Segunda, 11 de novembro de 2013
Estudo compara queda dos autos de resistência com aumento de pessoas desaparecidas
As estatísticas
sobre criminalidade no Estado do Rio de Janeiro divulgadas recentemente
pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), referentes ao mês de agosto
de 2013, estão servindo de base para um estudo dos princípios da
violência na cidade, elaborado pelo Instituto dos Defensores dos
Direitos Humanos (IDDH). O projeto do IDDH tem como meta traçar um
perfil das pessoas desaparecidas no Rio, nos últimos anos, comparando o
aumento no número de registros desses casos com a diminuição dos autos
de resistência (morte em confronto com a polícia), além de prever um
suporte jurídico e psicossocial para as famílias das vítimas.
Os
responsáveis pela pesquisa avaliam que os policiais militares estão
cometendo mais assassinatos, porém passaram a sumir com o corpo da
vítima, para atrapalhar as investigações. O desenvolvimento do projeto
deverá ser custeado com a renda integral do show "Somo Todos Amarildos",
com a participação de Caetano Veloso e Marisa Monte, que será realizado
no dia 20 de novembro, no Circo Voador, na Lapa, Centro da cidade.
O
jurista João Tancredo, presidente do IDDH, acredita que a pesquisa vai
evidenciar a relação existente entre o número de desaparecidos no Estado
com a redução de uma ocorrência policial conhecida como auto de
resistência. Tancredo tem recebido no instituto um número crescentes de
denúncias de familiares de pessoas que não são mais encontradas após
abordagens feitas por policiais militares em operações da corporação ou
em blitz. "Esses relatos nos levam à conclusão de que os PMs continuam
cometendo crimes, especialmente nas comunidades carentes, talvez até com
mais frequência, só que agora eles somem com os corpos das vítimas,
como forma de atrapalhar as investigações. Quando eles optam por
desaparecer com o corpo, é claro que estão buscando meios de preservar a
corporação e, consequentemente, também interferem nos números da
criminalidade", explicou o jurista.
A proposta de João Tancredo é
formar um grupo de trabalho para desenvolver a pesquisa, composto por
cientistas sociais, psicólogos, assistentes sociais, advogados e
entidades e movimentos sociais empenhados nas questões da violência
urbana. Primeiramente, será feito um levantamento de todos os casos
relatados pelos denunciantes ao instituto e das estatísticas do ISP,
para se chegar às conclusões e cálculos finais. Uma das ONGS mais
atuantes nas manifestações populares contra a criminalidade e violência
policial, a Rio de Paz, já confirmou na sua participação no projeto.
Segundo
Tancredo, o ano de 2007 foi um dos mais violentos e teve um número
recorde de auto de resistência. "Foram 1330 pessoas assassinadas, de
acordo com os registros feitos nas delegacias, um recorde histórico. No
entanto, nesse mesmo ano o número de pessoas desaparecidas era de 380",
informou o advogado. Já em 2008, ainda de acordo com as análises do
IDDH, o quadro começa a se inverter no ano seguinte, com um expressivo
aumento no número de desaparecidos e redução nas mortes durante
confronto com a PM. "Em 2013, o número de pessoas desaparecidas já chega
a quase 1 mil, enquanto as mortes em autos de resistência, 700", diz
Tancredo. A partir das estatísticas do IDDH, obtidas no somatório dos
registros de denúncias e estudos oficiais, o jurista alerta que o atual
cenário da violência na cidade é muito "óbvio" e "grave", envolvendo uma
corporação que tem a função de proteger o cidadão.
Pelas
estatísticas divulgadas há duas semana pelo ISP, os números apontam
para uma redução de 17 casos de "Homicídio Decorrente de Intervenção
Policial (Auto de Resistência), com 44 casos registrados em 2012 contra
27 em 2013. Já o número de pessoas desaparecidas passou de 418 em 2012
para 517 em 2013.
Na visão do sociólogo do Laboratório de Análise
da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV/Uerj),
Ignácio Cano, a pratica do auto de resistência como forma de mascarar os
homicídios cometidos por policiais civis e militares passou a ser comum
no cenário da segurança pública do Estado. Ele relembra que vários
estudos acadêmicos e debates foram promovidos em torno do tema, por
entidades e movimentos sociais contra a violência urbana. Desde o início
da década de 90, agentes da PM e da civil usam dessa "metodologia" nas
favelas cariocas, mas o tema ganhou repercussão internacional e
estabeleceu um clima de tensão social com o caso do ajudante de pedreiro
Amarildo de Souza, desaparecido da comunidade da Rocinha, na Zona Sul
do Rio, no dia 14 de julho, após ser conduzido por PMs da Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) para uma "averiguação". Investigações do
Ministério Público concluíram que Amarildo foi torturado, morto e teve o
seu corpo ocultado pelos PMs, sob a orientação do próprio comandante da
UPP, o major Edson Santos.
A cruel realidade mascarada pelos números oficiais
Na
semana passada, o portal Viva Favela publicou uma reportagem especial
do líder comunitário da Rocinha, William Oliveira, sobre a questão das
pessoas desaparecidas em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Na
matéria, o sociólogo Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos da
Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ/IFCS, faz um
alerta acerca das estatísticas do ISP, que pode não representar a
realidade, levando em conta que a polícia faz o registro, mas não
monitora o reaparecimento dessas pessoas, ou seja, são número
"hipotéticos".
