Domingo, 23
de novembro de 2014
Do site do MST
A presidente da Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), Kátia Abreu (PMDB-TO), está sendo convidada pela presidenta Dilma
Rousseff para assumir o comando do Ministério da Agricultura.
Apesar da nomeação já ser aguardada há algumas semanas,
como parte das negociações para assegurar o espaço do PMDB no novo governo,
diversos setores da sociedade se dizem abismados com a possibilidade de um
governo do PT abrigá-la num ministério de Estado.
O jornalista Leandro Fortes, por exemplo, disse não ver
"racional e emocionalmente, uma justificativa minimamente plausível para
ofender os milhões de trabalhadores do campo que, desde sempre, foram
perseguidos, usurpados e trucidados política e fisicamente por muitas kátias
abreus, ao longo da nossa história. Simplesmente, é inacreditável que isso
esteja acontecendo".
Abaixo, a Página do MST resgata a denuncia do golpe da
família Kátia Abreu contra 80 famílias de pequenos agricultores em Campos
Lindos, no Tocantins.
Golpe contra camponeses
Por Leandro Fortes
Da Carta Capital
Em dezembro passado, a senadora Kátia Abreu, do DEM
Tocantins, assumiu a presidência da Confederação Nacional da Agricultura e
Pecuária (CNA) com um discurso pretensamente modernizador.
Previa uma nova inserção social dos produtores rurais por
meio de “rupturas” no modo de se relacionar com o mercado, o consumidor, o
governo e a economia global. Pretendia, segundo ela mesma, “remover os
preconceitos” que teriam isolado os ruralistas do resto da sociedade brasileira
e cravado neles a pecha de “protótipos do atraso”.
Diante de uma audiência orgulhosa da primeira mulher a
assumir o comando da CNA, Kátia concluiu: “Somos o que somos e não quem nos
imaginam (sic)”. Foi efusivamente aplaudida. E tornou-se musa dos ruralistas.
Talvez, em transe corporativo, a platéia não tenha
percebido, mas a senadora parecia falar de si mesma. Aos 46 anos, Kátia Abreu é
uma jovem liderança ruralista afeita à velha tradição dos antigos coronéis de
terras, embora, justiça seja feita, não lhe pese nos ombros acusações de
assassinatos e violências outras no trato das questões agrárias que lhes são
tão caras. A principal arma da parlamentar é o discurso da legalidade
normalmente válido apenas para justificar atos contra pequenos agricultores.
Com a espada da lei nas mãos, e com a aquiescência de
eminências do Poder Judiciário, ela tem se dedicado a investir sobre os
trabalhadores sem-terra. Acusa-os de serem financiados ilegalmente para invadir
terras Brasil afora.
Ao mesmo tempo, pede uma intervenção federal no estado do
Pará e acusa a governadora Ana Júlia Carepa de não cumprir os mandados de
reintegração de posse expedidos pelo Judiciário local. O foco no Pará tem um
objetivo que vai além da política. A senadora, ao partir para o ataque, advoga
em causa própria.
Foram ações do poder público que lhe garantiram
praticamente de graça extensas e férteis terras do Cerrado de Tocantins. E
mais: Kátia Abreu, beneficiária de um esquema investigado pelo Ministério
Público Federal, conseguiu transformar terras produtivas em áreas onde nada se
planta ou se cria. Tradução: na prática, a musa do agronegócio age com os
acumuladores tradicionais de terras que atentam contra a modernização
capitalista do setor rural brasileiro.
De longe, no município tocantinense de Campos Lindos, a
mais de 1,3 mil quilômetros dos carpetes azulados do Senado Federal, ao saber
das intenções de Kátia Abreu, o agricultor Juarez Vieira Reis tentou
materializar com palavras um conceito que, por falta de formação, não lhe veio
à boca: contras-senso.
Expulso em 2003 da terra onde vivia, graças a uma
intervenção política e judicial capitaneada pela senadora do DEM, Reis rumina o
nome da ruralista como quem masca capim danado. Ao falar de si mesmo, e quando
pronuncia o nome Kátia Abreu, o camponês de 61 anos segue à risca o conselho
literal da própria. Não é, nem de longe, quem ela imagina.
Em 2002, Reis foi expulso das terras onde havia nascido em
1948. Foi despejado por conta de uma reforma agrária invertida, cuja
beneficiária final foi, exatamente, a senadora. Classificada de "grilagem
pública" pelo Ministério Público Federal do Tocantins, a tomada das terras
de Reis ocorreu numa tarde de abril daquele ano, debaixo da mira das armas de
quinze policiais militares sob as quais desfilaram, como num quadro de
Portinari, o agricultor, a mulher Maria da Conceição, e dez filhos menores.
Em um caminhão arranjado pela Justiça de Tocantins, o
grupo foi despejado, juntamente com parte da mobília e sob um temporal amazônico,
nas ruas de Campos Lindos. "Kátia Abreu tem um coração de serpente",
resmunga, voz embargada, o agricultor, ao relembrar o próprio desterro.
Em junho de 2005, Reis reuniu dinheiro doado por vizinhos
e amigos e foi de carona a Brasília a fim de fazer, pessoalmente, uma
reclamação na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Na capital
federal, alojou-se na casa de amigos, no miserável município goiano de Águas
Lindas, e se alimentou de restos de almoço servido numa pensão da cidade.
Aos técnicos da comissão apresentou documentos para provar
que detinha a posse da terra em questão de 545 hectares, desde 1955, parte da
fazenda Coqueiros, de propriedade da família, numa região conhecida como Serra
do Centro. De acordo com a documentação apresentada pelo agricultor, uma ação
de usucapião da fazenda havia sido ajuizada em agosto de 2000.
Após esse ajuizamento, um vizinho de Reis, o também
agricultor Antônio dos Santos, ofereceu-lhe para venda de uma área contígua de
62 hectares, sob sua posse havia onze anos, cuja propriedade ele alegava ser
reconhecida pelo governo de Tocantins. O negócio foi realizado verbalmente por
25 mil reais como é costume na região até a preparação dos papéis. Ao estender
a propriedade, Reis pretendia aumentar a produção de alimentos (arroz, feijão,
milho, mandioca, melancia e abacaxi) de tal maneira de sair do regime de
subsistência e poder vender o excedente.
Ele não sabia, mas as engrenagens da máquina de triturar
sua família haviam sido acionadas uns poucos anos antes, em 1996, por um
decreto do então governador do Tocantins Siqueira Campos (PSDB). O ato do
tucano, mítico criador do estado que governou por três mandatos, declarou de
“utilidade pública”, por suposta improdutividade, um área de 105 mil hectares
em Campos Lindos para fins de desapropriação. Protocolada pela comarca de
Goiatins, município ao qual Campos Lindos foi ligado até 1989, a desapropriação
das terras foi tão apressada que o juiz responsável pela decisão, Edimar de
Paula, chegou à região em um avião fretado apenas para decretar o processo. O
magistrado acolheu um valor de indenização irrisório (10 mil reais por
hectare), a ser pago somente a 27 produtores da região.
Do outro lado da cerca ficaram 80 famílias de pequenos
agricultores. A maioria ocupava as terras a pelo menos 40 anos de forma “mansa
e pacífica”, como classifica a legislação agrária, cujas posses foram
convertidas em área de reserva legal, em regime de condomínio, sob o controle
de grandes produtores de soja. Na prática, os posseiros de Campos Lindos
passaram a viver como refugiados ilegais nessas reservas, torrões perdidos na
paisagem de fauna e flora devastados de um Cerrado em franca extinção. Sobre as
ruínas dessas famílias, o governador Siqueira Campos montou uma confraria de
latifundiários alegremente formada por amigos e aliados. A esse movimento foi
dado um nome: Projeto Agrícola de Campos Lindos.
Em 1999, quatro felizardos foram contemplados com terras
do projeto ao custo de pouco menos de 8 reais o hectare (10 mil metros
quadrados), numa lista preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do
Estado do Tocantins (Faet). A federação teve o apoio da Companhia de Promoção
Agrícola (Campo), entidade fundada em 1978, fruto do acordo entre consórcios
que implantaram o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento
dos Cerrados (Prodecer) em parceria com o Banco do Brasil e com cooperativas de
produtores.
Escrúpulos às favas, os dirigentes de ambas as
instituições se esbaldaram nas posses de Campos Lindos. À época, a presidente
da Faet era ninguém menos que Kátia Abreu, então deputada federal pelo ex-PFL.
No topo da lista, a parlamentar ficou com um lote de 1,2 mil hectares. O irmão
dela, Luiz Alfredo Abreu, abocanhou uma área do mesmo tamanho. O presidente da
Campo, Emiliano Botelho, também não foi esquecido: ficou com 1,7 mil hectares.
Dessa forma, um ambiente de agricultura familiar mantido
ao longo de quase meio século por um esquema de produção de alimentos de forma
ecologicamente sustentável foi remarcado em glebas de latifúndio e entregue a
dezenas de indivíduos ligados ao governador Siqueira Campos. Entre elas também
figuraram Dejandir Dalpasquale, ex-ministro da Agricultura do governo Itamar
Franco, Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, e o brigadeiro Adyr
da Silva, ex-presidente da Infraero. Sem falar numa trupe de políticos locais,
entre os quais brilhou, acima de todos, a atual presidente da CNA.
O resultado dessa política pode ser medido em números. De
acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a
produção de soja em Campos Lindos cresceu de 9,3 mil toneladas, em 1999, para
127,4 mil toneladas em 2007. Um crescimento de 1.307% em apenas oito anos. O
mesmo IBGE, contudo revela a face desastrosa desse modelo de desenvolvimento.
No Mapa da Pobreza e Desiguldade, divulgado também em 2007, o município
apareceu como o mais pobre do País. Segundo o IBGE, 84% da população vivia da
pobreza, dos quais 62,4% em estado de indigência.
No meio das terras presenteadas por Siqueira Campos a
Kátia Abreu estava justamente o torrão de Reis, a fazenda Coqueiro. Mas, ao
contrário dos demais posseiros empurrados para para as reservas do Cerrado, o
agricultor não se deu por vencido. Tinha a favor dele documentos de
propriedade, um deles datado de 6 de setembro de 1958 e originário da
Secretaria da Fazenda de Goiás, antes da divisão do estado. O documento
reconhece as terras da família em nome do pai, Mateus Reis, a partir dos
recibos dos impostos territoriais de então. De posse dos papéis, o pequeno
agricultor tentou barrar a desapropriação na Justiça. A hoje senadora partiu
para a ofensiva.
Em 11 de dezembro de 2002, Kátia Abreu entrou com uma ação
de reintegração de posse em toda a área, inclusive dos 545 hectares onde Reis
vivia havia cinco décadas. Ela ignorou a ação de usucapião em andamento, que
dava respaldo legal à permanência dos Reis na terra. Para fundamentar o pedido
de reintegração de posse, a então deputada alegou em juízo que Reis, nascido e
criado no local, tinha a posse da fazenda Coqueiro por menos de um ano e um
dia, providencial adequação ao critério usado na desapropriação.
Para comprovar o fato, convocou testemunhas que moravam a
mais de 800 quilômetros da área de litígio. Incrivelmente, a Justiça de
Tocantins acatou os termos da ação e determinou que a expulsão da família de
Reis da fazenda Coqueiro e dos 62 hectares recém-comprados. Ignorou, assim, que
a maior parte das terras utilizada há 50 anos ou, no mínimo, há mais de dois
anos, como ajuizava o documento referente ao processo de usucapião. Reis foi
expulso sem direito a indenização por qualquer das benfeitorias construídas ao
longo das cinco décadas de ocupação da terra, aí incluídos a casa onde vivia a
família, cisternas plantações (mandioca, arroz e milho), árvores frutíferas,
pastagens, galinhas, jumentos e porcos.
A exemplo da Kátia Abreu, os demais agraciados com as
terras tomadas dos agricultores assumiram o compromisso de transformar as
terras produtivas em dois anos. O prazo serviu de álibi para um ação predatória
dos novos produtores sobre o Cerrado e a instalação desordenada de empresas e
grupos ligados ao mercado da soja. Até hoje a questão do licenciamento
ambiental da área abrangida pelo Projeto Agrícola Campos Lindos não foi
resolvida por órgãos ambientais locais. Mas nem isso a senadora fez..
Signatário, com outros três colegas, de um pedido de
intervenção federal no Tocantins em 2003, justamente por causa da distribuição
de terras de Campos Lindos feita por Siqueira Campos a amigos e aliados, o
procurador federal Alvaro Manzano ainda espera uma providência. “Houve uma
inversão total do processo de reforma agrária. A desapropriação foi feita para
agradar amigos do rei.”
Há cinco meses, o agricultor Reis voltou à Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Ele luta pra forçar o Tribunal de
Justiça de Tocantins a julgar tanto a ação de usucapião de 2000 como o pedido
de liminar impetrado há seis anos para garantir a volta da família, hoje acrescida
de 23 netos, à fazenda Coqueiro. “Não tem força no mundo, moço, que faça essa
Justiça andar”, reclama o agricultor. Ele atribuiu a lentidão à influência da
senadora no Judiciário local. Procurada por Carta Capital, Kátia Abreu não
respondeu ao pedido de entrevista.
Quatro anos atrás, a família Reis conseguiu se alojar numa
chácara de 42 hectares ocupada por um dos filhos há dez anos. Lá, quase vinte
pessoas vivem amontoadas em uma casa de dois cômodos, feita de sapê e coberta
de palha de babaçu em meio a porcos, galinhas e cachorros. No terreiro coberto
da residência, infestado de moscas, as refeições são irregulares, assim como os
ingredientes dos pratos, uma mistura aleatória de arroz, mandioca, pequi,
abacaxi, feijão e farinha.
Toda vez que um motor de carro é ouvido nas redondezas,
todos se reúnem instintivamente nos fundos da casa, apavorados com a
possibilidade de um novo despejo. Cercado de filhos e netos, Reis não consegue
esconder os olhos marejados quando fala do próprio drama. “Fizeram carniça da
gente. Mas não vou desistir até recuperar tudo de novo.”
Em 19 de junho, um dia após a última visita de Reis à
Câmara dos Deputados, o presidente da Comissão de Direitos Humanos, Luiz Couto
(PT-PB), encaminhou um ofício endereçado ao Conselho Nacional de Justiça para
denunciar a influência de Kátia Abreu na Justiça do Tocantins e pedir
celeridade nos processos de Reis. O pedido somente agora entrou na pauta do
CNJ, mas ainda não foi tomada nenhuma medida a respeito. Nos próximos dias,
corregedor do conselho, Gilson Dipp, vai tornar público o relatório de uma
inspeção realizada no Tribunal de Justiça do Tocantins, no qual será
denunciada, entre outros males, a morosidade deliberada em casos cujos réus são
figuras políticas proeminentes no estado.
Há três meses, ao lado de uma irmão e um filho, Reis
voltou à fazenda Coqueiro para averiguar o estado das terras depois da ocupação
supostamente produtiva da senadora. Descobriu que nem um pé de soja - nem nada
– havia sido plantado no lugar. “Desgraçaram minha vida e da minha família para
deixar o mato tomar conta de tudo”, conta Reis.
Com o auxílio de outros filhos, recolheu tijolos velhos da
casa destruída pelos tratores da parlamentar do DEM e montou um barraco sem
paredes, coberto de lona plástica e palha. Decidiu por uma retomada simbólica
da terra, onde reiniciou um roçado de mandioca. Na chácara do filho, onde se
mantém como chefe da família, ainda tem tempo para rir das pirraças de uma neta
de apenas 4 anos. Quando zangada, a menina não hesita em disparar, sem dó nem
piedade, na presença do avó: “Meu nome é Kátia Abreu”.