Terça,
13 de outubro de 2015
Da Auditoria Cidadã da Dívida
O jornal Correio da Cidadania realizou entrevista com a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, a
respeito dos acontecimentos na Europa, que envolvem a dívida pública grega, as
semelhanças com o Brasil nas ilegitimidades da dívida e a
relação do crescimento desregulado da dívida pública brasileira com a atual
crise política e econômica que o nosso país vive.
O Brasil está parado, mas os bancos continuam lucrando
Por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior,
da Redação do Correio da Cidadania
Continua a crise generalizada do
governo de Dilma Rousseff, que acumula reveses em todas as frentes e sangra
politicamente, atado por um Congresso abduzido pelo interesse privado há muito
tempo. Para falar de tamanha crise, que agora registra o maior índice de
desemprego desde 2010, conversamos com e economista Maria Lucia Fattorelli, que
aproveitou para contar seu trabalho de auditoria sobre a dívida grega, ótimo
exemplo do rumo que podemos ver o Brasil tomar.
“O país não recebe dinheiro, mas sim
papeis. E tem de reembolsar a troika em dinheiro. De que forma? Aumentando
impostos e cortando salários, aposentadorias, pensões, além de privatizar
patrimônio. Um verdadeiro caos econômico e social, pois com tais reduções e
cortes o desemprego é brutal, atinge mais de 60% dos jovens e todas as outras
faixas em 30%. Os que mantiveram seus empregos sofreram redução forte nos
salários. O PIB encolheu 22% de 2010 pra cá. O orçamento reduziu-se em mais de
40 bilhões de euros, cifra elevadíssima na economia grega”, explicou.
Trazendo a discussão para o Brasil,
Maria Lucia vê um quadro devastador, capaz de devolver milhões de brasileiro
aos nada saudosos patamares de miséria. Sempre fazendo questão de desqualificar
o “economês”, a auditora fiscal expõe toda a espiral negativa determinada pelas
políticas de ajuste fiscal, que anulam todas as possibilidades de reação da
economia. E, diante da imensa perda de credibilidade do governo, não enxerga
muita luz no fim do túnel.
“Nada das pautas estruturais foi objeto
de enfrentamento. O que se fez foi política periférica, a exemplo do Bolsa
Família e do programa Minha Casa Minha Vida. O atual momento do governo resulta
do fracasso de todas as suas políticas. Tivessem sido enfrentadas as pautas
estruturais, não passaríamos hoje pelo que estamos passando. E no momento, com
toda a crise ética e política, aliada à crise econômica gerada por um modelo
que todos sabiam que ia dar nisso, dado sua insustentabilidade, fica muito
difícil segurar”, lamentou.
A entrevista completa, realizada em parceria
com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Começando pelo
plano internacional, o que você pode nos contar da sua experiência na Grécia,
como membro da Comissão de Auditoria da Dívida daquele país, a convite de seu
próprio parlamento?
Maria Lucia Fattorelli:
Uma experiência muita rica e importante. Foi criada uma comissão pra auditar a
dívida grega, mola-mestra da crise por que passa o país, composta por europeus,
uma africana e duas latino-americanas. Uma grande honra representar o Brasil
neste processo. Embora tenhamos feito um trabalho preliminar, porque tivemos
apenas sete semanas, pouquíssimo tempo pra auditar uma dívida nacional. Assim,
focamos no período de 2010 pra cá, quando começou a intervenção da chamada troika.
Focamos nos contratos feitos a partir de então.
Foi incrível o que observamos. Ficou
evidente que a Grécia não recebeu recursos. Foi um esquema pra beneficiar
bancos privados, não só gregos, mas principalmente de outros países, que haviam
comprado títulos antigos da Grécia e, também, foram atingidos pela crise
financeira de 2008, dois anos antes da intervenção. E aquela crise era
localizada no sistema financeiro. Assim, tais acordos de 2010 foram um
verdadeiro esquema para reciclar os papeis podres de posse dos bancos privados,
transferindo-os à Grécia e exigindo que o país tomasse novos empréstimos para
liquidar tais papeis, que se fossem negociados em mercado não valeriam nada.
Portanto, a situação demanda o
aprofundamento da auditoria, porque só o trabalho preliminar já demonstrou
muitas ilegalidades e ilegitimidades, geração de dívidas sem contrapartida para
a Grécia e o mais grave: a crise monetária se deve à ilegitimidade de tais
acordos. O país não recebe dinheiro, mas sim papeis. E tem de reembolsar a
troika em dinheiro. De que forma? Aumentando impostos e cortando salários,
aposentadorias, pensões, além de privatizar patrimônio. Um verdadeiro caos
econômico e social, pois com tais reduções e cortes o desemprego é brutal,
atinge mais de 60% dos jovens e todas as outras faixas em 30%. Os que
mantiveram seus empregos sofreram redução forte nos salários. O PIB encolheu
22% de 2010 pra cá. O orçamento reduziu-se em mais de 40 bilhões de euros,
cifra elevadíssima na economia grega.
