Sábado, 17 de setembro de 2016
"Não pode haver mais vida para os setores de esquerda dentro do lulismo,
que mesmo antes do fim da lua de mel com as massas já mostrava uma
grande miopia diante dos anseios dos brasileiros."
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Do Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br
Escrito por Gabriel Brito, da Redação
Entrevista com o sociólogo do trabalho Ruy Braga
Entre um impeachment e mais um ciclo eleitoral, o Brasil continua a
cambalear, no aguardo das medidas econômicas que visam combater a grave
crise e sob o calor de frequentes protestos contra o governo de
Michel Temer. Além disso, com o cerco da Operação Lava Jato a Lula,
indiciado nesta semana, a temperatura dos embates continua a subir, o
que deixa várias interrogações no horizonte. Sobre todo esse contexto,
o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo do trabalho Ruy Braga,
que fez profunda análise do momento.
“Não se pode obscurecer o fato de que a esquerda brasileira colhe
hoje aquilo que o PT plantou ao longo de seus 13 anos no Planalto:
desmobilização social, estratégia de negociar tudo no parlamento,
pacificação apoiada em reformas quase inexistentes, com privilegiamento
agudo de setores capitalistas e financeiros”, afirmou, como ponto de
partida da compreensão do que se passa.
Conforme já dissera em entrevista anterior, Braga alerta para a
necessidade de derrubar o governo de Michel Temer, que visa impor uma
dura ordem em favor dos negócios. Aliás, considera que tal combinação de
políticas de austeridade com violência política são cada vez mais
inerentes ao modelo de democracia em vigor. Mais ainda quando nem mesmo
aqueles que subiram ao poder conseguem se entender por completo.
“Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e
também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise
bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda
desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral
em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra
garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos”.
Ruy Braga também destaca que não pode haver mais vida para os setores
de esquerda dentro do lulismo, que mesmo antes do fim da lua de mel com
as massas já mostrava uma grande miopia diante dos anseios dos
brasileiros. Com isso, considera que há um longo ciclo de reconstrução
pela frente, que tem tudo para encontrar duros obstáculos no plano
imediato diante de contexto tão aterrador.
“Não tem como manter concessões dos gastos sociais do governo federal
numa conjuntura de crise econômica. Isso iria colapsar conforme a crise
econômica se aprofundasse. Houve uma desaceleração a partir de 2013. O
governo do PT, em tal momento, ainda fez uma leitura vazia das Jornadas
de Junho, quando as massas – em especial a juventude da classe
trabalhadora, precarizada, mulher, negra e pobre – saíram às ruas
exigindo mais democracia, gastos públicos, investimentos em saúde,
educação, transporte, moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o
governo Dilma cortou mais de 10 bilhões de reais do orçamento federal. A
partir de então, não foi mais capaz de retomar a iniciativa política”,
contextualizou.
A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você assistiu e sentiu o trâmite
final do processo de impeachment de Dilma, apreciado e votado no Senado
ao longo da última semana?
Ruy Braga: Não foi nenhuma surpresa. A rigor, o
segundo governo de Dilma já tinha acabado na votação da Câmara dos
Deputados, em 17 de abril. O resultado no Senado não surpreende porque
as forças políticas colocadas no interior do parlamento, associadas às
forças econômicas e sociais de fora do parlamento, em especial os
bancos, grandes empresas, grandes interesses internacionais, já tinham
articulado a decisão de que Dilma deveria ser impedida.
Consequentemente, o resultado coroa a combinação de forças ao mesmo
tempo politicas, sociais e midiáticas colocadas em movimento no último
ano e meio, a fim de substituir o governo Dilma por Michel Temer, e
fazer avançar a agenda de contrarreformas, cujo sentido fundamental é
fazer um ajuste estrutural no modelo de desenvolvimento capitalista do
país, de modo a privilegiar os setores rentistas. A votação no Senado
coroa o processo que redundou na assunção do governo Temer.
Correio da Cidadania: O que achou da postura e discurso da presidente Dilma em sua defesa?
Ruy Braga: Acompanhei todos os debates do Senado de
maneira pormenorizada, e dentro da dimensão jurídica do impeachment, me
parece absolutamente claro que não houve o crime de responsabilidade.
