Segunda, 10 de novembro de 2014
Do
STJ
“Encontrei uma
espécie de coágulo. Não sei se era um pedaço de papelão ou mofo. Algo com a
consistência de ameixa. O suco que deveria ser branco estava esverdeado. Havia
vários pontos mofados dentro da caixa”, descreveu a auditora de trânsito
Luciana Borges Marinho, moradora de Águas Claras (DF), ao contar do corpo
estranho que encontrou na caixa do suco de soja que havia tomado.
Primeiro, sentiu nojo, raiva e frustração. Depois, dor no
estômago. O marido, que tinha tomado um copo inteiro, ficou o dia todo com
azia. Ela fotografou, divulgou na internet, informou à vigilância sanitária e
denunciou o caso para emissoras de TV, mas nenhuma deu importância. Até pensou
em mover uma ação. Foi a um laboratório tentar fazer análise microbiológica,
mas acabou desistindo quando soube que precisava passar por consulta médica e
realizar exame de sangue para confirmar que tinha consumido o produto. Parou
por aí.
Não é à toa que consumidores preocupados com a saúde
prefiram alimentos naturais a industrializados. Situações como a que Luciana
Marinho vivenciou têm se repetido com frequência. E os riscos são grandes. Se
um alimento contaminado for ingerido, pode causar sérios prejuízos à saúde,
inclusive a morte. Ainda que nada disso ocorra, parte da doutrina jurídica e da
jurisprudência dos tribunais brasileiros considera que o sentimento de
repugnância do consumidor ao se deparar com algo estranho no alimento que
pretendia consumir, por si só, gera outro tipo de dano: o moral.
Dano extrapatrimonial
“Verificada a ocorrência de defeito no produto, inafastável
é o dever do fornecedor de reparar também o dano extrapatrimonial causado ao
consumidor, fruto da exposição de sua saúde e segurança a risco concreto”,
disse a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), no julgamento do recurso especial de uma empresa de bebidas (REsp 1.454.255). Os ministros do colegiado
confirmaram a decisão da ministra e reconheceram a responsabilidade da
fornecedora pela sujeira encontrada no interior da garrafa de água mineral.
O artigo 12, parágrafo 1º, inciso II, do Código de Defesa do
Consumidor (CDC) dispõe que o produto é defeituoso quando não oferece a
segurança que dele legitimamente se espera – levando-se em consideração o uso e
os riscos razoavelmente esperados.
Com base nisso, Andrighi afirmou que o corpo estranho encontrado
na garrafa de água mineral tornou o produto defeituoso, “na medida em que, na
hipotética deglutição do corpo estranho, não seria pequena a probabilidade de
ocorrência de dano” à saúde física ou à integridade psíquica do consumidor.
Quantificação do dano
Diante de tantas demandas que chegam ao Poder Judiciário, o
STJ tem se posicionado de forma favorável ao consumidor. Quanto ao valor da
indenização, embora não existam critérios fixos para a quantificação do dano
moral, o tribunal tem afirmado que a reparação deve ser suficiente para
desestimular o ofensor a repetir a falta, sem, contudo, permitir o
enriquecimento ilícito do consumidor.
Essa foi a posição adotada pela Terceira Turma em novembro
de 2013. O ministro Sidnei Beneti (já aposentado) manteve a condenação da
Indústria de Torrone Nossa Senhora de Montevérgine ao pagamento de R$ 10 mil
por dano moral a consumidora que adquiriu e até comeu parte de uma barra de
cereais contendo larvas e ovos de inseto (AREsp 409.048).
Na decisão monocrática, posteriormente confirmada pelo
colegiado, Beneti tomou as circunstâncias do caso e a condição econômica das
partes como parâmetro para avaliar a indenização fixada em segunda instância –
a qual julgou ser proporcional ao dano.
Em outra ocasião, Beneti considerou adequado o valor
correspondente a 50 salários mínimos para reparar o dano moral sofrido por
criança que feriu a boca ao comer linguiça em que havia um pedaço de metal
afiado (AREsp 107.948).
De acordo com o ministro, para ponderar o valor da reparação
do dano moral, devem ser consideradas as circunstâncias do fato, as condições
do ofensor e do ofendido, a forma e o tipo de ofensa e as suas repercussões no
mundo interior e exterior da vítima. Apesar disso, “ainda que, objetivamente,
os casos sejam bastante assemelhados, no aspecto subjetivo são sempre
diferentes”, comentou Beneti.
