Segunda, 12 de setembro de 2016
Deu em Carta Educação
Em conversa com a professora Nora Krawczyk,
da Unicamp, pesquisador americano Dwight Holmes explica por que esse
modelo de ensino vem ganhando espaço em seu país e ameaça o Brasil
Vivemos no Brasil um intenso processo de mudança da racionalidade organizacional da educação, que afeta de maneira radical a lógica de gestão e o trabalho na escola pública. As escolas charter (charter schools),
modelo de escola pública que adota a lógica da gestão privada, têm sido
apontadas como principal referência de excelência para as mudanças que
se tenta implantar. São glamouralizadas e exaltadas no Brasil (como se
faz com supostas excelências da gestão privada) sem que haja um
verdadeiro debate sobre o tema.
Até que ponto essa visão midiática das escolas charter é real? Onde
terminam suas qualidades e começa a mitificação? Foi em busca de
respostas para questões como essas que vim para o berço das escolas
charter, os Estados Unidos, estudar o sistema de educação local, com
bolsa concedida pela Fapesp.
Dado o momento que o Brasil vive, no qual se tenta impor soluções e
contaminar todos os espaços (inclusive o educacional) com posturas
conservadoras e antidemocráticas, um verdadeiro debate sobre o que são
as escolas charter, como funcionam e quais consequências trazem para a
escola pública parece fundamental. Afinal, com o afastamento de Dilma Rousseff,
o governo interino parece disposto a favorecer mudanças radicais na
gestão da escola pública, dando suporte a medidas tomadas pelos estados,
como a extinção dos concursos públicos para professor em Goiás, e
outras em andamento como os modelos de escolas charter.
Pesquisador em educação desde 1977 e das escolas charter nos Estados
Unidos, Dwight Holmes, analista sênior de políticas com foco em questões
de equidade na educação para a Associação Nacional de Educação (NEA),
explica em entrevista ao Carta Educação a origem desse modelo, quais os interesses e de que maneira essas escolas aprofundam desigualdades.
Leia a seguir:
Carta Educação: O que é uma escola charter? Como elas começaram?
Dwight Holmes: Para começar, gostaria de dizer que
eu não estou falando em nome da NEA. São minhas próprias opiniões. Em
poucas palavras, escola charter é uma escola mantida com recursos
públicos, mas cuja gestão é privada. Ela tem origem na década de 1980,
curiosamente pensada para ser uma escola liderada por professores e para
acolher os alunos que fracassavam nas escolas tradicionais. Pensavam
que poderiam contornar regras administrativas para poder experimentar
diferentes abordagens de ensino com estudantes que enfrentam desafios
maiores. Lamentavelmente, essa boa ideia virou uma indústria poderosa,
que compete com as escolas públicas para atrair estudantes e recursos
públicos preciosos.
CE: O livro Myths and lies about who’s best,
de David C. Berliner e Gene V. Glass, mostra que a escola charter é um
tipo de escola que anda e fala como uma escola privada, mas na realidade
é uma escola pública, porque recebe dinheiro dos contribuintes. Você
concorda?
DH: Sim. As escolas charter são públicas porque
recebem dinheiro dos governos estaduais e federal, com os mesmos
critérios que as escolas públicas tradicionais. As regras de governança e
de responsabilização variam muito segundo as leis de cada estado para
as escolas charter. Por isso, podemos dizer que elas funcionam mais ou
menos como as escolas particulares, dependendo do estado onde estão
localizadas e das agências que as autorizam.
Em seguida, é importante entender que existem duas grandes categorias
de escolas charter. Existem as chamadas “Mamãe & Papai Charter”,
escolas sem fins lucrativos iniciadas por educadores locais ou líderes
comunitários e geridas de forma independente. E existem as escolas
charter que são parte de uma “organização de gestão da educação” (Education Management Organization,
em inglês), muitas dessas consideradas “cadeias nacionais”. Algumas
delas são organizações sem fins lucrativos, enquanto outras
indiretamente acabam sendo puro business. Atualmente, cerca de
60% de todas as escolas charter são independentes (Mamãe e Papai) e 40%
são administradas por contrato com organizações de gestão da educação,
sendo metade organizações com fins lucrativos.