Assim, o que houve foi um golpe parlamentar, midiático, palaciano, no
sentido de escolher ou encontrar uma razão pra impedir a sequência do
governo de Dilma.
Consequentemente, a situação fortalece, claro, o argumento dos
setores outrora governistas e cacifa-os a denunciar um golpe que de fato
ocorreu. Dentro disso, seu discurso ao Senado levantou uma série de
questões-chave para pensarmos a crise. Parece que a Dilma, como
personalidade histórica, se preservou de maneira bastante digna no
processo. Historiadores estudarão daqui um tempo o momento vivido pelo
país e darão razão à tese do golpe e ao discurso proferido por Dilma no
Senado.
O fato de Dilma vir discursar como nunca havia feito se explica, em
primeiro lugar, pela clara adoção do PT de um modo de regulação baseado
na pacificação social, consequentemente, na desmobilização dos setores
populares e da massa da classe trabalhadora. Isso significa que nos
governos Lula e Dilma percebe-se um PT no poder que prefere negociar no
parlamento a estimular a participação das massas no processo de
empoderamento social e popular. Abdica do processo de apostar no poder
popular, na capacidade de mobilização dos movimentos e pressão sobre o
parlamento pra garantir políticas públicas progressistas ou reformas
mais profundas, do tipo que nunca foram implementadas pelo PT.
No momento em que o partido e Dilma percebem que a estratégia de
pacificação social ruiu com o processo de impeachment, a polarização
política instalada na sociedade e toda a radicalização ocorrida no
parlamento, por conta da Operação Lava Jato, aprofundamento da crise
econômica e suas repercussões na vida nacional, a presidente resolveu
radicalizar o discurso porque a nau já tinha ido a pique, o barco já
estava furado.
Numa mistura de desespero com alívio, Dilma passou a ter um
comportamento mais ativo, no sentido midiático, denunciar o impeachment
como um golpe e apelar aos movimentos sociais, de modo a fazer o papel
que lhe cabia, de fato, naquele momento. Mas não se pode obscurecer o
fato de que a esquerda brasileira colhe hoje aquilo que o PT plantou ao
longo de seus 13 anos no Planalto: desmobilização social, estratégia de
negociar tudo no parlamento, pacificação apoiada em reformas quase
inexistentes, com privilegiamento agudo de setores capitalistas e
financeiros.
Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no
governo federal. Portanto, Dilma é vítima de golpe parlamentar, porém, é
cúmplice do golpe contra os direitos sociais agora em andamento no
país.
Correio da Cidadania: O que pensa do adiamento do julgamento do TSE a respeito da chapa Dilma-Temer para 2017?
Ruy Braga: Eu vejo a possibilidade, sim, da queda de
Temer, mas pouquíssimo provável. O ambiente do país é muito volátil,
está difícil prever o que vai acontecer em duas semanas, o que dizer até
o fim de 2018. Mas parece mais provável ele permanecer no poder e
procurar, ainda que não seja certo por conta das forças que tem,
implementar a agenda de contrarreformas e ataques aos direitos sociais e
trabalhistas da massa subalterna do país.
Mas não está claro. Por várias razões: do ponto de vista político strictu sensu,
há uma crise que não foi superada, a despeito da formação de uma
maioria parlamentar confortável no Congresso. Isso porque o PMDB
incorpora a agenda do PSDB, que por sua vez tenta empurrar ao PMDB o
mico de aplicar medidas não aprovadas na eleição de 2014. Significa que o
PMDB de forma mais ou menos envergonhada, em alguns setores até
flagrantemente contrariado, tem de assumir uma agenda que não é a que
assumiria em condições normais. No entanto, o PSDB força tal agenda
porque percebeu a janela de oportunidades de fazer aprovar as medidas
derrotadas em 2014.
Por outro lado, o PMDB sabe que o governo dependerá da aprovação
dessas medidas que favoreçam o capital exportador, financeiro e parte
significativa do próprio capital industrial brasileiro. No entanto, não é
propriamente uma garantia da aprovação porque as medidas são
extremamente antipopulares, num contexto fundamentalmente volátil, de
grande mobilização social.
Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e
também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise
bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda
desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral
em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra
garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos.
