Do Portal Bonifácio*
08/12/2019
Os meios acadêmicos
norte-americanos despertam para a atualidade e a importância da questão
nacional.
Há
menos de 30 anos, os centros liberais celebravam triunfalmente a vitória, tida
como definitiva, do cosmopolitismo globalizado sobre o nacionalismo e
decretavam a “questão nacional” como algo superado de uma vez por todas no
caldeirão (ou, de maneira “cosmopolita”, melting pot)da
globalização. Ideólogos liberais canônicos no período, como Francis Fukuyama e
Kenichi Ohmae, vislumbravam a tendência irreversível de substituição das nações
pelo “mercado mundial” e do nacionalismo pelo individualismo competitivo
característico das principais metrópoles capitalistas. Finalmente o mundo seria
uma “aldeia global”, com os países deixando de lado suas diferentes e
históricas construções políticas, linguísticas, religiosas e culturais,
passando a ser todos “nova-iorquinos”, nascidos ou não em Nova Iorque,
bem-vindos ou não em Nova Iorque.
Contudo,
em 2019, o cenário assume contornos muito diferentes. O globalismo é contestado
não apenas por grande parte das sociedades, seja dos próprios países centrais
ou fora deles, mas também, cada vez mais, pela própria elite política e
intelectual desses países.
Napoleão
Bonaparte: projetou o poder militar e os valores da França burguesa para a
Europa e para o mundo.
O
consenso anti-nacional, apresentado como condição inescapável do presente e do
futuro, tornou-se passado, e os debates sobre a importância da Nação são
reacendidos. Manifestação disso é a edição de Março/Abril de 2019 da renomada
revista estadunidense Foreign Affairs, tradicional porta-voz dos
setores oficiais dos EUA. O tema não deixa margem para dúvidas: O Novo
Nacionalismo. Os punhos cerrados e anônimos na capa deixam claro o principal
agente nacionalista: o povo, reduzido à condição de massa indiferenciada, bem
ao gosto do pensamento que fundou e governa os EUA. Não admira que o termo
“populista”, com forte carga depreciativa no establishment acadêmico
estadunidense, frequentemente utilizado para rotular os líderes e os grupos
políticos que mobilizam o sentimento nacionalista de grande parte das
sociedades.
Depois
do Brexit, da eleição de Donald Trump, do soerguimento de
países francamente nacionalistas como Rússia, China e Índia e da sobrevivência
de regimes de fato nacionais como os de Cuba, Venezuela, Irã e Coreia do Norte,
torna-se impossível a qualquer observador manter as ilusões “pós-nacionais” que
se sucederam à queda do Muro de Berlim. Setores consideráveis da “elite do
poder” dos EUA e do bloco econômico-militar norte-atlântico como um todo
descobrem que, apesar das suas veleidades universalistas, os sentimentos morais
das sociedades continuam inclinando-se para as suas respectivas nações. Se o
andar de cima dos centros capitalistas define a si próprio como o filósofo
escocês David Hume (1711-1776) definia os acionistas das grandes empresas –
“homens, sem ligação com o Estado, que podem usufruir de sua renda em qualquer
parte do globo onde decidam residir, que naturalmente ocultar-se-ão na capital
ou em grandes cidades”[2] – o povo, necessariamente,
insere-se material e afetivamente em comunidades nacionais específicas.
Enquanto o corpo editorial da Foreign Affairs enxerga o
retorno do nacionalismo como uma “vingança” e procura destrinchar esse fenômeno
inesperado (ao menos para a elite do poder dos EUA), as sociedades, seja no
centro ou na periferia do mundo, tendem a compreender o nacionalismo como um
âmbito de pertencimento comum maior e mais sólido que os caprichos liberais,
quer sejam econômicos ou culturais.
