Quarta-feira,
9 de dezembro de 2015
Do blogue
Náufrago da Utopia
Por Celso
Lungaretti
Sempre
tive o Delfim Netto como maior culpado pelas atrocidades da ditadura
militar do que os Ustras da vida, porque o sofisticado ministro do
Médici sabia muito bem o que estava fazendo quando, como signatário do
AI-5, concedeu total liberdade de ação aos pitbulls do regime.
Estes, pelo contrário, seguiam mecanicamente as velhas lições que lhes
haviam sido ensinadas nos quartéis, muitos acreditando sinceramente que
seu dever patriótico era o de emporcalhar as fardas com o sangue dos
resistentes.
Alguns, além disto, davam vazão a tendências sádicas, estupradoras e
homicidas que, noutras circunstâncias, talvez permanecessem reprimidas;
outros queriam galgar posições hierárquicas pela via da ignomínia; e
havia os rapinantes ávidos por se apropriarem dos bens e valores
apreendidos com os militantes clandestinos, além de ansiosos por
receberem recompensas dos empresários fascistas.
A indelével mácula moral, que não pode ser jamais esquecida nem
desculpada, devendo sempre ser-lhe atirada na cara como o faço agora,
impede que vejamos Delfim Netto como um exemplo para a cidadania (longe
disto!); mas, não interfere com sua capacidade analítica, bem acima da
média. É um autor que devemos ler, ainda que seja para dele discordarmos
com conhecimento de causa, porque vai além da tatibitate intelectual
dominante na imprensa e redes sociais.
Caso do seu artigo desta 4ª feira (09/12), Foi bom, que consegue ser razoavelmente isento ao abordar questões tratadas por todos com tendenciosidade explícita ou subjacente.
Eminência parda da gestão da economia nos governos de Lula, ele não se
vê obrigado a rezar pelo catecismo simplório de Dilma Rousseff nem é
benquisto por tucanos e peemedebistas, daí o distanciamento em que se
coloca das paixões suscitadas pela batalha do impeachment. É por ser um
dos articulistas que mais se aproximam da neutralidade que vale a pena
conhecermos sua visão.
"...Eduardo Cunha criou um momento crítico que poderá acabar com a paralisia que resultou da perda de credibilidade da presidente.
Ela se reelegeu com 24% dos eleitores declarando o seu governo ruim/péssimo (Datafolha). Quando a marquetagem eleitoral foi desmascarada a percentagem triplicou (Datafolha). O quinquênio 2011-15 pode ser resumido num número. O PIB do Brasil cresceu um pouco mais do que 5% enquanto o PIB mundial cresceu um pouco mais do que 17%, e o dos emergentes (ex-Brasil), nada menos do que 28%. Logo, a tragédia foi interna!
Infelizmente, Dilma não mostrou disposição de enfrentar a realidade e reconhecer que o equivocado esforço para reeleger-se fora desastrado. A luta política aprofundou-se e transformou o resultado da eleição num martírio sem fim. A falta de protagonismo do Executivo e a sistemática negação da gravidade da situação colaboraram com o entorpecimento político da sua gigantesca base potencial: dez partidos sem nenhuma fidelidade!
Isso retarda as medidas corretivas (sob grave ataque, aliás, de seu partido, o PT), o que piora mais a economia que, por sua vez, aumenta a confusão política, que piora ainda mais a economia e, assim, cumulativamente, até chegarmos à espantosa redução anual do PIB de 4,5% entre o 3º trimestre de 2015 e o seu homólogo de 2014.
É importante que Dilma entenda que o que está em julgamento não é a sua honradez que todos reconhecem. São os problemas materiais de sua administração. O presidente da Câmara não é o autor da denúncia. É apenas seu portador.
A sua defesa, portanto, tem que descer ao substantivo e esquecer o ad hominem. Estamos diante do experimento crítico: ou Dilma defende-se corretamente, assume o seu protagonismo, enquadra a sua base e propõe reformas constitucionais indispensáveis ou a Câmara, convencida da impossibilidade de reconstrução da confiança da sociedade na presidente, dá-lhe a oportunidade de afastar-se com honra.