Responsabilidade civil
A lei consumerista impõe ao fornecedor o dever
de evitar que a saúde e a segurança do consumidor sejam colocadas em risco. A
ministra Nancy Andrighi explica que o CDC tutela o dano ainda em sua potencialidade,
buscando prevenir sua ocorrência efetiva. Tanto é que o artigo 8º se refere a
riscos, e não a danos.
Caso esse dever não seja cumprido, o fornecedor tem a
obrigação de reparar o dano causado por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos (artigo 12 do CDC). Essa reparação não se
limita ao aspecto material, ou seja, à devolução do valor pago pelo produto.
O jurista Sergio Cavalieri Filho afirma que o dano moral não
mais se restringe a dor, tristeza e sofrimento. Para ele, essa proteção
jurídica se estende a todos os bens personalíssimos (Programa de
Responsabilidade Civil). No mesmo sentido, a jurisprudência do STJ tem
admitido a compensação do dano moral independentemente da demonstração de dor e
sofrimento.
O ministro Marco Buzzi, da Quarta Turma, defende que esses
sentimentos são consequência, e não causa determinante da ofensa a algum dos
aspectos da personalidade. Segundo ele, “a configuração de dano moral deve ser
concebida, em linhas gerais, como a violação a quaisquer bens personalíssimos
que irradiam da dignidade da pessoa humana, não se afigurando relevante, para
tal, a demonstração de dor ou sofrimento” (voto-vista no REsp 1.376.449).
Coca-Cola
Em março de 2014, a Terceira Turma manteve a condenação da
Coca-Cola Indústrias Ltda. ao pagamento de 20 salários mínimos de indenização a
consumidora que encontrou um corpo estranho – descrito por ela como algo
semelhante a uma lagartixa – dentro da garrafa de refrigerante, sem, contudo,
ter consumido o produto. A perícia apontou que se tratava de um tipo de bolor.
A maioria do colegiado entendeu que mesmo não tendo ocorrido
a abertura da embalagem e a ingestão do produto, a existência do corpo estranho
colocou em risco a saúde e integridade física ou psíquica da consumidora (REsp 1.424.304).
Os ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino
acompanharam o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi. “A aquisição de
produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho, expondo
o consumidor a risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não
ocorra a ingestão de seu conteúdo, dá direito à compensação por dano moral,
dada a ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do
princípio da dignidade da pessoa humana”, defendeu Andrighi.
O entendimento, contudo, não está pacificado no âmbito do
Tribunal da Cidadania. Na ocasião, os ministros Villas Bôas Cueva e João Otávio
de Noronha divergiram da relatora, mas ficaram vencidos. Para Noronha, não
tendo sido aberta a garrafa e consumida a bebida, o simples repúdio à situação
causa desconforto, mas não dano moral – que, segundo ele, pode ser definido
como sofrimento, constrangimento enorme, e não qualquer dissabor.
“Dissabores não dão azo a condenação por dano moral. É
preciso que a pessoa se sinta realmente ofendida, realmente constrangida
com profundidade no seu íntimo, e não que tenha um simples mal-estar”, afirmou
o ministro.
Em seu voto-vista, Villas Bôas Cueva afirmou que a
questão polêmica já foi objeto de várias discussões no STJ, prevalecendo,
segundo ele, a orientação no sentido de não reconhecer a ocorrência de dano
moral nas hipóteses em que o alimento contaminado não foi efetivamente
consumido.
A Quarta Turma, em decisão unânime, já se manifestou de
forma contrária em hipótese na qual não houve a ingestão do produto. No
julgamento do REsp 1.131.139, o ministro Luis Felipe
Salomão disse que a simples aquisição de um pacote de bolachas do tipo água e
sal contendo objeto metálico que o torna impróprio para o consumo, sem que
tenha havido a ingestão do produto, não acarreta dano moral que justifique
indenização.
Extrato de tomate
Uma dona de casa cozinhava para sua família quando, ao
utilizar um extrato de tomate, encontrou na lata um preservativo masculino
enrolado. Indignada, levou o produto para análise na universidade local e
entrou em contato com o fabricante, que se recusou a arcar com os prejuízos
morais sofridos por ela (REsp 1.317.611).
Diante da negativa da Unilever Brasil, a consumidora buscou
o Poder Judiciário. O juízo de primeiro grau fixou a indenização por danos morais
em R$ 10 mil. A sentença foi impugnada, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul (TJRS) manteve a decisão. Em seu entendimento, o fabricante deveria ser
responsabilizado pela violação do princípio da segurança sanitária, pois a
contaminação teria se dado “com grau de sujidade máximo”.