O
que os autores entendem como sendo, propriamente, uma nação? Segundo a
definição breve de Jill Lepore em seu artigo nessa edição, nação é “um povo com
origens comuns”, e o Estado-nação “uma comunidade política governada por leis
que unem um povo com uma suposta ancestralidade comum” (p. 12). O nacionalismo,
como afirma Andres Wimmer em seu artigo na revista, é um fenômeno recente e tem
suas origens nos albores da Idade Moderna na Europa (p. 28), e Lars-Erik
Cederman, também nessa edição, identifica na Revolução Francesa o início da
centralidade do nacionalismo, definido por ele como “a ideia que as fronteiras
do Estado devem coincidir com as comunidades nacionais” (p. 61). Os autores
diluem, em seus artigos, a definição mais ampla de Nação dada, por exemplo,
pelo filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973) em seu livro O Homem
e o Estado (1951): a nação é “uma comunidade de padrões de
sentimento”, formada historicamente em sua singularidade e detentora de um
solo, de uma língua e de instituições próprias, que compõem uma herança
nacional a partir da qual o ser humano pode desenvolver e manifestar suas
múltiplas potencialidades.
José
Bonifácio: concebeu uma Nação próspera, socialmente equilibrada e independente,
plataforma que permanece atual
Seria,
contudo, exato afirmar que há um “retorno” do nacionalismo? Ou não seria mais
exato afirmar que, na verdade, as pressões coletivas de protesto contra a
globalização neoliberal fizeram as elites dos EUA voltarem a enxergar aquilo
que sempre praticaram mas que, de uns tempos para cá, resolveram mascarar para
facilitar a aceitação da sua hegemonia no resto do mundo? O que se chama de
cosmopolitismo nada mais é do que a generalização dos modos de vida e da visão
de mundo predominantes nos centros metropolitanos capitalistas, boa parte deles
sediados nos EUA.
A
dita “globalização” era e é apenas o invólucro do nacionalismo expansionista
estadunidense, quer as elites desse país tenham tido consciência disso, quer
não. As grandes corporações financeiras, industriais, de mídia e acadêmicas
permaneceram sediadas nos EUA e alinhadas ao poderio militar e diplomático
desse país, ditando inclusive os critérios de avaliação do desempenho em quase
todo o mundo; a hegemonia inconteste do dólar e o seu monopólio de emissão
pelo Federal Reserve, banco central dos EUA, nunca deixou dúvidas
de quem eram os “caciques”, por assim dizer, da “aldeia global”; a imposição do
inglês sobre as línguas vernáculas dos países não-anglófonos descaracterizou
grande parte delas, abrindo espaço para a generalização de expressões, signos,
significados e construções sintáticas alheias aos povos não-estadunidenses;
organizações religiosas de matriz protestante típica dos EUA se espalharam sobretudo
nos países periféricos, tomando o lugar de crenças e religiões tradicionais.
Além
de tudo isso, os EUA nunca abriram mão do nacionalismo e das mais diversas
formas de protecionismo e intervencionismo estatal para promoverem as suas
empresas. O complexo industrial-militar, cujo maestro é o Pentágono, teve forte
e continuado crescimento desde a década de 1980. Apesar de todo o palavreado
acerca das virtudes do “livre-mercado” e do “capital global”, o financiamento
direto da indústria nacional estadunidense nunca deixou de estar inserida no
orçamento militar do país, mostrando que, na prática, a defesa da produção
nacional sempre foi considerada questão estratégica e de segurança nacional, no
mesmo espírito nacionalista de George Washington e Alexander Hamilton, no
século XVIII.
Floriano
Peixoto: o marechal alagoano consolidou a República e pacificou o País com
espírito nacionalista.