Evidentemente também há aspectos condenáveis em parte das escolas do
tipo Mamães & Papai. Há casos de fraudes entre elas, e algumas são
abertas por grupos interessados em se ver livres de problemas das
escolas tradicionais, como alunos indisciplinados e crianças com
dificuldades de aprendizagem.
CE: Você disse que os regulamentos das escolas
charter são diferentes de um estado para o outro. Em linhas gerais,
quais regras são mais comuns e onde estão as diferenças mais importantes
entre os estados?
DH: A educação pública nos EUA é um sistema federal
de 50 estados, cada qual com um próprio sistema. A Constituição dos EUA
não faz nenhuma menção à educação pública. As únicas leis federais que
se aplicam a todas as escolas do país, incluindo as escolas charter, são
aquelas que dizem respeito à proteção dos direitos civis para os
estudantes (com base na etnia, religião, nacionalidade, deficiências) e
às condições vinculadas ao dinheiro federal para o estado, distrito ou
escola.
Em média, as receitas federais representam 10% da receita total da
escola, e 90% são provenientes de governos estaduais e municipais. Em
geral, onde o poder político é mantido pelo Partido Republicano, as leis
para as escolas charter são mais flexíveis, permitem maior liberdade
tanto para a agência que autoriza sua criação quanto para as próprias
instituições de ensino. Onde o Partido Democrata está no poder e a
influência de sindicatos de professores é mais forte, as leis para as
escolas charter tendem a ser mais restritivas e existe maior controle e
responsabilização das escolas. Há grandes exceções a essa regra geral,
como a Califórnia: um estado fortemente democrata, com um sindicato
docente muito atuante e leis pró-charter.
Você sabia que o Brasil também tem escolas charter? Saiba mais como esse modelo começou no País e na região:
CE: Há algum tipo de recomendações para os estados?
DH: A Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter, um importante lobby pró-charter, publicou um “modelo de lei para a escola charter”,
que descreve o mundo como eles gostariam que fosse. Ela também
classifica os estados de acordo com a proximidade de suas leis para as
escolas charter com a “lei modelo”. Nesse modelo, os componentes
essenciais de uma lei para escola pública charter são a autorização
ilimitada do número de escolas charter, a possibilidade de criar
diferentes tipos de escolas charter, incluindo virtuais/on-line, e que
organizações externas estejam autorizadas a gerir escolas charter. Ela
quer também as escolas charter isentas das leis e convenções estaduais
coletivas, evitando que os professores possam se organizar em sindicato.
CE: Como assim? Os professores que trabalham nas
escolas charter não podem participar do sindicato? O sindicato de
professores tem possibilidades de negociar as condições de trabalho
desses docentes?
DH: São pouquíssimos os professores das escolas
charter sindicalizados. Um dos estados onde o NEA e a Federação
Americana de Professores (AFT) estão tendo algum sucesso nas campanhas
para organizar os professores das escolas charters é Nova Jersey. Mas
isso tem preocupado bastante a associação das escolas charter local,
principalmente pelas condições deploráveis de trabalho dos professores e
porque os professores não têm voz nas escolas charter.
CE: Como são as condições de trabalho dos professores na escola charter? São diferentes daquelas das escolas públicas tradicionais?
DH: Muitas. Os estados não exigem que os professores
das escolas charter tenham a certificação correspondente para ensinar.
Como disse, muito poucos são sindicalizados e, embora AFT e NEA estejam
atuando nessas escolas, os números ainda são pequenos. Os professores
das escolas charter tendem a ser mais jovens, menos qualificados, com
menos experiência, recebem menos, têm menos benefícios e volume de
trabalho superior. Na Flórida, por exemplo, o salário médio anual dos
professores nas escolas charter em 2011-2012 era de 38.459 dólares e nas
escolas públicas tradicionais de 46.273 dólares.
A porcentagem de professores com apenas um ou dois anos de
experiência era de 69% nas escolas charter e de 21% nas escolas públicas
tradicionais. Além disso, as cadeias nacionais de escolas charter
deixam muito pouco nas mãos dos professores sobre o que, como e quando
ensinar. A maioria delas utilizam currículos estruturados e orientados
para o teste. Os professores são obrigados a usar apostilhas, produzidas
de forma centralizadas para todo o país.