Ou seja, continuamos num imbróglio muito grande. E caso a agenda
avance no Congresso e a reação popular atinja de morte o governo Temer, o
PSDB não irá acompanhá-lo para o túmulo, irá romper com o governo do
PMDB caso este se torne ainda mais impopular e ameace suas intenções
eleitorais.
Pra resumir, é o seguinte: o impeachment foi uma aventura muito mal
calculada pelos diversos atores políticos, improvisada. Imaginava-se que
o impeachment poderia bloquear a Lava Jato, mas tampouco aconteceu como
esperado. No lugar do governo Dilma enfraquecido, mas ainda legítimo e
com algum nível de controle sobre o movimento social e sindical, agora
temos um governo e um parlamento que cortaram qualquer vínculo com a
sociedade, ao menos com as massas populares, que participam de eleições.
Assim, temos uma crise que deve se estender por mais algum tempo.
Também deve continuar com alta volatilidade o cenário social do Brasil.
Correio da Cidadania: Acredita que podemos adentrar tempos de
instabilidades, e até quedas, nos próximos tempos, talvez com alguma
semelhança com a Argentina entre 2001 e 2003?
Ruy Braga: Há um aprofundamento da crise política e o
horizonte não é tranquilo para o governo Temer, pois parece que
enfrentará um processo de contestação social cada vez mais forte. Até
porque só agora os efeitos deletérios do desemprego estão sendo sentidos
de forma mais íntima nas classes populares. A isso se soma o fato de o
governo apostar numa agenda antitrabalhista, de flagrante ataque contra
os direitos sociais, em especial à previdência pública, através da sua
reforma.
Haverá aumento da crise, em razão das respostas populares, mas também
creio que a economia, num primeiro movimento, irá se recuperar da
recessão dos últimos dois anos. Não no patamar anterior à crise, mas
claramente atingimos o fundo do poço e talvez fiquemos lá por mais
alguns meses. No entanto, é característica da economia capitalista uma
recuperação cíclica, ainda que moderada, após processos de recessão
profunda. O que temos para o ano que vem é um cenário de recuperação,
ainda que muito modesto, em torno de 1%, que de alguma maneira servirá
pra aliviar a pressão econômica, combustível da crise política.
Parece que a tempestade da Argentina, com profunda crise política no
interior de uma profunda crise econômica, não deverá, ao menos no ano
que vem, acontecer. O cenário que enxergo é de aprofundamento da crise
política com alguma recuperação cíclica da economia.
Correio da Cidadania: Em entrevista anterior, você disse
“estarmos sendo confrontados com o colapso de um modelo de representação
tradicional” e usou a Turquia de Erdogan como um exemplo de democracia
com diversas nuances ditatoriais. Com o PMDB à frente do governo, diria
que já estamos diante desse experimento?
Ruy Braga: Diria que ainda não pelo simples fato de o
governo ser frágil. Mas se conseguir controlar a situação, por meio da
frente parlamentar e assegurando, por meio das contrarreformas, a
elevação da taxa de lucro das empresas do país, ou seja, se o governo se
fortalecer com uma recuperação da economia, aí sim nos encaminhamos
para o aprofundamento do autoritarismo no país.
O regime democrático brasileiro é muito frágil, de baixíssima
intensidade, e aquilo que os setores empresariais querem (ajuste
estrutural na economia com vias de renovar as estratégias de espoliação
social) exige governos fortes, centralizadores e autoritários. Pois
aquilo que caracteriza o desenvolvimento apoiado em regimes de
acumulação por espoliação social é a violência política, ao invés da
violência econômica que se dá na acumulação de capital e geralmente na
produção.
Na verdade, temos a dependência cada vez maior da estrutura da
economia em relação a um Estado autoritário, que se apoia na violência
política sobre as massas. Portanto, me parece mais ou menos claro que
caso o governo Temer se fortaleça caminhamos para uma espécie de “saída
turca”, isto é, um regime cada vez mais autoritário a liderar uma
democracia de fachada.
Por isso é tão importante derrubar o governo Temer.
Correio da Cidadania: Como você relacionaria o atual momento
com as massivas manifestações de 2013? Como vê, nesse sentido, a
sequência de atos realizados nas principais cidades, sob a insígnia do
Fora Temer?