No recurso especial, a Unilever alegou a nulidade do
processo devido ao indeferimento do pedido de prova pericial. Com essa prova, a
empresa pretendia demonstrar que o preservativo não poderia ter sido inserido
na fábrica e que, por essa razão, o dano experimentado pelo consumidor
decorreria de fato próprio ou de fato de terceiro.
Contudo, a ministra relatora verificou que a prova tida como
imprescindível foi indeferida de maneira fundamentada pelo TJRS, para o qual a
possibilidade de que o preservativo estivesse no depósito dos ingredientes
usados na fabricação do produto não poderia ser afastada por meio da análise do
processo mecânico de produção.
Quanto ao valor da indenização, os ministros consideraram
que não havia necessidade de revisão. Para tanto, tomaram como base precedente
no qual o dano moral foi fixado em R$ 15 mil para hipótese em que o consumidor
encontrou uma barata em lata de leite condensado. Trata-se do REsp 1.239.060.
“O abalo causado a uma dona de casa que encontra, num
extrato de tomate que já utilizou para consumo de sua família, um preservativo
aberto é muito grande. É perfeitamente natural que, diante da indignação
sentida numa situação como essas, desperte-se no cidadão o desejo de obter
justiça”, comentou a ministra Nancy Andrighi.
Salgadinho
O fornecedor ou fabricante que causa dano ao consumidor só
se exime da responsabilidade quando consegue provar que não colocou o produto
no mercado, ou que, embora tenha colocado, este não possui defeito que o torne
impróprio para uso ou, ainda, que a culpa é exclusiva do consumidor ou de
terceiro (parágrafo 3º do artigo 12 do CDC). É dele o ônus da prova, e não do
consumidor.
“A previsão legal é sutil, mas de extrema importância na
prática processual”, ressaltou o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da
Terceira Turma, quando do julgamento do REsp 1.220.998.
No caso analisado, a empresa Pepsico do Brasil foi condenada
a pagar dez salários mínimos de indenização por danos morais a consumidor que
fraturou dois dentes porque mordeu uma peça metálica que estava na embalagem de
salgadinho da Elma Chips.
O Tribunal de Justiça de São Paulo não afastou a
responsabilidade objetiva da fabricante pelo acidente, já que ela não conseguiu
demonstrar as excludentes do parágrafo 3º do artigo 12 do CDC. No STJ, a
Pepsico buscou a inversão do ônus da prova e defendeu que o autor da ação não
teria demonstrado o fato constitutivo de seu direito.
“A peculiaridade da responsabilidade pelo fato do produto
(artigo 12), assim como ocorre na responsabilidade pelo fato do serviço (artigo
14), é a previsão, no microssistema do CDC, de regra específica acerca da
distribuição do ônus da prova da inexistência de defeito”, comentou
Sanseverino. Com base nisso, a Turma negou provimento ao recurso especial.
Em julgamento semelhante, a Quarta Turma manteve a
condenação da empresa Pan Produtos Alimentícios ao pagamento de R$ 20 mil por
danos morais a consumidor que encontrou três pedaços de borracha em barra de
chocolate parcialmente consumida. “A jurisprudência desta corte é firme no
sentido de reconhecer a possibilidade de lesão à honra subjetiva decorrente da
aquisição de alimentos e bebidas contendo corpo estranho”, afirmou o relator,
ministro Antonio Carlos Ferreira (AREsp 38.957).
Prazo de validade
Ainda que as relações comerciais tenham o enfoque e a
disciplina determinadas pelo Código de Defesa do Consumidor, isso não afasta o
requisito da existência de nexo de causalidade para a configuração da
responsabilidade civil. Com base nesse entendimento, a Terceira Turma negou
provimento ao recurso especial de consumidores que notaram a presença de ovos e
larvas de inseto em chocolate que já estava com a data de validade vencida no momento
do consumo (REsp 1.252.307).
Após ser citada, a empresa Kraft Foods Brasil defendeu que a
contaminação não ocorreu em suas instalações industriais, porque o produto
teria sido consumido fora do prazo de validade. Com isso, segundo ela,
rompeu-se o nexo causal.
O ministro Massami Uyeda (já aposentado), que apresentou o
voto vencedor, mencionou que o prazo de validade é resultado de estudos
técnicos, químicos e biológicos, para possibilitar ao mercado consumidor a
segurança de que, naquele prazo, o produto estará em plenas condições de
consumo.
“O fabricante, ao estabelecer prazo de validade para consumo
de seus produtos, atende aos comandos imperativos do próprio Código de Defesa
do Consumidor, especificamente, acerca da segurança do produto, bem como da
saúde dos consumidores”, ressaltou o ministro.
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