CE: Como funciona o financiamento público para as escolas charter?
DH: Em geral, recebem o mesmo financiamento por
aluno que as escolas públicas tradicionais para despesas operacionais. O
financiamento de capital e aquisição de instalações escolares têm sido
um problema para as escolas charter na maioria dos estados. Algumas
recebem grandes quantidades de contribuições privadas, embora haja
poucos dados sobre isso.
CE: Quantas escolas charter existem hoje nos EUA e que porcentagem representam no total das escolas públicas?
DH: Nos Estados Unidos temos atualmente 90.189
escolas públicas, sendo 94% tradicionais. Essa relação se mantém,
aproximadamente, em todos os níveis de ensino básico[1]. O ensino privado representa 24% das escolas do país e 10% de todos os alunos do ensino básico.
CE: Realmente a porcentagem de escolas charter é
bastante pequena, só o 6% das escolas públicas em todo o país, mas elas
têm aumentado. Por que isso está acontecendo?
DH: Por diferentes razões, mas gostaria de destacar que a administração de Obama tem sido bastante pró-charter.
O Programa Federal Escolas Charter gastou mais de 3,7 bilhões de
dólares ao longo dos últimos 10 anos, na criação de escolas charter em
todo o país. Outro motivo é que as organizações que defendem o modelo
charter como alternativa mais eficiente às escolas tradicionais têm
pressionado muito para aumentar o número de escolas charter e
flexibilizar ainda mais as leis que as regulam.
Uma forma de pressão é injetar grandes quantidades de dinheiro nas
escolas charter para que diferentes grupos possam iniciar novas escolas
charter. Um dos financiadores que se destaca é a fundação da família
Walton, dona do Walmart e uma das mais ricas do país.
Além do investimento em escolas charter, durante décadas investiram
milhões tentando desviar fundos da escola pública às escolas privadas
com bônus. De qualquer maneira, é importante destacar que o investimento
federal, através do Programa Charter, tem superado os investimentos
realizados por grandes fundações privadas.
CE: Um dos argumentos favoráveis às escolas charter é as famílias terem a possibilidades de escolha. O que você acha disso?
DH: Seguramente existem escolas charter “Mamãe e
Papai” que trabalham bem e que, em média, são menores que as escolas
públicas tradicionais. Mas hoje o setor charter de escolas públicas está
dominado pelas corporações. O volume de negócios é elevado. Lembre-se
que muitas dessas escolas são administradas por empresas com fins
lucrativos e têm de obter seus 15% de lucros de algum lugar.
O que significa isso quando pensamos nas oportunidades educacionais
para crianças e jovens? Por exemplo, uma escola tradicional pode gastar
65 mil dólares por ano em eletricidade. Se um grupo de alunos sai e vai
para a escola charter, o uso de eletricidade não diminui e as contas têm
de ser pagas, mas parte do financiamento vai embora junto com os alunos
para as escolas charter. Os impactos negativos sobre as escolas de
bairro tradicionais são enormes. E, sem falar das denúncias de segregação e mãos tratos que as crianças e jovens sofrem em algumas escolas charter.
CE: Muitas escolas fecham após um tempo de funcionamento, não?
GH: Sim, esse é um problema grave para os alunos.
Temos muitas interrupções na escolaridade de crianças e jovens
causadas por fechamento de escolas charter. Dados de 2000- 2012, os
últimos disponíveis, mostram o fechamento de 27% das escolas charter
nesse período. Uma análise desses dados nos indicam que quantos mais
anos de funcionamento tem a escola, maior é a probabilidade de ela
fechar. Cerca de 40% não sobrevive após 12 anos desde o nascimento. No
entanto, também temos um número considerável de escolas charter que
deixam de funcionar já no primeiro ano de funcionamento.
CE: Qual é a taxa de graduações
nas escolas charter e em escolas públicas tradicionais? Há diferenças
por conta de diferentes etnias?
