Sexta, 11 de novembro de 2015
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
A Pública analisou todos os boletins de ocorrência das mortes
cometidas por policiais militares em 2014: roubos motivaram 86% das
operações letais; nesses casos, 17 PMs ficaram feridos e nenhum morreu.
330 vezes PM from Agência Pública on Vimeo.
Foram seis meses de pedidos pela Lei de Acesso à Informação para
obter todos os 330 boletins de ocorrência (BOs) que resultaram em 396
mortes por intervenção policial em São Paulo no ano de 2014. E mais dois
meses para tabular as informações que revelam padrões de atuação nas
ocorrências em que a polícia mata. Os dados foram fornecidos pelo
Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo (Dipol) e
incluem mortes provocadas tanto por policiais militares em serviço como
em folga.
O enredo de uma intervenção letal da
Polícia Militar (PM) em São Paulo começa com um homem jovem e negro
suspeito do crime de roubo nas ruas da capital paulista. A PM sai em
perseguição e, quando o encontra, os policiais são supostamente
recebidos a tiros. Os PMs então “revidam a injusta agressão”, no jargão
dos boletins de ocorrência – ou seja, atiram de volta. E são certeiros:
poucos personagens dessa história sobrevivem. As armas das vítimas da PM
costumam ser de baixo calibre: apenas seis entre as 271 supostamente
apreendidas eram de alta potência, como fuzis ou escopetas. Percebemos
também que as intervenções ocorrem principalmente em locais afastados do
centro expandido, região que concentra as áreas mais nobres de São
Paulo.
Nossa análise levanta dúvidas sobre
os confrontos narrados nos boletins de ocorrência. Frequentemente, os
únicos depoimentos a respeito desses crimes são dos PMs envolvidos, que
alegam serem sempre recebidos a tiros. Entretanto, poucos policiais se
ferem nessas circunstâncias: enquanto 396 vítimas civis morreram, nenhum
PM veio a óbito e apenas 17 ficaram feridos nas ocorrências analisadas
pela Pública.
No ano passado, segundo a Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), oito policiais militares
morreram em serviço e outros 129 ficaram feridos. A maioria desses casos
não ocorreu em situações envolvendo mortes de civis pela PM, como
demonstram os BOs analisados.
A SSP-SP ocultou de suas estatísticas
as mortes provocadas por policiais militares em folga em 2014. Todas as
71 vítimas de PMs fora de serviço mapeadas na pesquisa foram
classificadas como homicídios comuns nos dados da secretaria.
Descobrimos também que há uma
possível subnotificação das mortes por intervenção do Estado em São
Paulo. Cruzamos os boletins de ocorrência com os dados do PRO-AIM
(Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade) da Prefeitura
de São Paulo. No Programa, havia 124 vítimas de morte por intervenção
policial na cidade em 2014. Com a pesquisa da Pública, esse número mais que dobrou: outras 153 vítimas foram identificadas e incorporadas ao banco de dados do PRO-AIM.
Era impossível ficar só nos BOs. Em
alguns casos, os termos policialescos ocultam mortes com fortes indícios
de execução, como descobrimos em campo.
“Pra quê que fizeram isso? Os muleques não tavam nem armados”
Noite de 25 de outubro de 2014, zona
leste de São Paulo. Israel Bronzeli e o adolescente Cristian do Carmo
andavam pelas ruas próximas ao Shopping Itaquera em um Hyundai HB20
vermelho. Segundo a versão do BO, que contou só com os depoimentos dos
policiais militares envolvidos na ocorrência, o carro acabara de ser
roubado pela dupla.
Quem dirigia o carro era Israel,
jovem de 20 anos. Ambos eram moradores de uma comunidade próxima.
Enquanto trafegavam nas ruas estreitas, eles se depararam com duas
viaturas da Força Tática, um dos grupos de elite da PM paulista. Os dois
rapazes foram perseguidos e encurralados.
Como as outras quase 400 vítimas de
nossa pesquisa, Cristian do Carmo morreu baleado, com tiros no rosto e
no peito. Israel foi alvejado quatro vezes, mas sobreviveu ao coma,
passou por cirurgia e, do leito do hospital, foi direto para o Centro de
Detenção Provisória de Pinheiros.
