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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Fuzilamento no Rio e violência contra os estudantes em SP: duas faces de uma polícia anacrônica

Quinta, 3 de dezembro de 2015
Da Ponte

As PMs realizam, como estamos assistindo em São Paulo, o “trabalho sujo” em nome do governo contra movimentos sociais. No limite, as PMs não trabalham para o Governo, elas trabalham para os governantes que sabem contar com uma proteção bastante efetiva das PMs

Rafael Alcadipani, especial para Ponte Jornalismo
Caramante
Jovem que participava de protesto contra a “reorganização escolar” da gestão de Geraldo Alckmin (PSDB) é perseguida por PMs | Foto: Sérgio Silva
Jovens são literalmente fuzilados sem mais nem porque por PMs no Complexo da Pedreira, Rio de Janeiro. Estudantes que protestam contra uma mudança imposta pelo Governo do Estado de São Paulo em suas escolas em diferentes “incidentes insolados” sofrem várias formas de violência em ações conduzidas pela PM paulista quase que diariamente desde que as ocupações de escolas públicas e outros protestes relacionados começaram no estado.


Em um olhar desatento, ambos eventos não tem nenhuma relação: ocorreram em diferentes unidades da federação, foram perpetrados por polícias diferentes e possuem níveis de gravidade diferentes. Não resta dúvida que cada uma das forças policiais do Brasil possui as suas peculiaridades tanto positivas quanto negativas.

Porém, se ampliamos um pouco a análise podemos perceber que tais eventos não estão tão desconectados. PMs, só em 2015, praticaram atos de extrema violência contra professores de escolas públicas em greve no Paraná e em Brasília, apenas para citar alguns casos mais escabrosos. No caso de Brasília, o Secretário de Segurança pediu demissão do cargo porque queria punir os policiais que flagrantemente atuaram de forma desproporcional. O Governador do Estado ficou do lado da PM.

PMs também estão, direta ou indiretamente, envolvidos em execuções extrajudiciais que aconteceram em Osasco e Barueri (Grande São Paulo), Manaus (AM) e Fortaleza (CE), relembrando alguns casos que ganharam notoriedade. 

As PMs do Brasil reprimem manifestações com constante uso desproporcional da força e pessoas são diariamente executadas pelas armas da PM. É incrível a facilidade com que PMs usam spray de pimenta, cassetetes, balas de borracha e bombas contra pessoas desarmadas que reivindicam direitos, assim como é impressionante a facilidade com que matam.

É impossível esquecer a execução sumária de um menino em uma favela do Rio de Janeiro ou PMs uniformizados filmados “montando”  uma cena de resistência seguida de morte após executarem friamente uma pessoa em São Paulo. Só não vê quem não quer: há um claro e nítido padrão de atuação violenta e ilegal por parte das PMs do Norte ao Sul do Brasil. Algumas forças são menos violentas, outras um pouco mais, mas o padrão de atuação é marcado pelo abuso, violência e desrespeito com as leis e com as pessoas ao redor do país. A pergunta que fica é porque este padrão se mantém?

Em 20 anos, PMs de SP mataram mais do que todas as polícias dos EUA no mesmo período
 
Há inúmeros fatores que devem ser levados em conta para responder a pergunta. Primeiro, parte de nossa sociedade compactua com a violência policial e, inclusive, percebe tal violência como solução adequada para nossos problemas. Dentro desta lógica , policiais são fruto do meio em que estão. Segundo, os controles sobre os PMs é, na sua maioria, interno e cheio de vícios de origem.

Muitos membros da PM defendem que sua corregedoria é rigorosa, mas análises acadêmicas consistentes, como a do Prof. Sandro Cabral, da UFBA, mostra que as corregedorias atuam fortemente em crimes de corrupção, mas têm uma atuação muito mais tênue em casos em que envolve violência policial.

Corregedorias internas ficam reféns, sempre, da lógica corporativista. Não precisamos ir muito longe: quais foram os policiais punidos após as manifestações de Junho de 2013? Ninguém tem a resposta. Terceiro, nenhum governo controla efetivamente as PMs no Brasil. Muitas delas rodam a sua própria folha de pagamento e muitos de seus comandantes possuem benefícios muito além do que seria razoável supor para um agente público. Um coronel, em vários estados, possui mais benefícios do que um secretário estadual.

A falta de controle acontece pelo fato de que as PMs realizam, como estamos assistindo em São Paulo, o “trabalho sujo” em nome do governo contra movimentos sociais. No limite, as PMs não trabalham para o Governo, elas trabalham para os governantes que sabem contar com uma proteção bastante efetiva das PMs.
 
Quarto, as PMs foram sequestradas por seus comandantes. Os comandos das PMs acreditam que eles são donos da polícia e esquecem que a PM é da sociedade, não dos comandantes. Os comandos das forças policiais sabem quem são os PMs que mais matam, mas pouco fazem para retirá-los da corporação. Ser violento é um valor para muitos PMs. Os oficiais que tentam fugir desta lógica, muitas vezes, têm uma vida muito difícil dentro da corporações, sendo perseguidos por seus chefes. 

Quinto, o Ministério Público tem uma atuação extremamente fraca e conivente quando se tratam de crimes cometidos por policiais. A violência da PM é secundada pelo MP.  Como disse o cineasta José Padilha em entrevista recente, o absurdo foi naturalizado no Brasil.
 
É inconcebível pensar que em qualquer lugar minimamente civilizado o secretário de segurança e o chefe de polícia iriam permanecer em seus respectivos cargos após o fuzilamento sumário de jovens que não confrontaram ou tentaram confrontar as forças policiais. 
 
Resumindo a história, a relação entre o fuzilamento dos jovens cariocas e a violência da PM contra os estudantes de São Paulo são duas faces da mesma moeda, duas faces do sistema que permite que tenhamos uma Polícia Militar  que não presta contas a ninguém. O problema se dá no fato que de as pessoas confiam cada vez menos na polícia e cada vez mais irão cobrar mudanças. Ou as PMs mudam a sua essência, ou mais cedo ou mais tarde, a população que a cada dia que passa não suporta mais apanhar tanto, irá clamar pelo seu fim.

Rafael Alcadipani é pesquisador Visitante no Boston College e Professor da FGV-EAESP