DH: Em geral, são muito mais baixas nas escolas
charter vis-à-vis escolas públicas tradicionais. E isso é verdade
independentemente da etnia. Em 2015, a taxa de graduação no Ensino
Médio nas escolas públicas tradicionais foi de 84%, contra 61% das
escolas charter
CE: Por que corporações têm interesse nas escolas charter?
DH: Lucro. O custo da educação básica pública está
se aproximando de 1 trilhão de dólares por ano, sendo 80% para pagamento
de pessoal. As forças privatistas têm procurado captar de diferentes
maneiras uma parte significativa desse dinheiro para si. Por exemplo,
através da emissão de bônus (voucher) para pagar a mensalidade
em escolas privadas para crianças pobres, benefícios fiscais para quem
paga escola pública, terceirização de funções
tradicionalmente desempenhadas por funcionários públicos (alimentação,
transporte e limpeza) e agora, também, via escolas charter.
No geral, os milionários defensores da escola charter são obcecados
em criar e expandir um sistema de educação paralelo à educação pública
tradicional que reflita os valores corporativos e não seja responsável
publicamente frente aos pais e a comunidades. Esse esforço exacerba a
desigualdade de renda, uma vez que drena recursos de distritos escolares
públicos e prejudica o seu sucesso.
CE: Há muitas denúncias sobre corrupção nas escolas charter.
DH: Há muitos casos de corrupção em escolas charter.
O governo federal dá todos aqueles milhões de dólares e não monitora o
dinheiro. Os estados tampouco o fazem. A NEA pressiona para que as leis
da escola charter incluam mais exigências na prestação de contas, mas
existe uma resistência maciça do lobby da escola charter. Eles se
queixam de regras “onerosas” e dizem que precisam de “liberdade” para
inovar, mas o que conseguem é um ambiente em que ninguém sabe (ou
não quer saber) onde e como o dinheiro é gasto ou se as necessidades dos
alunos e professores estão sendo atendidas.
Claro que tem havido casos de corrupção na
administração do ensino público também. Mas são poucos e por um bom
motivo: há muitos controles contábeis e financeiros. Já o modelo de
gestão da escola charter permite um truque fiscal muito hábil.
Informações levantadas em Los Angeles mostram que: as corporações
criam organizações sem fins lucrativos para gerir cadeias de escola
charter e criam empresas de responsabilidade limitada para controlar as
propriedades da escola.
Na Califórnia, ganham dinheiro alugando imóveis para escolas charter,
pelos quais são reembolsados por verbas de agências estaduais e
federais. Essas empresas podem até emitir títulos negociáveis no mercado
que, em última instância, estão garantidos pelo contribuinte. Houve
recentemente um escândalo em Ohio,
onde encontraram dados falsos sobre o sucesso das escolas charter de
uma dessas corporações, usados para receber mais verbas federais.
CE: Por que o número de escolas charter tem aumentado e o mesmo não acontece com o sistema de bônus para as escolas privadas?
DH: Boa pergunta. Não tenho certeza, mas
certamente os americanos entendem que é impossível ter o controle
do dinheiro público se ele é entregue às escolas privadas. A maioria das
escolas que aceitam estudantes com bônus são escolas religiosas. Acho
que isso também pesa porque duvido que as pessoas estejam de acordo que
os alunos recebam educação religiosa com dinheiro público.
CE: A escola charter é inevitável? Se sim, por quê?
DH: No curto e médio prazo, com certeza. Em parte,
porque elas preenchem uma demanda social e uma parte dessas escolas são
bem-sucedidas. Mas principalmente porque elas servem aos interesses
políticos de capturar o máximo de orçamento da educação pública para o
lucro privado e de minar os professores e seus sindicatos. Isso é muito
sério porque exacerba ainda mais as desigualdades já existentes em nosso
sistema de educação pública e serve como uma distração para os passos
reais necessários para melhorá-la.
*Nora Krawczyk é professora da Faculdade de
Educação no Departamento de Ciências Sociais e Educação e membro do
Grupo Políticas Públicas e Educação na Unicamp. Atualmente faz
pós-doutorado na Universidade de Maryland, EUA. norak@unicamp.br