No BO 765/2014, registrado no 64º DP,
os policiais repetiram a versão clássica dos casos de morte por
intervenção policial (antigos autos de resistência) para contar o que
ocorreu na abordagem de Cristian e Israel. Segundo os agentes, ao
encurralarem o HB20, eles foram recebidos a tiros pelos dois jovens e
tiveram de revidar.
O Ministério Público (MP) não
questionou a narrativa da polícia. Apenas cinco dias depois dos tiros, o
promotor Nelson dos Santos Pereira Júnior, então no IV Tribunal do Júri
da Capital, mandou arquivar o inquérito da morte de Cristian sem
investigar nada além do que foi dito pelos policiais. Nem mesmo o laudo
necroscópico do cadáver do adolescente foi anexado. Na televisão, o caso foi contado exatamente como consta no BO.
Dessa vez, porém, havia um sobrevivente, Israel Bronzeli, que se tornou alvo de uma ação penal.
Valendo-se quase que exclusivamente da versão dos agentes de segurança,
o MP denunciou Israel por quatro tentativas de homicídio contra os PMs,
roubo, corrupção de menores, porte ilegal de arma e adulteração de
sinalização de veículo.
A juíza Ana Helena Rodrigues Mellim
acatou a denúncia três dias depois. Mas, com o processo em curso, os
defensores públicos responsáveis pelo caso encontraram provas que
desmentiam a versão dos policiais, incluindo duas testemunhas oculares.
Ambas depuseram em juízo e disseram ter visto os dois jovens descerem
com as mãos para cima ao serem abordados pela Força Tática. Uma dessas
testemunhas filmou os momentos seguintes ao suposto confronto. Na
filmagem do celular, ela questionou atônita: “Nossa, mas pra quê que
fizeram isso, né? Os muleques não tavam nem armados”.
Outra prova contundente contra a
versão dos policiais veio do laudo necroscópico de Cristian. O documento
revelou que o adolescente havia sido alvejado de muito perto.
O
laudo necroscópico de Cristian mostra o halo de tatuagem, marca
característica de disparos à curta distância (Foto: Reprodução)
“O processo tinha sido arquivado sem o
laudo necroscópico do Cristian, que mostrava onde ele tinha sido
atingido. O laudo mostrou que um orifício de entrada tinha sido no rosto
dele e que tinha ficado uma zona de tatuagem [manchas de pólvora próximas à perfuração de bala características de disparos feitos a curta distância]. O que mostra que o tiro foi a muito pouca distância, se não à queima-roupa”, explica a defensora Nancy Flosi.
“Isso provou que os policiais estavam
mentindo”, continua a defensora. “Os policiais falaram que eles
[Cristian e Israel] saíram atirando e que tiveram que se defender dando
disparos, ou seja, os policiais estariam longe. Mas o laudo mostrou que o
Cristian foi executado. Isso é um tiro de execução encostado no rosto”,
diz.
A versão de Israel para os fatos
também veio à tona durante o processo. Ele disse que estava em casa na
noite do crime quando alguns amigos seus chegaram com o HB20 roubado.
Era noite de baile funk e o jovem pediu para dirigir o carro até lá. Os
amigos que teriam praticado o roubo desceram do carro e ele embarcou com
Cristian. Encontraram as viaturas no caminho do baile.
Em 10 de setembro de 2015, prestes a
completar um ano preso no CDP, Israel recebeu uma sentença de
impronúncia, ou seja, a juíza entendeu que não havia provas para que ele
fosse levado a júri pelas tentativas de homicídio. “Em razão dos
depoimentos firmes das testemunhas de defesa no sentido de que o réu
[Israel] não efetuou nenhum disparo; bem como o laudo necroscópico de
Cristian constando zona de tatuagem, não se pode considerar haver
indícios sérios de que o réu tenha efetuado qualquer disparo”, decidiu a
magistrada Liza Livingston.
Vanda Bronzeli, a mãe de Israel, perdeu seu outro filho, Washington, assassinado em uma chacina neste ano (Foto: Reprodução)
Israel segue preso por ter
antecedentes criminais de receptação e porte de arma, além da suposta
prisão em flagrante por roubo. O processo deve ir para outra vara para
que se decida por quais crimes desta ocorrência ele responderá.
