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(Millôr Fernandes)

sábado, 30 de maio de 2015

Uma Outra Constituição. Artigo de Adriano Pilatti

Sábado, 30 de maio de 2015
Há um verdadeiro sindicato do crime eleitoral em fase de reorganização para nos reconduzir a uma repaginada “República Velha” do cabresto financeiro-midiático e dos currais empresariais.
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Instituto Humanitas Unisinos
"Assistimos hoje, “bestializados”, a uma avassaladora ofensiva regressista que, em todos os planos, se dedica a subverter os conteúdos civilizatórios e até mesmo as promessas de justiça social e isonomia da Constituição-Cidadã. Não nos deixamos paralisar, antes, pela força das armas; não nos deixaremos paralisar agora pela avalanche de cambalachos, coações, negociatas, manipulações e tramoias das ratazanas que infestam a Praça dos Três Poderes, com o “auxílio luxuoso” das raposas que os financiam eleitoralmente e acobertam midiaticamente", escreve Adriano Pilatti, professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio, em artigo publicado no sítio Empório do Direito, 29-05-2015. 
Eis o artigo. 
“Con$tituição da República Corporativa do Brasil
Art. 1º. A República Corporativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos bancos, do agronegócio, das grandes empreiteiras, das franquias neopentecostais e da imprensa comercial, constitui-se em Estado Plutocrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a hipocrisia;
II – a oligarquia;
III – a venalidade da pessoa humana;
IV – os valores antissociais da privatização do público e da exploração do trabalho;
V – o mercantilismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do Capital, que o exerce por meio de representantes comprados ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

A prosperarem, de um lado, o golpe contra a Constituição consumado ontem pela Presidência e pela maioria da Câmara dos Deputados, e, de outro, as “negociações” que, segundo alguns jornalistas, estariam em curso entre Câmara e STF para eternizar a privatização da representação política, é melhor dar logo ao art. 1º da então ex-Cidadã a redação acima. A inacreditável votação realizada na calada da noite contraria várias regras expressas da Constituição, além de subverte-la e anulá-la em vários de seus princípios fundamentais.
Ao submeter a votos a emenda-fantasma da constitucionalização do financiamento empresarial, após a rejeição de outra com conteúdo praticamente idêntico na noite anterior, o presidente violou o § 5º do art. 60, segundo o qual “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Por sessão legislativa, entende-se o período anual de funcionamento do Congresso que, nos termos do art. 57, inicia-se em 2 de fevereiro e se encerra em 22 de dezembro, com interrupção entre 17 e 31 julho. Além disso, segundo denúncias revestidas de credibilidade, a proposta de emenda não teria reunido o número mínimo de assinaturas correspondentes a um terço dos deputados, o que viola também o inciso I do art. 60.
Houve, assim, duplo e frontal descumprimento do “devido processo legislativo” estabelecido no art. 60, resultante de ilegalidade e abuso de poder perpetrados pela Presidência e pela maioria da Casa. E isto legitima parlamentares a impetrarem, como parece que já se fez, mandado de segurança perante o STF contra o ato da presidência e a votação decorrente, para assegurarem seu direito líquido e certo de somente deliberarem segundo o devido processo legal, no caso o devido processo legislativo constitucional (CF, art. 5º, inciso LXIX, combinado com os incisos XXXV e LIV do mesmo artigo, com o próprio art. 60 e a alínea “d” do inciso I do art. 102).
Entre o edifício do Congresso Nacional e o do Supremo Tribunal Federal joga-se hoje o destino da Constituição de 1988. Não se trata de questão meramente formal, mas de subversão, pela raiz, a partir de seus fundamentos, do regime político estabelecido pela ordem constitucional vigente. Trata-se de verdadeira usurpação da soberania popular pelo poder econômico. Trata-se de conspiração para entregar todo o poder à capacidade de corrupção dos senhores do dinheiro.
Onde estão, neste momento, a falsa indignação e o moralismo de bordel da impren$a e dos bonecos de ventríloquo que lhe servem de colunistas? Onde estão os desequilibrados e apopléticos “formadores de opinião”, que não denunciam a instalação de uma mega-incubadora de corruptores e corruptos no coração da Constituição que sempre desprezaram? O silêncio eloquente desses funcionários midiáticos do Capital tem a força de uma confissão. Todo o poder aos patrões, esse é o desejo mais mórbido que os excita.
Pertenço a uma geração que exercitou incessantemente o direito de resistência até conseguirmos o restabelecimento das liberdades democráticas e das eleições diretas, a convocação da Constituinte, a definição de um texto progressista que servisse às lutas por direitos, até conquistarmos a promulgação da Constituição Cidadã. De lá para cá, não cessamos de lutar pela eficácia social, pela afirmação da força normativa do sistema de direitos e de limitações aos poderes políticos, econômicos e ideológicos que ela consagra. Assistimos hoje, “bestializados”, a uma avassaladora ofensiva regressista que, em todos os planos, se dedica a subverter os conteúdos civilizatórios e até mesmo as promessas de justiça social e isonomia da Constituição-Cidadã. Não nos deixamos paralisar, antes, pela força das armas; não nos deixaremos paralisar agora pela avalanche de cambalachos, coações, negociatas, manipulações e tramoias das ratazanas que infestam a Praça dos Três Poderes, com o “auxílio luxuoso” das raposas que os financiam eleitoralmente e acobertam midiaticamente.
O grau de desfaçatez que, em todos os níveis, os gigolôs da representação hoje exercitam contra a integridade das instituições que ocupam, por meio de violentas invasões (e evasões) financeiras, pode vir a nos conduzir, mais cedo do que se pensa, a um ponto de ruptura, a um “que se vayan todos” – aí incluídos todos os serviçais engravatados, togados e fardados do Capital que só faz predar terras, águas, cidades e gentes em nosso desafortunado País.
A gravidade do que está em curso reaviva a pertinência das palavras que a Declaração de Thomas Jefferson incorporou ao patrimônio político-cultural de nossa contraditória espécie: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.
Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo fim, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos guardiões para sua futura segurança.”
A Câmara não é Westeros, mas já tem o seu “rei louco”, e “o inverno está chegando”. Mas ele não agiu sozinho ontem: a acompanha-lo na trilha da infâmia, somaram-se 330 representantes, ou candidatos a representantes, do Capital (10% a mais, piada pronta, do que os 300 antes denunciados e depois em parte aliciados por Lula, e hoje praticamente perdidos por Dilma). Há um verdadeiro sindicato do crime eleitoral em fase de reorganização para nos reconduzir a uma repaginada “República Velha” do cabresto financeiro-midiático e dos currais empresariais. Sin City também é aqui. A alternativa é resistir, seguir lutando. Não perdemos a receita.

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