Dessa forma, as pessoas que têm
condições, são bem formadas, falam outras línguas, saem do país. Mais de 110
mil pessoas abandonaram o país pra procurar emprego em outros lugares, outra
perda muito grande, pois sabemos o quanto custa formar profissionais de nível
superior, com mestrado, doutorado etc. Enfim, uma verdadeira tragédia.
Outro ponto grave: diante de tudo que
comprovamos na auditoria, o governo chegou a resistir ao terceiro acordo
proposto pela troika e os países da União Europeia e convocou o referendo de 5
de julho. O próprio primeiro-ministro, Alexis Tsipras, disse que se o povo
dissesse “sim” ao novo acordo de austeridade ele renunciaria. O povo disse
“não” e, logo em seguida, ele passou a defender o acordo que repudiava! Ninguém
entendeu nada. Tsipras acabou assinando o acordo em 20 de julho e renunciou.
Agora o país fez novas eleições e a
sociedade vive um grande desânimo. Foi feita toda uma apuração para que no
final se assinasse o terceiro acordo, que aprofunda ainda mais os problemas
sociais e econômicos do país. Uma verdadeira tragédia, e tudo para salvar
bancos, que transferem sua crise aos países. Isso mostra a urgência de
analisarmos tal assunto.
Correio da Cidadania: Como enxergou a
renúncia do primeiro-ministro Alexis Tsipras e o desmembramento do próprio partido
que vencera as eleições em janeiro, o Syriza, culminando em nova eleição que o
reelegeu?
Maria Lucia Fattorelli:
Terrível. Todos nós acompanhamos a tremenda pressão que a Grécia sofreu. Todos
os jornais do mundo tinham a Grécia na manchete nas semanas do referendo e que
antecederam o acordo. Diziam que se não tivesse acordo toda a economia
europeia, e de outras partes do mundo, seria abalada. Terrorismo total.
E quando analisamos bem, perguntamos: a
economia da Grécia é 2% da europeia. Como 2% derrubam 98%? Não há qualquer
coerência nessa pressão toda. Por que não deixar o país resistir? Fizeram uma
verdadeira tortura, exigiram a saída do Varoufakis e chegou-se à capitulação.
Isso se não houve outro tipo de ameaça. Não temos provas, mas evidencia-se a capitulação
porque o primeiro-ministro passou a defender outra ideia. Mas por que, que tipo
de ameaça ele pode ter recebido, ou o próprio país? Sabemos que é brutal a
pressão exercida pelo sistema financeiro mundial.
Uma pena, porque a Grécia tinha apoio popular
e formulação. O Syriza chegou ao poder com a proposta de resistência. Puxa
vida, organizam tudo, ganham eleições, o parlamento convoca auditoria, que
prova as ilegalidades; convoca-se referendo, que respalda o “não” à política de
austeridade. Pra depois capitular? Claro que houve grande abstenção nas
eleições.
O povo está muito desanimado e abalado.
O índice de suicídios é uma calamidade, tem até programa do Ministério da Saúde
para demover as pessoas da ideia, quase em tom de clamor. As pessoas estão
desesperadas, não enxergam saída alguma, principalmente depois da capitulação.
É um quadro dificílimo para o país se recuperar, depois do alento da chegada do
Syriza ao poder. Agora temos o racha já mencionado no Syriza e dificilmente se
conseguirá construir outra força para reagir. Não à toa a troika comemorou
efusivamente a renúncia do Tsipras e a assinatura do acordo.
Correio da Cidadania: Vindo ao Brasil,
o caráter da nossa dívida pública é similar ao que você viu na Europa?
Maria Lucia Fattorelli:
Em todas as oportunidades que já tivemos de auditar a dívida oficialmente, como
no caso da Grécia e do Equador, assim como no próprio Brasil durante a CPI da
Dívida (que foi uma investigação bem aprofundada), sempre comprovamos a
existência de um mesmo sistema de dívida. Claro que cada lugar tem suas
peculiaridades, mas o modus operandi do “sistema da dívida” é igual.
