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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Médicos Sem Fronteiras: “Até a guerra tem regras”

Segunda, 12 de outubro de 2015
É inaceitável que o bombardeamento de um hospital e a morte de profissionais e pacientes possam ser despachados como dano colateral ou deixados de lado, tratados como um erro. Discurso da Dra. Joanne Liu, presidente internacional dos Médicos Sem Fronteiras, em Genebra.
Hospital dos Médicos sem Fronteiras em Kunduz, Afeganistão, após o bombardeamento dos EUA.
Na manhã de sábado, os pacientes e profissionais dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) mortos em Kunduz juntaram-se ao incontável número de pessoas mortas em zonas de conflito pelo mundo, tratadas como ‘dano colateral’ ou ‘consequência inevitável’ da guerra. O direito internacional humanitário não se baseia em erros. Trata-se de intenção, factos e motivação.

O ataque dos Estados Unidos ao hospital de MSF em Kunduz representou a maior perda de vidas para a nossa organização num ataque aéreo. Dezenas de milhares de pessoas em Kunduz deixaram de ter acesso a cuidados médicos no momento em que mais precisam. Hoje dizemos: chega. Até a guerra tem regras.


Em Kunduz, os nossos pacientes arderam nas suas macas. Os médicos, enfermeiros e outros profissionais dos MSF foram mortos enquanto trabalhavam. Os nossos colegas tiveram que realizar cirurgias uns nos outros. Um dos nossos médicos morreu numa mesa de cirurgia improvisada – uma mesa de escritório – enquanto os seus colegas tentavam salvar a sua vida.

Hoje nós prestamos uma homenagem àqueles que morreram nesse ataque repugnante. E prestamos uma homenagem também aos profissionais dos MSF que, enquanto assistiam os seus colegas morrer e com o hospital ainda em chamas, continuaram a tratar os feridos.

Este não foi apenas um ataque ao nosso hospital; foi um ataque às Convenções de Genebra. Isto não pode ser tolerado. As Convenções de Genebra regem as regras da guerra e foram estabelecidas para proteger civis em situações de conflito – incluindo pacientes, profissionais médicos e instalações de saúde. Trazem alguma humanidade a uma situação desumana.

As Convenções de Genebra não são apenas um marco legal abstrato; são a diferença entre a vida e a morte para as equipas médicas na linha da frente da batalha. São elas que possibilitam que pacientes tenham acesso às nossas instalações de saúde em segurança e que nos permitem prestar cuidados médicos sem nos tornarmos alvo.

Precisamente porque é proibido atacar hospitais em zonas de guerra que nós acreditávamos estar protegidos. Ainda assim, dez pacientes, incluindo 3 crianças, e 12 profissionais dos MSF foram mortos durante os ataques aéreos.

Os factos e circunstâncias deste ataque devem ser investigados de forma independente e imparcial, especialmente dadas as inconsistências dos relatos dos Estados Unidos e do Afeganistão nos últimos dias sobre o que aconteceu. Nós não podemos depender apenas de investigações militares internas realizadas pelas forças dos Estados Unidos, da NATO e do Afeganistão.

Hoje nós anunciamos que estamos a reivindicar uma investigação sobre o ataque de Kunduz pela Comissão Internacional Humanitária para a Apuração dos Factos. Esta comissão foi estabelecida nos Protocolos Adicionais das Convenções de Genebra e é o único órgão permanente estruturado especificamente para investigar violações do Direto Internacional Humanitário. Pedimos aos Estados signatários que ativem a Comissão para estabelecer a verdade e reiterar o estatuto de proteção dos hospitais no meio dos conflitos.

Embora este órgão exista desde 1991, a Comissão ainda não foi utilizada. Para isso, é necessário que um dos 76 países signatários apadrinhem uma investigação. Até ao momento, os governos têm se mostrado muito polidos ou receosos para abrir um precedente. A ferramenta existe e este é o momento de ser ativada.

É inaceitável que os Estados se escondam por detrás de “acordos de cavalheiros”, e, assim, criem um ambiente com o caminho livre para a impunidade. É inaceitável que o bombardeamento de um hospital e a morte de profissionais e pacientes possam ser despachados como dano colateral ou deixados de lado, tratados como um erro.

Hoje, estamos a reagir pelo respeito às Convenções de Genebra. Como médicos, estamos a reagir pelo bem de nossos pacientes. Precisamos que vocês, como membros da opinião pública, se juntem a nós para insistir na questão de que mesmo guerras têm regras.

Discurso da Dra. Joanne Liu, presidente internacional dos Médicos Sem Fronteiras, em Genebra.

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