As
compras governamentais de produtos nativos, estabelecida pelo Buy
American Act de 1933, mantiveram-se como prática corrente e
sistemática dos diferentes governos dos EUA, e essa lei jamais foi revogada ou
colocada em desuso. A Emenda Exon-Florio, de 1988, em pleno “fim da história”,
permite ao presidente dos EUA vetar, por motivos de segurança nacional, a
aquisição de empresas nacionais por empresas estrangeiras, e desde então foi
utilizada por todos os presidentes. Existem inúmeras restrições legais a
investimentos estrangeiros nos setores de energia, mineração, telecomunicações,
serviços financeiros, propriedade de terras e transportes marítimos e
aeronáuticos. Grandes agências governamentais e empresas estatais vitais para a
liderança econômica e tecnológica dos EUA e para a integração nacional desse
país, como a NASA (aeroespacial), a DARPA (defesa), o Exim Bank (banco
de desenvolvimento), o United States Army Corps of Engineer (obras
públicas e infraestrutura), o Tennessee Valley Authority (desenvolvimento
regional), Amtrak (ferrovias) e o United States Postal
Services (correios), jamais tiveram sua privatização, ainda mais para
grupos estrangeiros, seriamente cogitada. Além disso, a USAID (United
States Agency for International Development), criada em 1963, e o NED (National
Endowment for Democracy), criado em 1983, são órgãos públicos voltados para a
difusão das ideologias, dos valores culturais e dos interesses geopolíticos e
geoeconômicos dos EUA ao redor do mundo, cuja atuação foi redobrada durante o
período do suposto “fim da história”.
Além
disso, foram organismos estatais/nacionais dos EUA que buscaram convencer os
demais países de que o nacionalismo e o Estado-nação eram fenômenos
ultrapassados e obsoletos, e que não havia alternativa senão a subjugação
política, econômica, ideológica e militar de todos os países a um sistema de
“globalização” e de “livre-mercado” que, na verdade, era a forma dissimulada de
hegemonia dos EUA no mundo. A concepção de “fim da história”, elaborada por
Francis Fukuyama, foi, irônica e significativamente, lançada ao grande público
em artigo de 1989 na revista estadunidense The National Interest (O
Interesse Nacional). O grupo privado Council on Foreign Relations (CFR),
que publica a mesma revista Foreign Affairs, historicamente abriga
grandes quadros do Estado … dos EUA, como secretários de Estado e diretores da
CIA, e busca discutir as relações internacionais e estabelecer diretrizes do
interesse dos … EUA. Todos os diretores do CFR são estadunidenses e ligados à
elite do poder desse país. A questão nacional, cujo retorno aparentemente
espanta a Foreign Affairs, nunca deixou de ser sua linha-mestra. O
fim do nacionalismo, a globalização e o multiculturalismo nunca foram
empiricamente verificados na trajetória do CFR e da Foreign Affairs.
Ainda
que, de fato, boa parte da intelectualidade acadêmica “liberal” (no sentido do
termo nos EUA, próximo a progressista) desse país tenha desprestigiado as
narrativas nacionalistas, deixando-as ser monopolizadas por setores
chauvinistas e anti-intelectuais, como bem aponta o artigo de Jill Lepore, na
prática histórica o que prevaleceu foi uma política interna e externa voltada
para a afirmação imperialista dos EUA no mundo e sua consolidação como a única
superpotência. A ponte que atravessava o fosso entre a idealização e a história
está visivelmente ruindo, e a questão nacional não pode mais ser escamoteada.
Que o país mais poderoso do mundo constate publicamente a impossibilidade de
negligenciá-la no plano discursivo e moral, apenas atesta a força desse ideário
no século XXI, contrariando a grande maioria dos prognósticos feitos ao longo
das últimas três décadas. Até pouco tempo atrás, era impensável a elite liberal
dos EUA proclamar publicamente, como faz Jack Snyder em seu artigo nessa
edição, que “os Estados-nação permanecem sendo a forma política mais confiável
para alcançar e sustentar a democracia” (p. 60). O fato da linha geral dessa
edição da Foreign Affairs considerar útil haver uma
compatibilização entre algum nacionalismo e os valores
progressistas-identitários e multiculturais significa o reconhecimento da
inescapabilidade da questão nacional e a busca por uma conciliação improvável,
quando há pouco tempo, o nacionalismo era tido como morto e enterrado.
Essa tentativa compensatória de favorecer um nacionalismo “pluralista” para
evitar um nacionalismo anti-liberal não é mais do que a confissão resignada de
derrota ideológica e, portanto, política, do establishment estadunidense,
inclusive em sua própria casa.
Getúlio Vargas
liderou o mais ambicioso e completo projeto de desenvolvimento, integração e
construção do Estado Nacional.
