Terça, 5 de maio de 2015
Da Tribuna da Imprensa
Por Igor Mendes
Grilo deve
ter em torno de cinquenta anos. Não sei o seu nome, acredito que poucos sabem.
Grilo é alto, magro, negro e tem os olhos meio caídos, um tanto inexpressivos.
Fala com dificuldade, cada sílaba é pronunciada com esforço. “Com todo
respeito” era sua frase favorita no tempo em que convivemos:
“Com todo
respeito, você pode me fortalecer um cigarro?”.
“Com todo
respeito, você pode me emprestar dois real?”.
Na cadeia
essa frase inicia, protocolarmente, todos os pedidos. Os que se pagam e os que
não se pagam. Uma vez grilo chegou junto à grade da minha cela, logo após o
“confere” (por volta das 8h00) e me pediu “com todo respeito”, “de coração”,
“humildemente”, um real emprestado, para me pagar dali a uma hora, “assim que
abrir a cantina”. Coisa curiosa a prisão: aqueles que a sociedade julga
monstros perigosíssimos, aqui dentro quase choram por uma moeda, como crianças
pedindo doce. Emprestei fingindo acreditar que ele me pagaria, o que obviamente
não aconteceu...
(Na prisão,
realmente, tudo é pedido, negociado. Ninguém pode ofender ou agredir, física ou
verbalmente, outra pessoa, nem tomar nada de outrem. Brigas são proibidas, a
menos que haja alguma autorização do coletivo nesse sentido. Existem normas de
convivência rígidas, algumas questionáveis, mas compreensíveis se pensarmos que
habitam cinco ou seis pessoas num espaço onde duas já teriam dificuldades).
Sempre via
o Grilo na “pista”, fazendo a sua “correria”. Pista é o corredor da galeria
(cada galeria tem 14 celas, 7 de cada lado), e a cada dia dois presos nele
ficam soltos, para limpá-lo, receber e entregar os pedidos da cantina, entregar
(“pagar”) os pães e as quentinhas da alimentação, etc. É a pista, sobretudo, o
local do comércio, que nos dias posteriores à visitas é febril. Não há nada que
não se consiga comprar na pista, de um cortador de unhas a uma televisão, e às
vezes várias rodadas de negociações são necessárias até que vendedor e
comprador cheguem a um acordo quanto ao preço. Grilo não recebia visitas, como
a maior parte dos condenados a longos anos, e era intermediando um negócio e
outro que conseguia levantar um qualquer para comprar um café, ou arranjar três
cigarros – nisso era expert, pois nunca o comércio da galeria, a venda e a
troca de sucata, ocorria tão intensamente do que quando ele estava na pista.
Por isso do Grilo sempre se dizia que era “correria”.
Um exemplo.
Por três dias seguidos me pediu papel em branco, até que no quarto tive que
negar-lhe, afinal, nunca tive a intenção de abrir uma papelaria na cadeia.
Soube, depois, que com a folha ele fazia envelope para cartas, bem ajeitado
até, que vendia por cinquenta centavos. Correria...
Ele estava
invariavelmente com a mesma camisa branca e short azul. Como estava sempre
andando de um lado para o outro tivemos poucas oportunidades de conversar, mas
pude reparar ao vê-lo anotar qualquer coisa, que tinha para escrever a mesma
dificuldade que tinha para falar. Os presos riam e brincavam com ele porque, ao
invés de falar “cantina”, sempre anunciava, a plenos pulmões, que já abrira a
“quentina”, e não havia explicação que o convencesse a mudar o velho hábito.
Nem havia por que: a função da língua é fazer-se entender, e ninguém deixava de
juntar os seus trocados para comprar um pão só porque o “quem’ substituía o
“can”.
Um dia, não
me lembro porque, fiquei sabendo que o Grilo estava preso há quase trinta anos.
Espantei-me: como? Trinta anos? Mas eu não lhe daria nem quarenta anos de
idade! Sim, preso há trinta anos, mas com intervalo: foi preso, pela primeira
vez, com vinte anos de idade, ficou vinte e quatro anos seguidos encarcerado,
ganhou finalmente a liberdade e, passados dois meses, reincidência, nova
condenação, e agora já estava no quinto ano de detenção. Daí já se pode julgar
a eficácia do lema da Secretaria do Estado de Administração Penitenciária
(SEAP): “Ressocializar para o futuro conquistar”.
Qual
ressocialização? Qual futuro? Grilo passou a sua miserável vida, toda ela,
praticamente, na prisão. Depois de saber a sua história passei a observá-lo com
mais calma, para ver se encontrava nele algum traço de sofrimento, ou revolta,
ou esperança, nada. O impiedoso mecanismo que o esmaga lhe foge completamente
ao entendimento, a ponto de parecer-lhe natural. Não há futuro, não há passado,
mas tão somente o presente, a eterna correria num úmido corredor de celas, um
dia a mais, outro a menos, todos iguais. Lembrará ainda, quiçá, o seu nome?
Perversa, doentia é a sociedade que não cessa de fabricar presídios e
presidiários. Que desumaniza a uns, fazendo-os acharem natural o fato de não
terem, e a outros, que aplaudem como autômatos esse cenário dantesco. Grilo é
um santo! Não. É um demônio? Também não. É apenas o retrato do nosso tempo, a
prova viva de que, nesse país, tudo anda errado. Olhando, de dentro da prisão,
os que para cá querem enviar adolescentes de dezesseis anos, só posso me
lembrar da antiga frase: “eles não sabem o que fazem”. E creio que a maioria
não sabe mesmo, apenas repetem o que dizem os noticiários sensacionalistas,
sedentos de sangue. Os que sabem são, esses sim, irrecuperáveis, um caso quase
perdido para a humanidade.
Grilo foi transferido para
outro presídio, juntamente com dezenas de outros presos, às presas, tudo
atropelado. Na confusão não pudemos nos despedir. Peregrina agora em algum
presídio do Rio de Janeiro, fazendo sua correria nas pistas de outras galerias.
É provável que nunca venha a saber que se escreveu um texto sobre ele. Quem
sabe um dia possa cobrá-lo, dividindo um derradeiro café, os um real que ele
nunca me pagou...
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ENDEREÇO: Cadeia
pública Bandeira Stampa
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PARA IGOR MENDES
PARA IGOR MENDES
Defendo a extinção imediata de todos os processos e
o cancelamento das condenações de todos os presos políticos! (D.M.)
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