Ruy Braga: Basicamente, o “Fora Temer” liberou as
forças que se organizam em torno dos movimentos sociais do fardo pesado
que era defender o governo Dilma. Isso fez intensificar o processo de
mobilização em torno de uma bandeira que unifica quase todo mundo.
Com o fim do processo impeachment, os setores populares estão mais à
vontade pra sair às ruas e protestar contra o governo desse usurpador
chamado Michel Temer. Diria, ainda, que a mobilização que hoje orbita
muito em torno dos movimentos sociais e sindicais organizados tende a se
ampliar na medida em que os setores que não saíram às ruas neste ano,
mas saíram em 2013, devem se somar, pois se trata daqueles setores não
organizadas da juventude, do que chamo de “precariado”, que ainda não
deram as caras. Mas cada vez mais tendem a se aproximar da mobilização
pelo “Fora Temer”.
De fato, o “Fora Temer” é uma palavra de ordem e um slogan sedutor,
na medida em que esse governo é profundamente impopular. Com 8%, 10% de
aprovação, tem-se um governo fraquíssimo, e a perspectiva de derrubá-lo
torna a mobilização bastante sedutora pra diferentes setores
subalternos.
Nesse exato momento, assistimos a mobilização dos setores mais
organizados, numa espécie de fagulha que pode ser capaz de incendiar
setores não organizados, em especial aqueles formados por jovens
trabalhadores.
Correio da Cidadania: Como as manifestações comandadas pela direita entre 2015 e 2016 se situam no meio disso?
Ruy Braga: Vejo como algo pendular, levando em
consideração o flagrante aprofundamento da polarização política. 2013
foi majoritariamente espontâneo, sustentou bandeiras ou demandas de
esquerda, e tinha no seu interior, no momento de pico, cerca de 30% de
setores médios tradicionais, insatisfeitos com Dilma. Tais setores
médios passaram a ser majoritários nas manifestações de 2015, quando
aqueles grupos que sustentaram plataformas mais à esquerda e radicais,
como o próprio MPL, recuaram.
Isso por várias razões, desde certa inorganicidade e incapacidade de
sustentar o próprio movimento de contestação aos governos, e,
evidentemente, uma relativa perda de espaço para a agenda de direita. Em
2015, tivemos uma onda de manifestações pró-impeachment, que se
massificou levando-se em conta, no essencial, a participação da mídia
corporativa, que convocava as manifestações no país todo.
Com o processo de impeachment de Dilma, entramos no terceiro momento,
de retomada das mobilizações dos setores de esquerda contra a agenda
liberal, que significa um recuo aos anos 90, simbolizado nas figuras de
Serra e Temer. São movimentos pendulares que acompanham os
desdobramentos das crises política e econômica e se alimentam dos fatos
espetaculares de tais crises.
Correio da Cidadania: Em meio à crise toda, como viu a sessão
de cassação de Eduardo Cunha neste início de semana na Câmara, um dos
ícones da recente ingovernabilidade do país e também da queda de Dilma?
Ruy Braga: Não acredito que mude. Parece que, pura e
simplesmente, tivemos outra tentativa da Câmara, ao menos de uma
parcela majoritária, de salvar sua pele diante da opinião pública. Temos
uma classe política desgastada, uma Câmara que se mostrou praticamente
nua na votação do impeachment de Dilma e chocou o país com sua faceta
caipira, retrógrada, reacionária, conservadora, uma face misógina, além
de empresarial, branca, enfim, tudo aquilo que a sociedade brasileira
não é em sua maioria. Eles chocaram o país no impeachment de Dilma e
agora buscam fazer relações públicas com a opinião nacional ao afastar
Eduardo Cunha, que na realidade já tinha perdido todo seu capital
político.
É um indivíduo, evidentemente, deplorável, detestável, mas nada mais
nada menos representa a condição política do regime brasileiro e sua
forma de funcionamento, a face mais visível e perversa dessa classe
política. Não acho que a cassação do Cunha resolve a crise política e
mudará algo. Foi uma maioria de ocasião, mas não altera as principais
determinações da crise política tal como ela se apresenta hoje.
Correio da Cidadania: O que pensa da relação entre
manifestantes e PM, mais uma vez a envolver a polêmica a respeito da
tática black bloc?
