Segunda, 10 de novembro de 2014
Da Ponte
Bruno Paes Manso — 10/11/14
Baseado na memória de sobreviventes da violência policial, o documentário À Queima Roupa, de Thereza Jessouron, parte da chacina de Vigário Geral e traz à tona a matança em nome da lei
Ainda não consegui me esquecer do depoimento de Vera Lucia dos Santos no documentário À Queima Roupa,
de Thereza Jessouron, que estreia na quinta-feira, 13/11, nos cinemas
de São Paulo. Para falar a verdade, não vou me esquecer nunca mais. Vera
está toda vestida de preto e sua figura tem a sobriedade das matriarcas
evangélicas dos bairros pobres brasileiros. Ela tem uma mistura de
negra e índia. Morava em Vigário Geral quando, em agosto de 1993, 21
moradores foram assassinados por policiais. Oito vítimas eram de sua
família.
Seu pai, sua mãe, 5 irmãos e a cunhada haviam acabado de chegar em
casa depois do culto. Foram executados a sangue frio pelos policiais.
Apenas 3 crianças de menos de 5 anos foram poupadas. Com seus pijaminhas de ursinhos e palhacinhos, eles vão pedir socorro na casa vizinha da tia. No filme, Vera conta como encontrou os corpos de seus parentes depois da chacina. A mãe estava com a bíblia na mão. O irmão morreu de joelhos, segurando os documentos que tentou mostrar para a polícia. Uma das irmãs iria se casar em dias. Outra, lançaria um CD evangélico. Teve os dedos quebrados pelos policiais a irmã que tentou defender os pais.
Apenas 3 crianças de menos de 5 anos foram poupadas. Com seus pijaminhas de ursinhos e palhacinhos, eles vão pedir socorro na casa vizinha da tia. No filme, Vera conta como encontrou os corpos de seus parentes depois da chacina. A mãe estava com a bíblia na mão. O irmão morreu de joelhos, segurando os documentos que tentou mostrar para a polícia. Uma das irmãs iria se casar em dias. Outra, lançaria um CD evangélico. Teve os dedos quebrados pelos policiais a irmã que tentou defender os pais.
Peço ao leitor, com todo o respeito, um esforço de abstração. Imagine
uma vingança com tal crueldade praticada pela polícia contra
moradores de Pinheiros, em São Paulo, do Leblon, no Rio, ou Stella
Maris, em Salvador. Pais formados em universidades públicas, com seus
filhos em colégios privados, todos brancos, 7 corpos estendidos na sala
de jantar para saciar a vingança e o ódio dos policiais marginais. Não
sejamos hipócritas. Isso seria inconcebível. É inimaginável. O Estado
não toleraria as consequências.
Só toleramos as cenas do documentário À Queima Roupa, que se repetem com absurda frequência no Brasil, porque as vítimas são negras e pobres das periferias brasileiras. Assista o documentário e assuma para si mesmo. É a prova irrefutável. Apenas um cínico ou mentiroso seria capaz de negar.
Ainda na cena de Vigário Geral, conforme Vera descreve detalhadamente
a posição dos corpos de seus familiares, o documentário mostra as
fotografias feitas na época pela perícia policial. A sobreposição de
imagens e narrativa é um soco no estômago: por onde escorria o sangue da
irmã, qual parte do irmão estava ferida, etc, as cenas ficaram intactas
na memória de Vera. Também a maneira como estava o céu, o período
da lua, as últimas palavras ditas ao pai. Vera foi condenada pelo
sistema a carregar nos ombros por toda a vida uma cruz maciça que pesa
toneladas. Só conseguiu aliviar o peso graças à grandeza de seu
espírito, que perdoou os assassinos.
As 21 pessoas foram assassinadas em Vigário Geral em vingança
pela morte de 4 soldados que tinham sido executados por traficantes na
noite anterior. Homens, mulheres e crianças foram mortos em
Vigário Geral apenas por viverem no mesmo bairro onde o policial foi
atacado. Na época, houve indignação. O Rio era governado por Leonel
Brizola e Nilo Batista era o Secretário de Segurança. Ambos reagiram com
firmeza.
Só que os anos se passaram. E as vinganças e assassinatos aleatórios
de pobres voltaram a ocorrer. Em janeiro de 2005, 30 pessoas foram
assassinadas por policiais na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. No
ano anterior, 5 adolescentes tinham sido mortos no Caju. Em 2007, subi o
morro no Complexo do Alemão e testemunhei o dia seguinte da execução de
19 moradores locais. Casas de mulheres e idosos invadidas pela polícia
para servir de trincheira. Rádios de carros roubados, comerciantes
extorquidos, crimes rasteiros praticados contra os pobres do Alemão por
policiais com carta branca da sociedade para matar.
Em São Paulo, houve o Carandiru, em 1992, com 111 mortos.
Mais recentemente, depois dos ataques do PCC em 2006, 493 pessoas
morreram por disparos de arma de fogo no começo de maio.
Trabalhadores, pegos no meio das ruas de bairros pobres. Policiais
jogando roleta russa com o destino para assassinar aqueles que por
infelicidade estavam nas ruas das periferias. As Mães de Maio são o resultado da mobilização contra essa covardia, que continua se repetindo.
Assistir ao filme foi especialmente cruel porque no dia anterior 9 pessoas haviam sido assassinadas em bairros pobres do Belém do Pará.
À Queima Roupa deveria ser debatido em todas as faculdades de direito e academias de polícia do Brasil. Nossos
promotores, policiais e juízes estão sendo formados em uma bolha de
plástico. Precisamos conversar com eles sobre a realidade das chagas
brasileiras.
Veja abaixo o trailer do filme: