Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 7 de dezembro de 2019

A César o que é de César?

Sábado, 7 de dezembro de 2019
Por
Juan Ricthelly

Um dos fragmentos mais citados da Bíblia é aquele onde um grupo de homens tentam colocar Jesus numa situação embaraçosa, o perguntando se era certo pagar imposto a César, no que ele sai brilhantemente da situação cunhando a seguinte frase que os deixou sem reação:

“Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" Mt 25.15

Diante das infinitas possibilidades interpretativas, a minha é simples, com essa declaração, Jesus deixou clara a separação existente entre a Igreja e o Estado, numa época em que a ideia de laicidade nem sequer existia.

Com o passar dos séculos, diante dos resultados negativos da associação entre igreja e Estado, o ser humano compreendeu ao menos formalmente, que o Estado ideal seria aquele onde cada instituição estivesse no seu devido lugar, não havendo religião oficial, com liberdade de culto e tratamento igualitário entre todos os credos.

Desse modo, nenhum culto de adoração a qualquer divindade está acima das leis, devendo cumpri-las integralmente em sua atuação junto à sociedade.

Infelizmente, nem todos parecem se atentar para esse detalhe de conhecimento geral, de modo que aqui em nossa cidade, o Gama, temos uma quantidade lamentável de situações onde instituições religiosas se apropriaram da coisa pública, não aceitando qualquer questionamento sobre essa condição.

Só a título de curiosidade, o Seminário Pavoniano na Quadra 21 do Setor Leste tomou um beco inteiro para si, obrigando a população a contornar toda a quadra para chegar no mesmo ponto onde antes chegavam com alguns passos.

Clique nas fotos para melhor visualizá-las

Abaixo, a área invadida assinalada pela linha poligonal em vermelho


A Assembleia de Deus do Gama (ADEG) invade há alguns anos o Parque Ecológico do Gama e teve recentemente uma obra embargada na justiça com multa diária de R$ 100 mil por descumprimento da decisão, tendo ainda um templo localizado em área invadida no Refúgio da Vida Silvestre Ponte Alta do Gama.

Igreja da Adeg no Parque Ecológico do Gama


A Igreja Assembleia de Deus de Brasília encostou sua cerca no muro da Escola Classe 18, fechando uma das saídas laterais da escola na Quadra 5 do Setor Sul.

Igreja fechou uma das saídas laterais de escola pública na Quadra 5 do Setor Sul do Gama

A Paróquia Santíssima Trindade é uma das maiores invasoras do Parque Ecológico do Gama tendo expandido os seus muros de forma generosa com o passar dos anos... Essas são apenas algumas situações, tantas outras seguramente existem.

Dentre todas elas, o caso que merece uma atenção especial em razão de acontecimentos recentes, é o da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, que tomou para si, sem nenhuma autorização, 3.000 metros quadrados de área pública da Praça do Castelinho no Setor Oeste, simplesmente acharam que podiam, fizeram, ninguém falou nada e o fato parecia consumado até então.

Imagem anterior à invasão de 3 mil metros quadrados na Praça do Castelinho, Setor Oeste do Gama.

A linha vermelha assinala a poligonal da área invadida recentemente. Invasão alvo de ação popular na Justiça do DF.



Parte da comunidade manifestou em diversas ocasiões o seu descontentamento com aquela situação, denúncias foram feitas, providências foram solicitadas e nada se fez, até que finalmente a situação virou objeto de uma Ação Popular, que está exigindo a remoção do alambrado construído e a devolução da área pública invadida. Recordo-me que no começo da década de 2000 a Paróquia Imaculada tentou fazer a mesma coisa no Setor Central, construindo um muro ao redor da quadra, fechando o portão com cadeado, tendo que recuar logo em seguida, o muro segue lá, como lembrança dessa tentativa fracassada de sequestro do espaço público, mas o portão tem que ficar aberto.

Desde então, tenho recebido inúmeras mensagens de desconhecidos e até telefonemas de amigos me questionando sobre a situação, tive até que restringir o nível de acesso aos meus perfis em redes sociais, não permitindo mais que façam comentários e visualizem minhas publicações livremente.

Tomei conhecimento inclusive de um abaixo-assinado que já consta algumas centenas de assinaturas pela manutenção da ocupação irregular do espaço público na Praça do Castelinho, normal, os incomodados possuem todo o direito de lutarem da forma que acreditarem ser eficaz contra o cumprimento da lei.

O que mais intriga, são os argumentos apresentados, alegando que a invasão da praça se justifica em razão da insegurança, da violência, do uso de drogas e até mesmo de prostituição no local!!! Moro no Gama há 28 anos e nunca ouvi falar em prostituição na Praça do Castelinho.

Por mais que a título retórico possamos admitir alguns desses problemas, a verdade é que eles são problemas gerais da sociedade, que não podem de forma alguma servir como justificativa para o sequestro do espaço público, pois se esse argumento vale para a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, ele vale pra todo mundo, já que a insegurança é geral. Já imaginaram se todos resolverem tomar um pedaço da cidade para si ou seu grupo? Quantas praças, parques e áreas verdes restariam?

Se um local público é inseguro, o meio correto de solucionar o problema é por meio de uma política pública ou ação coordenada das forças de segurança que resolva o problema para toda a coletividade, não o cercar, o convertendo num feudo privado a serviço de um único segmento social.

Se a Igreja precisa do espaço para realizar suas festividades, que solicite o uso à Administração Regional do Gama, faça um cercamento temporário enquanto o evento durar, controle entrada e saída e ao final devolva o espaço para a sua condição de espaço público, ao invés de tomá-lo para si.

Sou ateu, não tenho nada contra nenhuma religião, defendo a laicidade do Estado e acredito que a liberdade religiosa é uma das maiores conquistas da humanidade, sendo assim, peço desculpas aos paroquianos que de alguma forma estão chateados comigo, não estou pedindo para derrubarem a igreja, estou apenas exercendo o meu direito de cidadão de exigir que um espaço público usurpado seja devolvido à sua condição de espaço público, minha conduta seria a mesma diante de uma igreja evangélica, um terreiro de umbanda, um centro espírita, uma sinagoga, uma mesquita ou um templo budista.

Peço gentilmente que compreendam, que o espaço público me é tão sagrado quanto sua igreja é para vocês, saibam que não renego e tampouco desmereço o importante trabalho que a Paróquia Nossa Senhora Aparecida faz junto à comunidade do Gama, inclusive é a igreja onde fui batizado quando criança e onde pessoas queridas se casaram, fizeram primeira comunhão, crisma e frequentam assiduamente, mas isso tudo não muda o fato de que 3.000 metros quadrados de praça foram ocupados irregularmente.

A praça é de César, portanto, deve ser devolvida a César, e isso não vai impedir de forma alguma o seu uso pela paróquia, mas vai possibilitar o uso por todos os segmentos da sociedade.