A juíza pediu também que os autos
fossem remetidos ao MP para que, diante das novas provas, este decidisse
se o inquérito contra os policiais militares deveria ser reaberto. Até
agora o MP não se manifestou, e os PMs não serão julgados pela morte de
Cristian. A Pública pediu uma entrevista ao promotor Nelson dos Santos Pereira Júnior, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
Em juízo, a vítima do roubo do carro não reconheceu Israel como o autor.
PM matou mais de um por dia em São Paulo
Entre as 396 mortes por intervenção
policial ocorridas em São Paulo no ano de 2014, a morte de Cristian é
emblemática: em vários pontos, esse enredo se encaixa nos padrões das
ações letais da PM delineados pelos BOs.
O roubo, crime que motivou a
abordagem policial a Cristian e Israel, é disparado o delito que mais
leva a PM a matar em São Paulo. Das 330 intervenções policiais
analisadas, 284 foram motivadas pelo crime de roubo, o equivalente a 86%
dos casos. Crimes mais graves, como o homicídio, por exemplo,
resultaram em apenas duas intervenções letais. Curiosamente, os dois
homicídios que levaram a PM a matar haviam sido cometidos contra
policiais militares.
Outro traço marcante da atuação da
PM: 91% das intervenções policiais que resultaram em morte de civis
ocorreram fora do centro expandido, região demarcada pelas marginais
Pinheiros e Tietê, avenidas Bandeirantes, Tancredo Neves, Juntas
Provisórias, Luiz Inácio de Anhaia Melo e Salim Farah Maluf. Apenas
quatro das 396 mortes analisadas ocorreram no centro administrativo de
São Paulo, área correspondente da Subprefeitura da Sé.
A letalidade também se concentra em
áreas mais pobres, como a região onde Israel e Cristian moravam. Os dez
Distritos Administrativos (DAs) mais ricos de São Paulo registraram 14
das 396 mortes, 3,5% do total. A concentração fica ainda mais evidente
quando se leva em conta a área desta região. Embora esses bairros ocupem
uma área 17 vezes menor que o resto de São Paulo, a taxa de mortalidade
policial é 27 vezes menor. Ou seja, há uma sobrerrepresentação desta
violência nas periferias.
Quem a PM mata?
O cruzamento dos boletins de
ocorrência com os dados do PRO-AIM mostra que, assim como Cristian, a
vítima típica dos homens fardados é jovem, negra e do sexo masculino.
Das 277 vítimas analisadas no PRO-AIM, 241 eram jovens, ou seja, tinham
entre 15 e 29 anos. Com um detalhe alarmante: quase um terço delas eram
menores, com idade entre 13 e 17 anos. Os negros (grupo étnico que
inclui pretos ou pardos, segundo o IBGE) também foram maioria: 65% das vítimas verificadas no PRO-AIM.
Há, porém, casos em que os inquéritos
da Polícia Civil não conseguiram chegar nem sequer ao nome das vítimas.
Em pelo menos 14 das 396 mortes analisadas, as autoridades ainda não sabem nem quem morreu.
A impunidade é um dos fatores do medo
de falar, de se expor e denunciar casos de violência policial. Nosso
levantamento revela que 51 dos 330 casos de mortes praticadas por PMs
tiveram seus inquéritos arquivados no Tribunal de Justiça e nem sequer
evoluíram para uma ação penal, exatamente como teria ocorrido no caso de
Cristian se não houvesse um sobrevivente.
A reportagem da Pública visitou
cerca de 15 famílias encontradas a partir dos dados dos BOs e as
negativas eram frequentes. “Vocês vêm, fazem a matéria de vocês e vão
embora. E a gente que fica aqui?” Essa foi, com variações, a frase que
mais ouvimos delas, e quase sempre ficávamos sem resposta.
“Meu filho não era um bandidozinho de viela”
Em meio à tabulação dos dados, um ônibus queimado na avenida Belmira Marin, no Grajaú, chamou nossa atenção. Ele era parte de um protesto que os moradores do bairro organizaram contra a morte do estudante Yago Ikeda Barreto, jovem negro morto aos 16 anos pelo cabo da PM em folga Evandro Gonçalves Xavier no dia 16 de outubro passado.