Isso não pode e nem deve ser resolvido como uma competição de passeatas cívicas entre vermelhos e verde-amarelos, mas pela análise cuidadosa da prova material do fato que teria gerado o desvio de função de que fala a peça do impeachment. Lembremos que não gostar do governo nunca será uma condição suficiente para renová-lo antes da próxima eleição.
Agora há, pelo menos, uma chance de luz no fim do túnel".
Ou será um trem que chega em sentido contrário? Pois Delfim, avesso ao
pensamento marxista desde criancinha, até hoje lida muito mal com as
contradições. Seu discurso é didático, com evidente ranço professoral:
apresenta problemas e propõe soluções perfeitas, que amarrariam todas as pontas. Só que, na vida real, elas dificilmente existem.
Por exemplo: e se não houver "condição suficiente para renová-lo [o
governo] antes da próxima eleição", mas a Câmara estiver "convencida da
impossibilidade de reconstrução da confiança da sociedade na
presidente"?
Caso seja impossível tal reconstrução,
depreende-se que a "confusão política" continuará fazendo com que piore
"ainda mais a economia" e vice-versa, daí decorrendo a quebradeira de
empresas, um encolhimento do PIB mais acentuado ainda do que os 4,5% que
horrorizaram Delfim, a disparada da inflação e do desemprego,
desembocando nas turbulências sociais que podem levar de roldão a
incipiente democracia brasileira.
Vale ainda lembrar que, se inexistir mesmo "condição suficiente" para
abreviar o calamitoso governo de Dilma, isto se deverá a uma lacuna
terrível da Constituição de 1988: a de não incluir, como motivo de
impeachment, um estelionato eleitoral tão gritante como o cometido em
2014.
Candidato(a) eleger-se com um programa de esquerda, fazendo discursos
inflamados contra o neoliberalismo, para míseros dois meses depois
empossar um ministro neoliberal e dar-lhe carta branca para ajustar as
contas públicas arrochando os trabalhadores, os excluídos e os
indefesos, é um estupro da democracia, um conto do vigário aplicado nos eleitores!
Mesmo que o Brasil não pretenda adotar o parlamentarismo, sob o qual
Dilma teria sido há meses expelida por um voto de (des)confiança, algum
mecanismo constitucional terá de ser introduzido para impedir tais
passa-moleques. Seu efeito é corrosivo na credibilidade de nossas
instituições.
E a pergunta que não quer calar: milhões de brasileiros devem ser
levados à miséria, ao desespero e até à morte para que Dilma continue
presidente por mais três intermináveis anos, com enormes riscos de
sucumbirmos a um novo golpe de estado fascista (o verdadeiro, com
tanques nas ruas)?
Delfim, com sua imutável insensibilidade face ao sofrimento dos pobres
("é preciso fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo"), não se coloca
tal questão.
Eu me coloco. E só vejo três saídas: a renúncia de Dilma, a cassação do seu mandato pelo TSE e o impeachment.
A renúncia
seria um ato de grandeza política e de humildade pessoal --a opção de
sacrificar a si própria para evitar os terríveis sofrimentos que serão
infligidos ao povo com o prolongamento da paralisia governamental até
sabe-se lá quando. E uma oportunidade para Dilma se colocar à altura de
sua biografia, pois revolucionário não tem de ser obrigatoriamente
competente, mas nunca pode se mostrar indiferente às aflições dos
humildes.
O crime eleitoral
é mais apropriado no caso de quem não participou da roubalheira nas
estatais, mas dela indiretamente se beneficiou na corrida eleitoral,
além de seu governo (por meio das pedaladas fiscais) ter maquilado o
estado lastimável das contas públicas, evitando assim que servisse como
trunfo para os oposicionistas.
Finalmente, o impeachment
será o pior e o mais amargo desfecho. Inevitável, contudo, se a Justiça
Eleitoral não cumprir seu papel e Dilma permanecer agarrada com unhas e
dentes ao poder, mesmo não tendo a mais remota ideia de como reverter o
quadro dramático da nossa economia, que um país pobre como o Brasil não
conseguirá suportar por muito tempo mais sem explodir.