiru, na zona norte da capital. O complexo era formado
por sete pavilhões, cada um com cinco andares. Na época, 7.257 presos
viviam no Carandiru, 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam
encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena
de prisão.
A briga se generalizou, começou uma confusão e os
funcionários do complexo tentaram acalmar os ânimos dos detentos e
recolhê-los às celas. A Polícia Militar foi chamada para conter a
rebelião.
Uma tentativa de negociação com os detentos falhou. O
comando policial decidiu entrar no local com metralhadores, fuzis e
pistolas.
No livro Estação Carandiru, o médico Drauzio Varela,
que trabalhou na Casa de Detenção, narra o que aconteceu com base em
relatos de presos. “Passava das três da tarde quando a PM invadiu o
Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e
letal. A violência da ação não deu chance para defesa.”
Cerca de
meia hora depois da entrada da PM, as “metralhadoras silenciaram”,
contou o médico. Nesse dia, 111 detentos morreram: 84 deles ainda não
tinham respondido a processo e ainda não tinham sido condenados.
A ação dos policiais é considerada um dos mais violentos casos de repressão à rebelião em casas de detenção do país.