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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Como se monta o desmonte

Segunda, 9 de dezembro de 2019
É uma guerra de Canudos que não termina nunca, com o Estado brasileiro mostrando ao pobre, majoritariamente preto ou pardo, os seus lugares, o eito, o gueto e a cova. No meio de tanta violência oficial o silêncio solidário do ministro da Justiça, o ‘justiceiro implacável’ de antes reduzido a coiteiro de milicianos.

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Como se monta o desmonte

“Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia” (“Apesar de você”, Chico Buarque)

Está em fase de conclusão a montagem da Secretaria Especial da Cultura que, no governo do capitão, passou a ser um apêndice do Ministério da Cidadania. É o que restou do Ministério da Cultura, que em anos passados já teve como titulares Celso Furtado e Antônio Houaiss.

Um anônimo, identificado pela imprensa como “maestro”, foi nomeado presidente da Funarte, aquele órgão do governo federal cuja missão “é promover e incentivar a produção, a prática, o desenvolvimento e a difusão das artes no país”. Para o novo burocrata, “O rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo”.

Aí estão não apenas seu conceito de música, mas, igualmente, sua visão de mundo.


Segundo esse, digamos, maestro, um antediluviano assustado com os espectros do “marxismo cultural” que atanaza a vida do ministro da Educação, os Beatles “teriam vindo ao mundo para implementar o comunismo e acabar com os valores das famílias” (O Estado de SP, 3/12/2019). Os rapazes de Liverpool teriam sido na verdade agentes da KGB, e a Scotland Yard não sabia, nem mesmo a CIA, a Agência de Inteligência e terrorismo dos EUA, para ele  “infiltrada de soviéticos com a finalidade de destruir a moral burguesa da família americana”.

Complementando a equipe do Secretário Especial da Cultura (aquele que ficou conhecido por haver difamado Fernanda Montenegro), o maestro fará companhia ao novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, mais um monarquista inconformado com a República. Já o  presidente da Fundação Palmares (criada para “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”) detesta o poeta Martinho da Vila e a ex-vereadora Marielle Franco, e quer acabar com os festejos do  dia da consciência negra. Para o patético provocador, “a negrada aqui reclama (do racismo) porque é imbecil e desinformada pela esquerda”.

Trabalharão esses senhores vindos do baixo medievo ao lado da nova secretária de Audiovisual, que defende o fim da Ancine, principal fonte de investimento de filmes e séries nacionais, e da apresentadora de televisão que assumiu a presidência da Fundação Casa de Rui Barbosa, um dos maiores centros de pesquisa social do país, ocupando a cadeira onde já se sentou Wanderley Guilherme dos Santos.

Esta não seria indicação, como as demais, do astrólogo de Virgínia, mas de um pastor-deputado, irmão na mesma seita neopentecostal.

Da futura czarina do cinema (do cinema que produz “Estômago” e “Bacurau”),  sabe-se que participou da “Cúpula Conservadora das Américas”, reunida em dezembro do ano passado em Foz do Iguaçu, sob a liderança do deputado Eduardo Bolsonaro, defensor, como o vereador seu irmão e o  ministro da economia,  da aplicação do AI-5 se ocorrerem entre nós movimentações de rua. A “Cúpula” produziu uma carta, apresentada pelo deputado (autoproclamado “príncipe”) Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que, para a área da cultura propõe por ideário: “Deus, pátria, família, propriedade, liberdade individual e direito à legítima defesa como princípios; como valores, fomentar o ensino e a arte clássica liberal; combater a cultura da ditadura verde; estimular a cultura do empreendedorismo e do desenvolvimento pessoal sem a participação do Estado; combater a cultura do banditismo e do vitimismo; resgatar a cultura da verdadeira democracia, desconcentrando o poder de Brasília para estados e municípios e promover a cultura do direito à legítima defesa”.

O que é “verdadeira democracia” não foi explicitado, mas, pelo andar da carruagem, supõe-se seja, para esse bolsonarismo, aquele regime no qual reina a paz dos cemitérios e os pobres “conhecem o seu lugar”. Por “legítima defesa” sabe-se que é o “excludente de ilicitude” que permite à autoridade policial matar sem correr o risco de pena e ao latifundiário armar-se e armar até os dentes seus capangas e mandá-los atirar em quem lhes possa sugerir uma lembrança de ameaça.