As avaliações de Misse divulgadas na reportagem
apresentam números que refletem uma realidade preocupante. Cerca de 71%
dos desaparecidos registrados pela polícia reapareceram vivos, 15% não
reapareceram e 7% reapareceram mortos. Do total de mortes, mais da
metade podem ser classificados como homicídios dolosos pela suas
características de execução, mas não foram considerados pela polícia ou
pela secretaria de saúde como dessa natureza. Apenas 1% dos não foram
registrados como homicídios, mas há conhecimento de foram assassinados
pelo depoimento de parentes aos pesquisadores ou à polícia. “Se fosse
possível projetar esses números para o universo de 60 000 desaparecidos
registrados entre 2000 e 2012, teríamos cerca de 500 a 600 pessoas
assassinadas sem registro na polícia ou na secretaria de segurança neste
período, um número semelhante ao dos desaparecidos durante a ditadura
em todo o Brasil”, projetou Misse na entrevista ao Viva Favela.
A
história contada por uma moradora da Baixada Fluminense, que vamos
identificá-la na reportagem apenas por F., ilustra bem a contabilidade
apresentada por Misse. F. teve o seu marido supostamente assassinado por
policiais militares do Batalhão de Mesquita, após ser abordado em uma
blitz na Rodovia Presidente Dutra, próximo a casa de shows Riosampa. O
marido de F. estava com os documentos do seu carro irregular e os
policiais tentaram uma "negociação" para liberá-lo da infração, mas o
homem se recusou a aceitar. Os policiais pediram, então, para ele e seu
amigo que o acompanhava seguir o carro da PM até um local, pois
"precisavam conversar e resolver o assunto". "O meu marido e o seu amigo
foram levados para um local ermo no bairro Cabuçu e ambos foram
espancados e jogados num rio. Só que o amigo dele sobreviveu e conseguiu
nos avisar do fato. No dia seguinte, a polícia encontrou o corpo do meu
marido. Se o amigo não tivesse sobrevivido, até hoje estaríamos
procurando pelo meu marido", contou F.
A
dona de casa Maria Lúcia Nunes Guerreiro, de 63 anos, conhece muito bem
a dor e o desespero de esperar por alguém que desapareceu. Moradora da
favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio, Maria Lúcia vive à base de
tranquilizantes e antidepressivos desde o desaparecimento de seu filho, o
motoboy Lúcio Wagner Nunes Guerreio, há dez anos. Na época, Lúcio tinha
23 anos e sonhava em ter a sua frota de mototáxi na comunidade. A
última vez que Maria Lúcia falou com seu filho, ele estava numa
"corrida" para Vila Isabel, transportando um passageiro da comunidade.
Lúcio foi parado numa blitz policial. "Eu estava preocupada porque ele
tinha médico marcado e já estava atrasado, mas ele me tranquilizou
dizendo que estava numa blitz, mas que logo chegaria em casa", disse
Maria. No entanto, Lúcio não chegou e a sua mãe voltou a procurá-lo.
"Dessa vez atendeu um homem se identificando como policial e dizendo que
ia jogar o meu filho do Alto da Boa Vista e falava também 'ele é muito
certinho pro meu gosto, muito certinho'", contou Maria, confessando que
até pensou que fosse uma brincadeira de mau gosto de um amigo, mas
depois viu que se tratava de um criminoso.
Durante três meses, a
dona de casa procurou pelo filho em todos os cantos da cidade, em
hospitais, órgãos policiais e Instituto Médico Legal, além de solicitar
ajuda policial todos os dias. O registro do desaparecimento foi feito
por Lúcia na 20º DP (Vila Isabel) e ela chegou a prestar depoimento na
Corregedoria Geral Unificada (CGU), no Setor de Descobertas da Polícia
Civil. Na época, Maria Lúcia recebeu uma carta anônima e telefonemas
indicando a localização do corpo e atribuindo o crime ao tráfico, mas
nada foi comprovado. "Eu recebi uma intimação do Batalhão de Tijuca e
fui até lá com o meu marido e um amigo, achando que eles tivessem alguma
novidade sobre o paradeiro do meu filho, mas aconteceu um outro fato
estranho. Um homem suspeito, que não estava fardado, me falou dentro do
batalhão, assim que eu entrei, que 'a polícia quando faz, faz bem
feito'. Depois disso, fiquei com medo e voltamos para casa sem qualquer
resposta", contou Maria.
Dez anos e seis meses após o
desaparecimento de Lúcio, Maria confessa que sua vida "se resumiu a
muitos remédios e sofrimento". "Eu não tenho Natal, Ano Novo, nem mais
nenhuma data comemorativa. Choro todos os dias. Mas tenho a esperança de
um dia encontrar o meu filho vivo. Tenho sim, ainda tenho” diz Maria.
Quando deu essa entrevista ao Jornal do Brasil, a dona de casa estava em
um local que passou a fazer parte da sua rotina quase que diária: um
consultório médico.