Sistema da dívida é a utilização do
instrumento de endividamento público às avessas. Tal instrumento é muito
importante. É legítimo que o Estado, em qualquer nível – municipal, estadual ou
federal – lance mão de empréstimos para complementar os recursos necessários
aos seus investimentos. Mas o que verificamos? Os recursos não chegam, a dívida
não tem contrapartida e há um esquema que meramente transfere dinheiro para o
setor financeiro. Tais características se dão em todos os lugares por que
passamos.
A Grécia não recebeu dinheiro. Eram
papeis a serem reciclados. Aqui no Brasil, temos uma investigação histórica,
principalmente da década de 70 pra cá. Já vimos dados bem antigos. Nossa
primeira dívida, da Independência, lá em 1822, já foi dentro desse esquema. Sem
contrapartida. Quando o Brasil se tornou independente, Portugal havia contraído
uma dívida junto a Inglaterra para evitar nossa independência. Ao não conseguir
barrá-la, nos transferiram tal débito, de mais de 3 milhões de libras
esterlinas. E esse dinheiro nunca chegou aqui. Registramos a dívida e já
nascemos devedores, com juros, de um dinheiro que nunca recebemos. Isso que se
chama de sistema da dívida: o empréstimo sem contrapartida.
Hoje em dia temos verificados vários
mecanismos geradores de dívida sem contrapartida. Tanto interna quanto externa.
No Equador também vimos o mesmo, assim como nos âmbitos estaduais e municipais.
Cada um tem suas peculiaridades, mas os mecanismos se repetem. É uma usurpação
do instrumento, que onera o Estado e beneficia sempre, invariavelmente, o setor
financeiro privado.
Correio da Cidadania: Dentro de tal
contexto, como você enxerga a ausência desse assunto em nossos debates, em um
ano de severos cortes de orçamento social, anunciados seguidamente pelo governo
e sua equipe econômica?
Maria Lucia Fattorelli:
É um ponto importante, porque diante da ausência de tal debate quem paga toda a
conta é o conjunto da sociedade. E justamente ela não sabe como a dívida afeta
sua vida. Agora vemos todo o esforço do ajuste fiscal. Falam todos os dias
sobre o ajuste, mas não para que. O que é o ajuste? É o corte de vários gastos
e despesas, investimentos públicos que recaem principalmente sobre as pastas
sociais. Os cortes mais representativos atingem saúde, educação, segurança,
assistência, além de subsídios que influenciam na vida das pessoas, como nos
transportes. Até investimentos sociais básicos como o Minha Casa Minha Vida e o
Bolsa Família, sobre qual anunciaram o corte de 70 mil bolsas, e depois 180
mil. Imagine quantas pessoas só não passam fome graças a esse programa…
Além de tais cortes, vemos aumento de
tributos e privatizações. E todo recurso advindo das privatizações se direciona
ao pagamento da dívida. Todo o ajuste é feito em prol da dívida. Qual, afinal?
Vemos os servidores públicos com salários congelados, trabalhadores da
inciativa privada tendo salários cortados ou sendo demitidos, os aposentados
tiveram seu reajuste vetado – que chegou a ser aprovado no Congresso, mas não
pela Dilma… Os comerciantes e industriais também sofrem. Passamos por um
processo de desindustrialização e vimos o índice de atividade comercial cair
pela sétima vez seguida…
Veja bem: toda a atividade econômica do
país está em queda, exceto a bancária. Eles lucraram mais de 80 bilhões de
reais em 2014. E no primeiro semestre os lucros superam em mais de 15% os do
ano passado. Toda a atividade do país está em queda, o PIB vai encolhendo e os
bancos se mantêm lucrando? É evidente a transferência de recursos públicos para
o setor financeiro privado. Isso acontece, principalmente, através dos
mecanismos de política monetária do Banco Central, sob desculpas de controle da
inflação etc. Assim, geram dívida pública sem nenhuma contrapartida, sem que o
país receba absolutamente nenhum centavo. Geram dívida pública e repassam o
dinheiro aos bancos privados.
Assim, todas as pessoas que pagam a
conta precisam tomar conhecimento da situação, a fim de criarmos consciência
coletiva e uma pressão capaz de promover mudanças. É um debate que tem de
ganhar não apenas entidades da sociedade civil organizada, sindicatos,
associações de todos os tipos, a mídia chamada alternativa etc. (já que são
informações que não saem na “grande” mídia). É preciso envolver mais pessoas
pra multiplicar tais informações e derrubar o mito de que o tema é só para
especialistas. Não é verdade. Normalmente, se tenta criar o famoso “economês”,
apenas para tentar afastar as pessoas, exatamente para que ninguém se
interesse, articule alguma ação e eles fiquem à vontade pra continuar levando
essa vantagem toda.
Nosso papel é exatamente o de fazer o
contraponto. No âmbito da Auditoria Cidadã, tudo que produzimos e publicamos,
as diversas palestras, artigos, livros, cursos que promovemos, sempre são
feitos com linguagem popular e esclarecedora para a população. São mecanismos
que lesam não só as pessoas como a economia nacional por completo. O Brasil é o
sétimo mais rico do mundo e passa por enormes dificuldades. É um grande
absurdo. E a dívida está no centro de toda a problemática.
Correio da Cidadania: Como você imagina
que caminhará o governo Dilma diante de um arranjo político que praticamente a
deixa de mãos atadas em relação ao PMDB, em meio ainda a grandes pressões
sugerindo sua queda ou renúncia? Como isso deve se refletir na vida da
população nos próximos anos?
Maria Lucia Fattorelli:
O governo Dilma é continuidade dos governos Lula, que também foram de grande
capitulação. É muito triste a constatação, mas tal capitulação aconteceu lá em
2003. Quando de sua primeira eleição não havia o financiamento bancário na
campanha. Havia, sim, certo financiamento empresarial, até por conta do
vice-presidente José de Alencar.
Mas o que o elegeu foi toda uma
construção, de mais de 20 anos, de lutas por mudanças efetivas. E todos os
governos do PT acabaram seguindo a agenda neoliberal, das privatizações etc.
Não enfrentaram o sistema da dívida, não enfrentaram o modelo tributário
regressivo do país, onde quanto mais rico se é, menos se paga imposto
proporcionalmente. Promoveram uma brutal concentração de renda, fazendo do
Brasil o país mais desigual do mundo, onde a concentração de renda é a mais
cruel.
Nada das pautas estruturais foi objeto
de enfrentamento. O que se fez foi política periférica, a exemplo do Bolsa
Família e do programa Minha Casa Minha Vida. Muito pouco, algo superperiférico,
ao passo que os lucros dos bancos nos governos petistas foram exponenciais.
O atual momento do governo resulta do
fracasso de todas as suas políticas. Tivessem sido enfrentadas as pautas
estruturais, não passaríamos hoje pelo que estamos passando. E no momento, com
toda a crise ética e política, aliada à crise econômica gerada por um modelo
que todos sabiam que ia dar nisso, dado sua insustentabilidade, fica muito
difícil segurar.
Porque se fosse apenas econômico o
problema, mas o governo tivesse forças políticas bem sustentadas e articuladas
e seguisse um plano conjunto com a sociedade, a situação seria diferente.
Mas não tem nada disso. Todas as
promessas de campanha viraram do avesso. Tudo que foi dito em favor do social e
em termos de colocar o país na trilha de mais justiça social e desenvolvimento
virou do avesso. O que vimos das eleições pra cá foi aumento brutal de juros. A
taxa Selic, em relação a outubro do ano passado, subiu 30% e já atinge 14,5%.
O orçamento é um só. Por que tem
dinheiro pra subir 30% dos juros e corta-se gasto social? Ao mesmo tempo, as
políticas do BC de reconhecer e garantir variação cambial aos bancos, através
das operações de swap, nada mais são que garantias aos bancos. Nada mais. O
dólar sobe e o BC vem pagar a diferença para bancos e grandes empresas, gerando
grandes prejuízos. Como se cobre tal prejuízo? Com geração de dívida. Hoje o BC
remunera toda sobra de caixa dos bancos, nas operações compromissadas.
Olha o custo dessa política! É insana.
E sem apoio da sociedade, diante do não atendimento das pautas de campanha,
junto da crise ética e política, cria-se uma situação complicadíssima. É
dificílimo reverter tal quadro. Exigiria uma virada total do governo, de modo a
assumir de fato a pauta social, da classe trabalhadora e dizer “não” ao sistema
financeiro. Mas vemos o contrário. Arrocho geral para cumprir ajuste fiscal e
continuar dizendo “sim” ao mercado financeiro, apesar de todas as denúncias e
ilegalidades do processo. É muito difícil ter solução nesse quadro.
O ajuste fiscal joga a economia numa
espiral rumo ao fundo do poço. Tributa-se mais a sociedade, logo, tira-se
recursos das mãos das pessoas, cortam-se os salários e gera-se desemprego. As
pessoas não consomem, o comércio cai, demanda-se menos da indústria, que por
sua vez demite… É o fundo do poço. Os países que melhor enfrentaram crises
econômicas injetaram dinheiro na economia, ativaram o emprego e o investimento.
Aqui fazem o contrário. O acirramento do ajuste fiscal corta todas as
possibilidades de reação da economia.
E, ao se juntar a crise econômica às
crises ética e política, ficamos numa situação muito complicada.