Ruy Braga: O Vladimir Safatle matou a charada quando
disse que “a polícia tem partido”. De fato, a Polícia Militar tem
partido e é o partido da ordem, no caso aqui de São Paulo o partido que
comanda o estado, o PSDB. A polícia reprime duramente as manifestações
progressistas, protagonizadas pela juventude, pacíficas, e celebra ou
garante as manifestações pelo impeachment, contra o PT, contra Dilma e
assim por diante. É uma clara demonstração de que a Polícia Militar tem
um partido, um partido antipopular, do ataque aos pobres, à juventude
negra; é o partido daquilo que podemos chamar de atraso. Isto ocorre
levando-se em consideração o uso cada vez mais frequente, e que
tragicamente continuaremos a ver, da violência política contra as massas
populares que se rebelam.
A burguesia brasileira não tem um plano B. Ela vai atacar os direitos
dos trabalhadores, que reagirão e serão duramente reprimidos pela PM. É
o que tem acontecido e vai continuar acontecendo. A estratégia social
de acumulação por espoliação depende fundamentalmente da violência da
polícia e do Estado. Insisto: a PM ou a militarização frente ao
movimento social no Brasil é um componente inerente, não é algo externo
do próprio regime e modelo de desenvolvimento. Vai ser cada vez mais
usado e não há a menor sombra de dúvidas de que a PM, quando promove a
baderna, a confusão e a violência no final das manifestações,
absolutamente pacíficas, pelo Fora Temer, está agindo conforme uma
diretriz que, seguramente, recebe do governo do estado de São Paulo.
Dessa forma, precisa criar um fato político para justificar a
repressão. Apoiada na mídia golpista, a estratégia é aquela que a
burguesia brasileira tem à sua disposição hoje. É a única possibilidade.
Tudo o que foge disso não é uma alternativa para a burguesia
brasileira. A democracia ou a democratização do país não é alternativa
para a burguesia brasileira. A alternativa única e exclusiva é a
violência contra a pressão popular.
Correio da Cidadania: Teria finalmente algo ainda falar sobre
a debacle do governo petista, após anos de euforia e consagração
internacional? O que será do lulismo daqui em diante?
Ruy Braga: Naturalmente, a crise do segundo governo
Dilma, ou ao menos o ritmo que tomou, tem efetivamente um componente
político: a disputa entre Dilma e Eduardo Cunha, que se resolveu neste
ano. O ritmo político, de alguma forma, acelerou tanto a queda da Dilma
quanto o próprio aprofundamento da crise econômica.
Tivemos no parlamento, a partir de 2015, a votação de uma série de
pautas-bomba que vinham sendo acumuladas e praticamente inviabilizaram
qualquer capacidade de manobra do governo federal em relação à questão
econômica. Assim, temos um componente político que passa pelas
características da cena política no parlamento e pela relação entre o
legislativo e o executivo.
Entretanto, não vi como surpresa o colapso do lulismo. Colapso do
lulismo como modo de regulação do conflito de classes no Brasil, apoiado
pelas ideias de pacificação social, por um consentimento ativo dos
setores mais organizados da classe trabalhadora e dos movimentos
sociais, e um consentimento mais passivo, basicamente formado pela
combinação de políticas sociais do Bolsa Família para o subproletariado e
a formalização e valorização do salário mínimo para o precariado
brasileiro. Tal combinação de consentimentos, ativo e passivo, tinha um
colapso mais ou menos previsível, a partir do aprofundamento da crise
econômica.
Não tem como manter concessões, ainda que sejam concessões mínimas e
do ponto de vista do mercado de trabalho, dos gastos sociais do governo
federal, numa conjuntura de crise econômica. Isso iria notoriamente
colapsar conforme a crise econômica se aprofundasse. Houve uma
desaceleração a partir de 2013. O governo do PT, em tal momento, ainda
fez uma leitura vazia das Jornadas de Junho de 2013, quando as massas –
em especial a juventude da classe trabalhadora, precarizada, mulher,
negra e pobre – saíram às ruas exigindo mais democracia, mais gastos
públicos, mais investimentos em saúde, em educação, em transporte, em
moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o governo Dilma cortou mais
de 10 bilhões de reais do orçamento federal. Ou seja, fez uma leitura
totalmente às avessas e cavou sua própria sepultura, porque a partir de
então não foi mais capaz de retomar a iniciativa política.