Eis o catecismo pelo qual reza o bolsonarismo. Dir-se-á, pelo que se lê e vê,  que não temos política cultural, senão sua contrafação, mas contrapor-se à cultura, coarctá-la, é também uma forma de fazer política, a política da anticultura, essa que está em vigor entre nós há quase 12 meses!

As palavras mudam de sentido, a realidade vira uma fantasia, um delírio, uma coisa qualquer; o que não é explica o que é. Os sinais são trocados.

A questão não se cinge aos tristes personagens trazidos à cena, nem mesmo ao obscurantismo de suas crenças e crendices: a questão grave é a existência de método e lógica atrás da aparente desfuncionalidade ideológica.

O bolsonarismo luta contra o tempo, contra o progresso; não apenas quer impedir a construção livre do futuro, como pretende resgatar o passado. Em pleno século XXI é um projeto anti-iluminista. E viceja.

O ódio às artes e às manifestações culturais de um modo geral faz parte do desapreço à vida  – daí a fixação em armas e na violência – e quaisquer formas de liberdade, de sonho e de criatividade (para o seu partido, em criação, Bolsonaro reivindica como símbolo um revólver 38). Dessa lógica ruminante derivam os outros e incontáveis ódios, como a homofobia, a xenofobia, a demofobia e o racismo, a rejeição do outro, do diverso, do discrepante. O totalitarismo, que busca a homogeneização,  é incompatível com a pluralidade de sexos, raças, classes, valores, pensares e fazeres. É antidemocrático por essência e necessidade, pois não resiste ao debate.

Por isso o totalitarismo é, sempre, a ideologia do atraso, desafeita ao ensaio, à experimentação, à criação e, portanto, ao novo.

A ideologia que se abate sobre a cultura brasileira, pretendendo sufocá-la, é fruto da mesma lógica que procura desmoralizar o ensino público, a universidade gratuita, e, em termos gerais, o magistério. A mesma lógica que indicou o corte de verbas de pesquisa e ensino  de nossas universidades, a desmontagem das agências de desenvolvimento tecnológico e inovação quando o mundo caminha para a quarta revolução industrial. A mesma lógica que nega o aquecimento global, incentiva o desmatamento da Amazônia e desaparelha as agência de defesa ambiental. Num quadro com tais contornos o criacionismo, irmão gêmeo do terraplanismo, adquire o status de proposição lógica e passa a ser “natural” a visão de Cristo pendurado em um galho de goiabeira.

A criação artística, porém, é, por natureza, subversiva, domina como ninguém a guerra de posições, infiltra-se em todos os escaninhos da sociedade, manifesta-se e vem à tona onde haja gente, sobrevivendo tanto à censura política quanto à censura econômica (sempre aliadas), numa metamorfose que lhe dá sobrevida sempre maior que as ditaduras.

A História não guardou os nomes dos burocratas da cultura da Alemanha nazista ou da Rússia estalinista, ou do Brasil do DIP ou da ditadura militar. Ficaram Brecht e Maiakovski, Dias Gomes e Plínio Marcos, Antunes Filho e Zé Celso. O teatro Opinião sobreviveu, o Oficina sobreviveu, Roda Viva sobreviveu, o cinema sobreviveu e hoje está mais vivo do que nunca. Porque todos aprenderam, com suas artes, a arte seminal da resistência, a arte do bom combate de quem não menospreza o adversário mas não treme diante dele.


O outro lado da barbárie não é o silêncio, mas a retomada da vida. Dias melhores virão – pela nossa mão.

Mais um massacre - Antes que a licença para matar pedida pelo capitão (a tal da “excludente de ilicitude”) se faça lei, prosseguem os massacres levados a cabo por vândalos das Polícias Militares. O ultimo foi em Paraisópolis  e teve como agente a PM do governador Dória. É uma guerra de Canudos que não termina nunca, com o Estado brasileiro mostrando ao pobre, majoritariamente preto ou pardo, os seus lugares, o eito, o gueto e a cova. No meio de tanta violência oficial o silêncio solidário do ministro da Justiça, o ‘justiceiro implacável’ de antes reduzido a coiteiro de milicianos.

Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologi