Transcrito do ESQUERDA.NET
Para o geógrafo, os
partidos tradicionais tornaram-se incapazes de enfrentar o capitalismo
reconfigurado. Mas grupos como o Syriza e o Podemos multiplicam o alcance das
“políticas do quotidiano” praticadas pela juventude anti-sistema. Myke Watson
entrevista David Harvey, para a Verso Books .
29 de Maio, 2015
Conhecido pela abordagem não convencional que introduziu no
debate sobre o Direito à Cidade e pela sua leitura heterodoxa da obra de Karl
Marx, o geógrafo David Havey parece cada vez mais disposto a participar do
esforço pela renovação do pensamento e lutas anticapitalistas. A partir de
2011, já examinara atentamente movimentos como a Primavera Árabe, os Indignados
e o Occupy. Agora, aos 79 anos, segue com atenção formações políticas que,
embora tendo o marxismo como fonte (não única…) de inspiração, diferem em muito
dos partidos tradicionais de esquerda — nos programas, práticas e métodos de
organização. Volta os olhos, em especial, para o Syriza grego e Podemos
espanhol.
Na entrevista a seguir, Harvey fala brevemente — porém de
forma incisiva — sobre estes novos movimentos-partidos. Vale a pena reter três
pontos suscitados pelo geógrafo: a) Segundo ele, o cenário das lutas políticas
e culturais é menos sombrio do que vezes parece. A esquerda histórica perdeu a
capacidade de dialogar com os novos movimentos. No entanto, eles
multiplicam-se, ao reunir um número crescente de pessoas que, no meio de um
mundo desumanizado, “procuram uma forma de existência não-alienada e esperam
trazer de volta algum sentido à própria vida”; b) Syriza e Podemos não se definem
como anticapitalistas, mas isso é o que menos importa. Eles dão sentido e força
à revolta de quem se sente desamparado pela redução dos direitos sociais. Ao
fazê-lo desafiam o principal projeto do sistema: uma nova ronda de
reconcentração de riquezas, expressa nas políticas de “austeridade” ou “ajuste
fiscal”; c) Talvez o calcanhar-de-aquiles das políticas hoje hegemónicas esteja
na Europa. Ao empurrarem a Grécia para fora do euro, a oligarquia financeira
pode produzir uma tempestade de consequências imprevisíveis. Segue a entrevista
(A.M.).
No seu último livro, afirma que Marx
optou pelo humanismo revolucionário em vez do dogmatismo teleológico. Onde
seria possível encontrar um espaço para a concretização deste humanismo
revolucionário?
Isto não é uma coisa que precisamos de inventar – existem
muitas pessoas por aí fora em conflito com o mundo em que vivem, que procuram
uma forma de existência não-alienada e esperam trazer de volta algum sentido à
própria vida. Penso que o problema está na incapacidade da esquerda histórica
em saber lidar com este movimento, que pode realmente modificar o mundo. No
momento, os movimentos religiosos (como o evangélico) têm-se apropriado desta
procura por sentido, o que pode implicar, politicamente, na transformação destes
movimentos em algo totalmente diferente. Penso, por exemplo, no ódio contra a
corrupção, no fascismo em ascensão na Europa e no radicalismo do Tea Party
norte-americano.
O livro encerra com uma discussão sobre
as três contradições perigosas (crescimento ilimitado, a questão ambiental e
alienação total) e diversos caminhos de mudança. Isto seria um tipo de programa
ou a revolta precisa basear-se numa espécie de coligação fluida de diferentes
formas de insatisfação?
A convergência entre diversas formas de oposição sempre terá
importância fundamental, conforme vimos em Istambul, com o parque Gezi, e no
Brasil. O ativismo político é de importância fundamental e, novamente, creio
que o problema esteja na incapacidade da esquerda em canalizá-lo. Há diversas
razões para isto, mas penso que o motivo principal seja o fracasso da esquerda
em abandonar a sua ênfase tradicional na produção em favor de uma política da
vida quotidiana. A meu ver, a política do quotidiano é o ponto crítico a partir
do qual podem desenvolver-se as energias revolucionárias, e onde já ocorrem
atividades orientadas para a definição de uma vida não-alienada. Tais
atividades estão antes relacionadas ao espaço de vida do que ao espaço de
trabalho. Syriza e Podemos oferecem-nos um primeiro vislumbre deste projeto
político – não são revolucionários puros, mas despertaram grande interesse.
O Syriza tem desempenhado um papel
trágico, no sentido clássico do termo. Está efetivamente a salvar o euro (que
tem sido instrumento de violência de classe) também para defender a ideia de
Europa, uma das bandeiras da esquerda nas últimas décadas. Considera que o
partido encontrará espaço político ou acabará por fracassar?
Neste caso, afirmar o que seria um sucesso ou fracasso não é
fácil. Em muitos aspectos, o Syriza irá fracassar a curto prazo. Mas acredito
que a longo prazo terá alcançado uma vitória por ter suscitado questões que não
poderiam ter sido ignoradas. No momento, a dúvida gira em torno da democracia e
o seu significado, quando você tem Angela Merkel a governar de modo
autocrático, a decidir a vida de todos os europeus. Chegará o momento em que a
opinião pública irá clamar pela queda dos governos autocráticos. Em último
caso, se Merkel e os líderes europeus não mudarem as suas posições e forçarem a
Grécia a sair da Europa (como provavelmente farão), as consequências serão bem
mais sérias do que hoje se imagina. Políticos normalmente cometem graves erros
de julgamento, e eu considero este um desses casos.
No livro prevê um novo ciclo de
revoltas. Porém, uma avaliação dos últimos anos terá que reconhecer que a
Primavera Árabe foi um desastre e que o Occupy não foi capaz de se transformar
numa força política eficaz. Considera que a resposta está num partido como o
Podemos, que tem sido capaz de dar expressão política aos protestos de 2011 na
Espanha?
O Syriza e o Podemos abriram um espaço político, pois algo
novo está a acontecer. E o que seria isto? Não sou capaz de responder.
Logicamente aqueles que pertencem à esquerda anticapitalista irão acusá-los de
“reformistas”. O que até pode ser verdade, mas também foram as primeiras forças
a promover determinadas políticas, e uma vez iniciado este novo caminho,
surgirão novas possibilidades. Romper de uma vez por todas com o mantra da
“austeridade” e esmagar o poder da troika [FMI, Banco Central Europeu e
Comissão Europeia, que impõem as políticas económicas nos países europeus em
crise] abriria, acredito, um espaço para novas perspectivas, que poderiam ser
desenvolvidas adiante. Na atual situação, penso que estes modelos de partidos
que vemos surgir na Europa, que começam a definir alternativas de esquerdas
atualmente em falta, são as melhores opções. Provavelmente serão populistas –
com todos os limites e perigos que o populismo implica –, mas como eu disse,
trata-se de um movimento: ele abre espaços, e o modo como utilizamos estes
espaços depende da nossa capacidade de perguntar, “Ok, agora chegamos até aqui,
o que devemos fazer agora?”.
Você acredita que o neoliberalismo foi
apenas um momento de mudança que será superado pela reorganização do capital
pós-crise? Ou acha que ele será reforçado com novo vigor?
Eu diria que o neoliberalismo nunca esteve tão forte quanto
agora: o que é a “austeridade” efetivamente, senão a transferência de recursos
das classes baixas e médias para as classes altas? Se olharmos as informações
sobre quem beneficiou com as intervenções estatais desde a crise de 2008,
veremos que foi o 1% da população, ou melhor, o 0,1%. É lógico que a resposta
para isto depende de como se define o neoliberalismo, e minha definição (um
projeto da classe capitalista) talvez seja algo distinta da de outros
estudiosos.
Quais foram as novas “regras do jogo”
instauradas no sistema capitalista após 1970?
Por exemplo, no caso de um conflito entre bem-estar coletivo
e resgate dos bancos, salva-se os bancos. Em 2008, estas regras foram aplicadas
de um modo bastante claro: salvaram os bancos. Porém, poderíamos facilmente ter
resolvido os problemas daqueles que foram despejados, atendendo a necessidade
da população por habitação, e só então ter dado atenção à crise financeira. A
mesma coisa ocorreu com a Grécia, a quem foi emprestado um bocado de dinheiro
que foi direto para os bancos franceses e alemães.
Por que, então, foi preciso que os
gregos atuassem como intermediários na transferência entre os governos e
bancos?
A estrutura em funcionamento permite que a Alemanha não
tenha que salvar diretamente os bancos alemães, ou a França os bancos
franceses: sem a Grécia no meio, teria ficado óbvio o que estavam a fazer. Ao
passo que, daquele outro modo, o fato de terem despejado todo este
montante de dinheiro faz parecer que a Grécia foi tratada com generosidade,
quando na verdade estes fundos foram diretamente para os bancos.
Você mencionou o 1%. Como marxista,
considera este dado apenas um slogan eficiente, vê nele algum valor analítico
ou acha que só ajuda a desviar a atenção do conceito da luta de classes?
Se aceitamos o materialismo histórico-geográfico, temos que
reconhecer que as contradições evoluem constantemente, e o mesmo deve acontecer
com as nossas categorias. Ao referir-se ao “1%”, portanto, o Occupy foi bem
sucedido ao introduzir este conceito no debate público. É evidente que a
riqueza deste 1% aumentou de forma maciça, como mostram Piketty e todos os
dados. Por outras palavras, falar sobre o 1% é reconhecer que criámos uma
oligarquia global, que não coincide com a classe capitalista, mas que está no
centro dela. É como uma palavra-chave que serve para descrever o que a
oligarquia global está a fazer, dizer e pensar.
Tradução de Evelyn Petersen.
Publicado em Outras Palavras