O governo Dilma, assim, ficou cada vez mais refém de um parlamento
conservador e reacionário e de um ente político (PMDB) que deu uma
acelerada guinada para a direita, de modo a ficar cada vez mais
dependente. A ponto de, ao ver aquelas massas de verde e amarelo
invadirem as ruas, em grande medida convocadas pela mídia golpista,
ficar totalmente sem medida no cenário político. Não podia contar com os
setores populares, que havia traído com uma campanha à esquerda em 2014
e medidas à direita em 2015 – cortes de gastos aos direitos sociais e
trabalhistas etc.; por outro lado, não podia propriamente contar com uma
base parlamentar que estava dando uma guinada à direita muito
improvisada e acelerada, levando-se em conta a própria reação à Operação
Lava Jato.
O governo tornou-se insustentável, mas apenas expressa e representa o
colapso daquele modo de regulação que o lulismo representou durante ao
menos 12 anos. Ou seja, uma acomodação mais ou menos geral dos
interesses das classes populares no interior de um modelo de
desenvolvimento financeirizado, que privilegiava fundamentalmente
setores do capital financeiro e algumas frações do capital interno, mas
internacionalizado, como o agronegócio, a construção civil e assim por
diante.
O fim do governo Dilma, da forma como vimos, representa um
desdobramento razoavelmente natural do colapso do modo de representação
lulista.
Correio da Cidadania: Dentro disso, como imagina a esquerda, de modo geral, nos próximos anos?
Ruy Braga: Dentro do lulismo, não imagino mais
esquerda, não há esperança. Fora do lulismo, e pensando basicamente fora
desse projeto de conciliação de classe e pacificação social, acredito
que há espaço para uma esquerda mais radical no país. Uma esquerda
radical que terá pela frente uma enorme tarefa de reconstrução de um
projeto socialista de país, que parte necessariamente de uma
reconstrução das suas práticas políticas.
Não consigo imaginar hoje um projeto de esquerda no Brasil que tenha
futuro se não for capaz de articular de maneira não sectária tantos
segmentos de esquerda, que ainda existem em termos eleitorais, e de
enraizamento na vida política brasileira. Notoriamente, o PSOL, ao lado
de outros partidos de menor expressão, como o caso do PCB e do PSTU, em
diálogo com os movimentos sociais. E estou pensando tanto nos movimentos
sociais urbanos, com o MTST à frente, quanto nos setores do campo, MST e
outros movimentos populares, que sejam capazes de superar a experiência
de 13 anos do PT no governo.
Hoje, estamos diante da possibilidade de reinventarmos a esquerda no
país a partir da fórmula que envolve partido e movimento. Que seja uma
fórmula radicalmente democrática, capaz de colocar o controle das
direções pelas bases e a reinventar práticas democráticas dentro das
organizações socialistas como prioridade absoluta. Caso contrário, não
vejo possibilidade de superar a crise que o PT nos legou.
Correio da Cidadania: Como a destituição da presidente Dilma deve se refletir nas eleições municipais?
Ruy Braga: Acho que o impacto principal é uma
espécie de comprovação de que o PT não é capaz de tirar o país da crise.
Consequentemente, candidaturas conservadoras ou de direita devem ser
beneficiadas pela queda da Dilma. Temos, por outro lado, um PT buscando
explorar politicamente a história do golpe, mas acho pouco provável que
consiga – ao menos nos centros urbanos mais importantes como São Paulo e
Rio de Janeiro; talvez haja alguma esperança para o PT no Nordeste,
ainda que com dificuldades.
O cenário político eleitoral deste ano não deve destoar muito daquilo
que temos percebido em pesquisas de opinião. Provavelmente,
prevalecerão candidaturas de centro ou centro-direita, com algumas
eventuais surpresas positivas, como o caso da Luciana Genro em Porto
Alegre, que possui chances efetivas de ganhar a prefeitura – e não vai
ser fácil, pela existência do segundo turno. Parece que o cenário geral é
bastante desalentador para a esquerda brasileira. Novamente, tal
cenário se deve à derrota imposta a toda a esquerda brasileira, não
apenas aos setores petistas.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania