Domingo, 7
de setembro de 2014

Narciso -
Caravaggio
Gerivaldo
Neiva *
O professor Paulo Queiroz, ao discutir sobre a
necessidade e eficácia das leis para evitar que pessoas cometam crimes, nos
instiga a perguntar sinceramente a si mesmo: “por que ainda não pratiquei
estupro?”, “porque ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um
banco?”. A resposta, segundo o professor, com quem concordo plenamente, é
pouco provável que seja: “por que há uma lei que o proíbe; e se a lei for
revogada, eu o farei.”[1]
Na verdade, cometemos crimes pelas mesmas razões que não
os cometemos: o decisivo são sempre as motivações humanas, que mudam
permanentemente, as quais podem ter, inclusive, como a história - de ontem e de
hoje - o demonstram fartamente, os mais nobres pretextos: a pátria, o amor, a honra,
a lei, a justiça, a religião, Deus etc.
Sendo assim, continua professor Paulo Queiroz, as leis se
tornam meros instrumentos retóricos e demagógicos para criar uma impressão
(falsa impressão), de segurança, criando no imaginário social a ilusão de que os
problemas foram ou estão sendo resolvidos, até porque de nada valem se não
existirem mecanismos reais de efetivação. Assim, “ninguém deixa de matar,
estuprar, furtar, etc. porque existem leis que incriminam tais comportamentos;
afinal, as pessoas cometem ou deixam de cometer crimes porque tem ou não
motivação para tanto”, conclui o professor.
Pois bem, outro dia respondi, com esta indagação a um
jovem estudante de Direito que me questionou, nos debates depois de uma
palestra, sobre a necessidade de leis mais rígidas e penas mais graves para
quem comete crimes hediondos, incluindo a pena de morte, como forma de reduzir
a violência e criminalidade. Assim, perguntei ao jovem estudante por que ele
não cometia crimes tão graves como estuprar, matar ou assaltar um banco? Como
nosso amigo titubeou um pouco para responder, estendi o mesmo questionamento
aos demais e fui obtendo as mais diversas respostas: porque não preciso, porque
não tenho motivos, porque tive uma família presente, porque tive boa formação,
porque tive boa educação, porque tenho uma cultura, porque tenho uma religião
que me orienta, porque tive as oportunidades e não desperdicei, porque fui
persistente e não desisti nos piores momentos, porque tenho os conceitos de
ética e honestidade, porque aprendi a respeitar a vida do outro e seus bens,
porque sei viver em sociedade, porque subscrevi um contrato social, porque me
contento com o que tenho, por que tudo isso é crime etc. etc.
Sendo assim, com base nas respostas para composição do
“cidadão-não-criminoso”, estaríamos também perto da construção de um
cidadão-padrão-legal (standard) que não comete crimes. Seria, em resumo, o que
tem/teve: família, educação, ética, responsabilidade, saúde, religião, cultura,
cuidados, oportunidades, resignação, subscritor de um contrato social e
condições econômicas. De outro lado, de forma superficial e deixando de lado
causas bem mais complexas sobre o crime (ou sobre a interpretação criminológica
de determinado fenômeno), estaríamos, ao mesmo tempo, perto de criarmos também
o “homo bandidus”, ou seja, o contrário do “cidadão-padrão-legal”, a pessoa que
não teve as condições e oportunidades – ou ainda não tem – que lhe
possibilitasse viver sem cometer crimes.
Por fim, conclui com o estudante: - Um bandido é exatamente
o seu contrário, é o que você não foi quando criança ou adolescente e o que não
é agora, é um “não-você”. Em resumo, é um “sem” família, educação, cultura,
saúde, cuidados, oportunidades, formação, religião, condições econômicas para
viver com dignidade e nem sabe o que significa este tal de contrato social, mas
é tratado como subscritor dele quando viola suas cláusulas. Então, o “homo
bandidus” está umbilicalmente ligado a você. Um não existe sem o outro. É você
mesmo no espelho. São contrários que se completam. As condições de “com” e
“sem” estão dialeticamente entrelaçadas e uma dependerá sempre da outra. Enfim,
um bandido é um “não-você”, mas ele só existe exatamente por que você existe
para que sirva de parâmetro para sua (dele) condição de ser ele próprio um
“não-você”.
Mas seria possível um mundo sem bandidos? Um mundo em que
todos coexistissem na condição de “com”? Um mundo de igualdade de
oportunidades, de solidariedade e justiça? Este, definitivamente, é o desafio
maior de nosso tempo. Aliás, este é único sentido da existência humana sobre o
planeta, sejamos criaturas de Deus ou nascidas ao acaso. Esta superação, por
fim, acontecerá no momento em que, nós que temos, nos enxergamos exatamente no
lugar dos que não tem. Trocar de posição diante do espelho. Finalmente, dessa
simbiose, superada dialeticamente a contradição “com x sem”, nascerá um homem
novo para um mundo novo. É o que nos resta e que nos faz homens!
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a
Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law
Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)