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A concentração de renda no Brasil só perde para a do Catar, um emirado do Oriente Médio dominado por uma monarquia absolutista islâmica, sustentada pela exportação de petróleo e gás natural, com uma população em torno de 1,9 milhão de habitantes, dos quais apenas 250 mil são nativos. O restante da população é formado por estrangeiros. Protetorado britânico até 1971, é, hoje, a sede do Comando Central militar dos EUA na região.
Nada, portanto, que nos sirva de exemplo. Mas temos muito de Catar. A parcela dos 1% mais ricos do Brasil concentra quase 30% da renda nacional, e os 10% mais ricos ficam com 42% da renda total do país. E ninguém cora! Segundo o PNUD –Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, somos, em queda desde 2017, o 79ª país do mundo em desenvolvimento humano e bem-estar da população (avaliados com base nos indicadores de saúde, educação e renda). Chega a 23 milhões o número de desempregados, subempregados e desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego). Constam como “auto-empregados” 24,4 milhões de brasileiros, dentre eles um número incontável de motoboys, uberistas e equivalentes, novos tipos de trabalhadores sem trabalho e salário fixos, sem carteira, sem vínculo empregatício de qualquer sorte, sem profissão e sem vida sindical, sem proteção social, sem aposentadoria, multidões que engrossam os exércitos de reserva urbanos (mas sentindo-se, eis a cruel ironia, donos do seu nariz), um subproletariado incapaz de se representar politicamente. O responsável por essa miséria não é o subdesenvolvimento, mas a concentração de renda, ou as desigualdades sociais inerentes à nossa experiência de capitalismo predatório que vai sendo acentuada pelo bolsonarismo, a diabólica associação do neoliberalismo bárbaro com o autoritarismo.
Não há desenvolvimento se não há aumento da renda per capita, já nos ensinava, décadas passadas, o mestre Celso Furtado, e mesmo essa renda nada significa se não vier acompanhada de sua redistribuição. O caso brasileiro de hoje é dramático: cai a renda per capita e aumenta a concentração de renda. Realiza-se o sonho do neoliberalismo, que não deu certo em nenhuma parte do mundo e que, experimentado no Chile, deu no que deu. Na Argentina levou o país à bancarrota.
Não somos pobres, mas ricos e injustos, um país com uma minoria de endinheirados e multidões de pobres cujas expectativas não atendidas crescem tanto quanto a impaciência que um dia, sempre inesperadamente para os príncipes, irrompe como explosão social. O que hoje ocorre em nosso continente deve estar sugerindo alguma reflexão a quem ainda está disposto a pensar no futuro do país que, sob o bolsonarismo, adotou como regra o assalto à razão.
Somos uma sociedade dividida em classes e o Estado está a serviço da classe dominante e dos estamentos a serviço da estrutura de poder, onde pontificam os príncipes: juízes de um modo geral, procuradores em sua maioria e os membros dos diversos ministérios públicos, bem como os militares, desde sempre, mas agora mais do que nunca.
Depois da segunda reforma trabalhista (há a do Temer e há, em marcha continuada, mediante projetos de lei, e, até de medidas provisórias, a do capitão), e imediatamente após a perversa reforma do sistema previdenciário público, o governo anuncia uma reforma administrativa draconiana da qual só se sabe, pela voz do ministro da economia, que promoverá restrições aos direitos dos funcionários públicos, civis evidentemente. Porque o direito, nessa democracia de fancaria, não pode ser igual para todos, uma utopia que o ainda ministro da educação deve atribuir a uma maquinação do “marxismo cultural”. Assim, para os civis, austeridade, e para os militares (os oficiais, não os praças), veremos, a bonança.
Quando a concentração de renda e a desigualdade social alcançam os níveis acima referidos, quando os investimentos públicos são contidos para fazer face a uma estúpida política monetarista que privilegia o ajuste fiscal – a grande demanda do sistema financeiro –, aguçam-se a crise social e seus efeitos sobre o trabalho e os trabalhadores. Longe de incentivar a economia e proteger o trabalho, também atingido pela inevitável (e desejada) introdução de novas tecnologias, pelo advento da era digital, da robótica e da inteligência artificial, o governo liberal-autoritário restringe os direitos trabalhistas e desarticula a cadeia de proteção social. No mesmo sentido, o sistema previdenciário público e civil é desmantelado, deixando trabalhadores e aposentados sem cobertura. E o capitão já cogita de apenar com impostos o seguro-desemprego.
Com a chamada “PEC emergencial”, apresentada com o suposto propósito de reestruturar as finanças públicas, o governo prevê a redução de salários dos funcionários públicos da União, dos Estados e dos municípios.
Em compensação, o que deveria ser a reforma da previdência para civis e militares com “regras iguais para todos” como anunciavam Guedes e Maia transformou-se em reajuste de salários e reestruturação das “forças da ordem”.
É evidente que a benesse não está sendo dada de graça; ela olha, grata, para o passado remoto e para os serviços prestados pelos comandados do general Villas Bôas, mas talvez mire com mais atenção ainda para a sustentabilidade de um governo impopular.
Com o apoio do Congresso (muito estimulado por generosas liberações, pelo Planalto, de ricas verbas para os colégios eleitorais de senadores e deputados), a cumplicidade de quase todos os partidos e o silêncio das massas, e, assim, com deputados e senadores livres da pressão dos eleitores, silentes, o capitão, na mesma safra em que ceifou direitos dos trabalhadores e dos aposentados civis, em nome de uma falsa “política de austeridade”, promoveu aumentos, adicionais e vantagens nas carreiras e na forma de se aposentar dos militares, que, por exemplo, vão para casa com o último salário da ativa, quando o trabalhador brasileiro, a grande massa da mão de obra, se aposenta com um percentual calculado em cima de sua contribuição ao sistema previdenciário. Conquistas da reforma especiosa, o adicional por curso pode chegar a 73% sobre o salário, e o adicional por disponibilidade pode chegar a 32%. O militar ainda aufere um abono de oito salários integrais (eram quatro) quando passar para a reserva. Se por acaso for expulso da força, sua esposa passa a receber integralmente o salário. A previdência dos militares não estabelece idade mínima para a transferência para a reserva, ao contrário da regra que se aplica aos civis para a aposentadoria.
Quando o governo tonitruava o “fim dos privilégios”, na verdade afagava uma poderosa comunidade com reajuste (aumento) de salários e restruturação das carreiras, que deve custar R$ 86,85 bilhões aos cofres públicos (O Estado de SP, 5/12/2019).
Se os militares são privilegiados em face dos civis, há militares mais privilegiados do que outros. É esta, por exemplo, a diferença de tratamento da reforma quando se trata oficiais e suboficiais – soldados, cabos, sargentos e subtenentes –, nada menos de 82% do efetivo de nossas tropas. Se o aumento, já valendo para 2020, dos vencimentos da casta superior das forças armadas, seus oficiais, será de 45%, o aumento destinado ao restante da tropa, os subalternos, é de apenas 4%. Se os adicionais de disponibilidade e de habilitação, como vimos, beneficiam os oficiais com 32% e 73%, no que diz respeito aos suboficiais, sargentos e praças os benefícios se reduzem a 5 e 12%.
A injustiça se faz em casa porque a caserna reproduz o estado autoritário e divide a tropa entre os que habitam a casa grande e a ralé que não pode sair da senzala. É um microcosmo do grande Brasil colonial, que sobrevive entre nós.
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Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia