Terça, 9 de
setembro de 2014
Carta Capital
A ideia é deixar a política econômica à
margem de qualquer possibilidade de interferência popular
publicado
08/09/2014 04:32
Marcelo
Camargo/ABr
O que pode significar a
independência do Banco Central, a não ser que a política econômica do governo
estará à margem de qualquer interferência popular?
Sonhar
é bom, mas eleição é hora de botar o pé no chão.” Esta frase, enunciada em um
programa eleitoral do Partido dos Trabalhadores, é, provavelmente, uma das
piores já ditas na política brasileira. Ela expõe claramente no que nossa
política se transformou: em um lugar no qual depositamos os sonhos na soleira
da porta antes de entrar. Pedir aos eleitores para deixar de sonhar na hora de
votar é uma confissão de que não há nada mais a esperar, mas é melhor continuar
como se está porque o futuro pode sempre ser ainda pior. Ou seja, é a pura e simples
utilização do medo como afeto político central. Algo do tipo: “Não tenho
realmente nada a te oferecer, mas esqueça isso e pense que outros podem vir e
deixar tudo muito pior”. Já tinha ouvido discursos semelhantes de políticos
conservadores e reacionários, mas juro que não esperava algo dessa natureza a
guiar as estratégias políticas de alguém que se diz de esquerda, ou seja, de
alguém que tem como razão de existência e como afeto político não a circulação
do medo, mas da esperança em relação a grandes transformações. Quando você não
consegue mais fazer as pessoas sonharem, melhor ir embora.
Como
podemos aprender de Celso Furtado, política é “fantasia organizada”, capacidade
de elevar os sonhos à condição de motor para ações concretas. Mas talvez seja
melhor qualificar
de forma mais precisa o que se passa na política brasileira atualmente. Não
estamos diante da luta entre sonho e princípio de realidade. O que realmente
está a acontecer é que não há mais sonho vindo de lado algum das principais
peças do tabuleiro.
Marina
Silva teve a sensibilidade de compreender que algo acontecera em junho. Tal
sensibilidade lhe permitiu escrever a melhor parte de seu programa, a saber,
esta que procura os primeiros passos para uma democracia de alta densidade.
Mas, para tanto, ela resolveu fazer aquele típico movimento neurótico que
consiste em dizer algo e anular seus efeitos logo em seguida, um pouco como
esses sujeitos que, imersos em rituais compulsivos, abrem e fecham as mesmas
gavetas de forma incessante. Pois, e este é o ponto mais inacreditável, sua
política só funciona com participação popular à condição de retirar a economia
de toda e qualquer interferência da vontade popular. Essa contradição é
destruidora.
Afinal, o
que pode significar a catastrófica ideia de independência do Banco Central, a
não ser que a política econômica do governo estará à margem de qualquer
possibilidade de interferência popular, pois gerida por um grupo de tecnocratas
que se sentirão completamente livres para fazer o que bem entenderem a partir
de metas previamente estabelecidas? Se houver mudanças das metas, se a
população entender que as direções econômicas devem ser revistas, quem poderá
pressioná-los, já que eles terão mandatos? Que tipo de democracia é essa na
qual a economia não faz mais parte da política, mas estará nas mãos de pessoas
que, logo depois de saírem do governo, procurarão emprego nos bancos que ela
supostamente estava até há pouco regulando?
Quem
realmente quer uma democracia de alta densidade deve voltar os olhos para a
Islândia. Eis um país que, em seu pior momento de crise, decidiu dar ao povo a
possibilidade de politizar a economia. No momento em que o Parlamento decidiu
transformar a dívida privada dos bancos em dívida soberana do Estado, a
Presidência deste pequeno país decidiu convocar um plebiscito para decidir o
destino da dívida. Sim, para isso serve a democracia popular, ou seja, para
lembrar a nossos economistas pagos regiamente através de consultorias para
bancos mafiosos que quem paga a conta escolhe a música. E quem paga a conta da
política econômica do Estado brasileiro são seus cidadãos. São eles que devem
comandar a economia.
Ao propor
retirar por completo as decisões econômicas da esfera da soberania popular,
Marina apenas radicaliza o que temos visto nos últimos anos. Só que não é
aceitável dormir com os sonhos das manifestações de junho e acordar com o
pesadelo saído da cabeça de economistas liberais descomplexados e prontos a
destilarem seu antiestatismo tosco, seu completo desprezo por políticas fortes
de redução da desigualdade social e de limitação do processo de concentração de
renda. Não foi para isso que a população saiu às ruas, mas para garantir um
Estado capaz de prover serviços sociais de qualidade
e um Estado com força para garanti-los.