Segunda, 1º
de setembro de 2014
Da Tribuna da Imprensa
Da Tribuna da Imprensa
Helio
Fernandes
O relato da crueldade e devassidão praticado por oficiais
do Exército contra a jovem de 19 anos, Mirian Leitão, avivou e reavivou muitas
lembranças. Fico arrepiado só de lembrar esse horror, sendo torturado por um
desses métodos, que vieram da “criativa” Grã-Bretanha, quando dominava o mundo
inteiro.
Tive dois amigos que foram presos (não simultaneamente)
naquelas celas do DOI-CODI. Eram 16 celas, enfileiradas. Os dois, um sem saber do
relato do outro me pediram apenas que não escrevesse sobre o assunto. Um foi
Ministro de Jango, morreu há dois anos.
O outro está vivo, notável figura. Quando soube do que
acontecera com a jovem de 19 anos, agora jornalista consagrada, telefonei para ele.
Pergunta simples: “Você leu a denúncia-confissão da jornalista, posso contar a
história da cela terrivelmente assustadora?”.
Resposta: “Helio, tenho que agradecer teu silêncio esses
anos todos, só contei porque te conheço muito bem. Você está liberado, mas por
favor, sem meu nome”. Compreendi perfeitamente, seria reviver um tempo e um
episódio, inesquecível. Cumpro o compromisso duplo do anonimato, não uso aspas,
conto como se fosse o próprio personagem.
Já não era mais ministro, estava em casa, por volta de
nove da noite, toca a campainha. Só eu e minha mulher também médica. Olhamos um
para o outro, vou abrir a porta. Um bando invade a casa, nenhuma palavra, me
amarram à minha mulher, empurrados, somos jogados dentro de um carro grande da
polícia.
Moro perto de você no Jardim Botânico, numa rua
transversal que termina quase na TV-Globo. O carro vai na direção do Rebouças,
atravessa, toma o caminho da Barão de Mesquita. 1969, logo depois do AI-5. Por
enquanto apenas susto, incerteza, não sabia nem a razão do que estava
acontecendo. A partir de agora, terror, terrorismo, uma narração que não sei
como começar ou terminar.
Nos tiram do carro violentamente, é uma praça enorme, uma
porta de vidro, com um cartaz grande: um policial com um dedo apontado e três
letras: BIC. (Depois vim a saber: Batalhão de Investigação Criminal). Sede do
assustador DOI-CODI.
Primeiro golpe mortal: me levam para um lado, minha mulher
para o outro. Sinto desespero pela primeira vez. Vamos caminhando,
inesperadamente uma porta se abre, me empurram para dentro, não sei de mais
nada. Escuro total. Não sei o tamanho da cela, se é grande ou pequena.
Perco a consciência, não tenho mais a noção de tempo ou
espaço. Não sei se estou sentado ou em pé, impossível ver alguma coisa. Sinto
medo, do escuro, da lembrança de minha mulher, não quero nem me movimentar. Se
eu estiver em pé, e me sentar, como conseguirei me levantar? E se for o
inverso? Não aparece ninguém, impossível saber se passou uma hora, um dia, uma
semana. Mais ou menos, como definir?
Inesperadamente o silêncio é quebrado de forma arrasadora,
cubro os ouvidos, mas o barulho parece inútil de tentar restabelecer o
silêncio. Esse silêncio que me assustava, agora parece a salvação. Mas não
tenho poder sobre coisa alguma.
Não aparece ninguém, tenho a impressão que se surgisse
alguém, mesmo um torturador físico, seria até melhor, pois jamais pude imaginar
esse tipo de tortura sem torturador visível. Da mesma forma como surgiu, o
estrondo que parecia vir de algum som elevado à última potência, foi embora.
O dia-a-dia do terror
Não acontecia nada, Helio. Não me davam comida mas não
sentia fome. Nenhuma noção do tempo, mais duas vezes surgiu o som maquiavélico,
indo e voltando, com a mesma violência. Mas sem a menor identificação de onde
vinha e quanto tempo duraria. Num intervalo de silêncio entre essa trombeta
maldita, a quebra da rotina.
De repente, um ruído leve, abre um buraco na parede ao meu
lado, aparece uma travessa de comida. Fecham rápido, novo problema: a que
distância estou da travessa de comida, como chegar até lá? Parece que têm noção
da dificuldade, abrem a “janelinha”, empurram a travessa que cai perto de mim.
Só que não consigo ver o que contém.
Surpreendido, constato que não estou com fome. Terá passado
tão pouco tempo? Impossível responder para mim mesmo, nem sim nem não. Só fui
saber das coisas quando me soltaram. Muita gente trabalhava para me localizar e
me libertar. Perguntei por minha mulher, responderam: “Já está em casa”.
Meu terrorismo do escuro durou 6 meses, 180 dias
Fui entregue a amigos, parecia que não existia, me
colocaram num carro. Fui fazendo perguntas, a cada resposta correspondia
um assombro. Quando soube que havia ficado 180 dias, não acreditei. Não me
lembrava de ter comido nem uma vez, mas ninguém resiste há seis meses sem comer
e sem beber. Mas durante esse tempo ninguém entrou na minha cela. Admito até a
possibilidade de terem jogado um pó qualquer anestesiante, e nesse tempo, me
alimentado e me servido água.
O terror do contato
Entro em casa, eu e minha mulher nos abraçamos jogados no
chão, num tempo tão indecifrável, quanto o que passamos na cela escura do
DOI-CODI. Não trocamos uma palavra, não perguntei nada, ela também não. Nossa
casa passou a ficar cheia dia e noite, até imploramos que deixassem passar
algum tempo.
Não queríamos silêncio e sim tentar descobrir ou relembrar
alguma coisa, daquele inominável passado recente. Nem nossos filhos queríamos
ver. Eu e minha mulher, sozinhos, tentávamos adivinhar fatos, conciliar
lembranças. Mas não dava.
Preciso contar a alguém
Um dia toca o telefone. Pergunta: “Helio me oferece um
café?”, a resposta é afirmativa, frequentava minha casa, foi um dos oito, que
participaram das duas primeiras reuniões da Frente Ampla, na minha casa. Chaga
em menos de meia hora, diz o que está no título desta nota: “Helio, não posso
ficar com esse silêncio terrível me martirizando. Lembrei logo de você,
participou de tudo, de total confiança”.
Contou o que está minuciosamente relatado, muitos cafés,
um almoço, quase um jantar, precisava voltar para casa. Estava visivelmente
aliviado, me abraçou carinhosamente, como se eu tivesse prestado um favor
inestimável.
Quando fez 90 anos, recebeu amigos, estava presente quase
a República dos nossos sonhos, como dizia o grande Saldanha Marinho. Tive a
impressão, em determinado momento, que iria quebrar o silêncio.
PS - Seria a grande história daquela ditadura cada vez
mais selvagem e torturadora. Nossa Senhora, impossível rasgar o compromisso com
um vivo, principalmente depois dele já morto.
PS2 – Se a publicação levasse à punição de todos os
generais torturadores, valeria a pena. Mas esses generais já haviam decidido a
própria absolvição e comandado a transição, seria apenas uma tolice.
PS3 – A formula da Grã-Bretanha foi passada para a
Argentina e Chile, mais assassinas do que a nossa. A Argentina utilizou as
duas, da cela escura e dos torturados jogados no mar. O Chile não usou nenhuma.
PS4 – A outra “criatividade” da Grã-Bretanha, largamente
usada na Argentina. No Brasil, examinaram mas não concluíram. Idem, idem, no
Chile, onde assassinaram o presidente Salvador Allende.
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