No
momento crítico pelo qual passa o Brasil, grande parte das suas elites
demonstram não acompanhar o espírito dos tempos, estacionada que está nas
ilusões do fim da história, que nem mesmo seus proponentes iniciais, a começar
pelo próprio Fukuyama, acreditam mais.
A
crença cega do atual governo e mesmo de muitos setores oposicionistas nas
virtudes da “globalização” e do “cosmopolitismo”, seja em um verniz
neoconservador, como no caso de muitos dos atuais governantes, ou em um
progressista-identitário, como no caso de grande parte da oposição, dificulta
que nosso País encontre soluções próprias para os inúmeros desafios do século
XXI e o torna vulnerável no xadrez disputado no mais alto nível na arena
geopolítica internacional.
A
classificação de “nacionalista”, que Jan-Werner Müller, em seu artigo nessa
edição, atribui a Bolsonaro, arrolando-o junto a Donald Trump e ao presidente
húngaro Viktor Orbán, é enganosa. Enquanto os governos dos EUA e Hungria
de fato colocam a questão nacional no centro das suas políticas econômicas,
sociais e culturais, o governo brasileiro acredita piamente no mito da
globalização, aliena as empresas e os recursos estratégicos do País até mesmo
para países-vitrine do identitarismo e do multiculturalismo como França e
Noruega e limita-se a importar acriticamente referências políticas e culturais
exógenas, quase que exclusivamente dos EUA, ignorando até mesmo a memória
nacionalista dos governos autoritários militares brasileiros, que ele
supostamente defende. Daí que Pinochet, vedete dos liberais globalistas, é
reiteradamente celebrado pelo presidente brasileiro, enquanto os generais
Ernesto Geisel e Albuquerque Lima sequer são lembrados, e seu legado
sistematicamente destruído no moinho ultraliberal típico do fim da história. O
ministro Paulo Guedes, além de fiador da agenda de liquidação do patrimônio
nacional, é um defensor da “sociedade aberta”, chavão cosmopolita que, desde
Karl Popper, é usado como propaganda anti-nacionalista e
progressista-identitária e multicultural, não por acaso batizando a fundação do
magnata George Soros, de quem Orbán é inimigo jurado. Bolsonaro definitivamente
está muito longe de Trump e mais ainda de Orbán. As sucessivas demonstrações de
fidelidade do mandatário brasileiro ao estadunidense não impediram o segundo de
impor restrições comerciais em série ao Brasil para proteger os agricultores e
as siderúrgicas do seu próprio País, demonstrando, novamente, que o seu lema
“America First” é literal, não simples retórica.
O
nacionalismo do presidente Geisel levou ao reconhecimento do regime de esquerda
em Angola e ao rompimento do Acordo Militar com os Estados Unidos. Hoje
os Estados Unidos contam com a fidelidade incondicional do Itamaraty e do
governo.
Os
países melhor posicionados na atual quadra histórica, como China e Rússia, são
justamente aqueles que não se deixaram seduzir pelo canto da sereia do fim da
história e adentraram o presente século com uma visão clara dos seus próprios
interesses nacionais e da necessidade de preservar a solidariedade
intergeracional presente na concepção de Nação para, a partir das experiências
passadas e de toda a construção histórica particular do país e do povo, galgar
patamares civilizacionais superiores sem renunciar à própria identidade
coletiva e ao próprio pertencimento nacional. Esses países não precisam se
digladiar nos conflitos e desilusões vivenciados pela elite dos EUA, como
atesta a edição em questão da Foreign Affairs.
Que
fique a lição para o Brasil: fora da questão nacional e sem a nação ser
soberana, não há solução que contemple as demandas e os anseios da sociedade. A
elite do poder dos EUA voltou a reconhecer abertamente isso. Cabe à elite
brasileira, se quiser ser de fato uma elite e não uma mera oligarquia colonial,
conhecer, reconhecer e aplicar o mesmo às condições nacionais singulares do
Brasil brasileiro.
[1] Doutorando em Ciência Política
pela Universidade Federal Fluminense (UFF).