O cabo afirmou que havia comprado um
iPhone no site de compras OLX e que, na noite em que Yago morreu,
acertara com o suposto vendedor o pagamento em dinheiro do celular. A
negociação havia sido tratada com outro rapaz de nome Anderson, com
quem, conta Evandro, combinara de se encontrar no bairro, às 18h.
Segundo o cabo, por volta das 21h15
daquele dia, chegou à rua combinada, mas não conseguiu encontrar o
número informado. Em contato com o interlocutor, combinou outro local:
um supermercado próximo ao terminal Grajaú. Chegando lá, o tal de
Anderson teria pedido que Evandro o acompanhasse à sua casa para buscar o
celular. Quando o cabo se recusou a ir, Anderson anunciou o assalto e
ele reagiu dizendo que era policial militar. Sempre segundo a versão do
cabo, Anderson fugiu para dentro de uma viela próxima, e Yago, que
estava atrás do policial e também participava do assalto, teria começado
a atirar. Evandro conta que “ouviu um estampido de arma de fogo” e
revidou com cinco tiros de sua pistola calibre .40 de propriedade da PM.
Yago correu para a mesma viela que Anderson, mas foi atingido por um
tiro na região da escápula e caiu no chão.
A história foi confirmada
parcialmente por duas testemunhas (uma amiga que dirigia o carro de
Evandro e um segurança de um comércio próximo). Entretanto, nenhuma arma
foi encontrada com Yago e a explicação do BO para isso é curiosa:
quando o menino caiu no chão após ter sido alvejado por Evandro,
supostos comparsas de crime correram até o cadáver, pegaram a arma e
fugiram.
“Mataram
um inocente, uma criança. E ainda inventaram uma história para denegrir
a imagem do meu filho, dizendo que ele era ladrão” (Foto: Reprodução)
Essa versão estampada no BO traz
indignação e revolta à família de Yago. “O meu maior objetivo agora é
mostrar pra todo mundo que o meu filho não era um bandidozinho de viela.
Meu filho morto foi morto injustamente. Mataram um inocente, uma
criança. E ainda inventaram uma história para denegrir a imagem do meu
filho, dizendo que ele era ladrão”, protesta Rosineide Cristina Barreto,
mãe de Yago.
A família alega que há outras
testemunhas não ouvidas na investigação e que os fatos se deram de forma
diferente da história contada no BO. A reportagem da Pública procurou essas testemunhas, mas ninguém quis falar.
Conseguimos apenas reconstruir o que
aconteceu depois da morte de Yago, naquela sexta-feira. Até a
segunda-feira seguinte, não se sabia o que havia ocorrido porque o
garoto, que morava com a avó, tinha ficado de ir ajudar a mãe, uma
cuidadora de idosos, no trabalho. Enquanto na casa da avó os familiares
pensavam que ele estava com a mãe, para Rosineide o garoto estava com a
avó. Foi só na segunda-feira, quando ele demorou para chegar da escola,
que a família se deu conta de que não tinha tido notícias do garoto
durante todo o fim de semana.
Esse sofrimento adicional poderia ter
sido evitado: Yago foi identificado na hora da morte. Mas nos quatro
dias seguintes a família não foi avisada de sua morte. Na segunda-feira à
noite, a tia de Yago, Roseane Barreto, tentou registrar um boletim de
ocorrência, mas foi orientada a fazê-lo pela internet. Como ela não
conseguiu, no dia seguinte pela manhã, foi ao 101º DP para registrar o
desaparecimento do sobrinho. No mesmo distrito, já havia um BO da morte
de Yago, mas ela não foi avisada.
A notícia definitiva veio de forma
cruel, por puro acaso. Um vizinho de Yago trabalhava no Instituto
Médico-Legal (IML) do Brooklin, na avenida Luiz Carlos Berrini. No meio
do expediente, ele tomou um susto ao abrir uma gaveta do IML e dar de
cara com o cadáver de Yago. O vizinho foi pessoalmente contar à família e
daí restaram só as lágrimas.
A morte se encaixa no padrão de
atuação da PM levantado nos BOs tabulados, que, muitas vezes, escondem
casos de execução: Yago era jovem, negro, morador de periferia,
supostamente cometeu um roubo e atirou contra o policial. Cabe agora à
Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo
(DHPP) esclarecer as circunstâncias da morte do adolescente.