Do Blog do Vlad
Por Vladimir Aras
O Supremo Tribunal Federal decidiu que o Ministério Público pode investigar.
Eureka! Finalmente.
A decisão da Suprema Corte foi proferida no Recurso Extraordinário 593.727/MG e resulta de uma adequada interpretação da Constituição e da lógica de qualquer sistema acusatório.
Promotores de Justiça e procuradores da República podem investigar? Sim. Agora se pergunta sobre o “como“.
A Resolução 13/2006 do CNMP estabelece um modelo desde 2006. Ali regulou-se o Procedimento Investigatório Criminal (PIC).
O STF fixou outras diretrizes nesse julgamento de maio de 2015, que tem repercussão geral. Transcrevo a proposta do ministro Celso de Mello:
“O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado e qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso país, os advogados (lei 8906/94, artigo 7º, incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.”
O STF reconheceu o óbvio.
A Lei Complementar 75/1993, a Lei 8.625/1993, a Lei 8.069/1990, a Lei
9.613/1998 e a Lei 12.850/2013, entre outros diplomas, estabelecem
algumas ferramentas de investigação, com regramento sobre forma de
inquirições, espécies e prazos de requisições e sobre o manejo de
acordos de colaboração premiada.
A Súmula Vinculante 14
e o Estatuto da OAB também trazem orientações seguras sobre o modo de
proceder do Ministério Público numa investigação criminal, notadamente
no relacionamento com a defesa.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (especialmente os artigos 7º e 8º) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
(em maior grau o artigo 14) contêm outras garantias que devem ser
observadas pelo Ministério Público e pela Polícia em qualquer apuração
penal.
À luz do direito internacional, o papel de promotores e procuradores na investigação criminal é trivial e usual. Basta ver as Regras de Havana, conhecidas como “Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Ministério Público“, aprovadas pela Nações Unidas, na capital cubana, em 1990. Destaco a Regra 11:
11. Os magistrados do Ministério Público desempenham um papel ativo no processo penal, nomeadamente na decisão de determinar a investigação criminal, e quando a lei ou prática nacionais o autorizam, participam na investigação criminal, supervisionam a legalidade da investigação criminal, supervisionam a execução das decisões dos tribunais e exercem outras funções enquanto representantes do interesse público.
Assim, embora não tenhamos “uma”
lei de investigação criminal pelo Ministério Público, o ordenamento
jurídico brasileiro regula vários de seus instrumentos, formas e
garantias, que devem ser observadas pelo Estado.
A discussão sobre os limites dessa investigação pelo Ministério Público tem um atraso de pelo menos 40 anos, porque o Parquet
investiga crimes há muito tempo no Brasil. Cito um caso: Esquadrão da
Morte, anos 1970, São Paulo, promotor Hélio Bicudo. A novidade agora é a
chancela do STF. Promotores de Justiça e procuradores da República
podem conduzir apurações criminais.
Quanto mais órgãos investigarem tanto melhor
para a sociedade. Todo monopólio é deletério. Receita Federal, Ibama,
Banco Central, agências reguladoras, Comissão de Valores Mobiliários,
Controladoria-Geral da União, Tribunais de Contas…
A Polícia pode dar conta de tudo sozinha? Ninguém pode.
Fim de papo e início de outro.
O Congresso Nacional devia fazer sua parte e legislar. Precisamos de uma nova lei de investigação criminal, uma que dê fim ao inquérito policial e que regule os vários tipos de investigação pelos distintos órgãos do Estado, inclusive o Parquet.
O inquérito policial é herança do Império, resquício inquisitorial de
mais de 140 anos. Foi criado pela Lei 2.033 e regulamentado pelo Decreto
4.824/1871 e não é mais capaz de servir de veículo para a elucidação de
crimes da era da sociedade da informação.
As
(supostas) dúvidas de alguns sobre a valia e a forma da investigação
criminal a cargo do Ministério Público surgem com atraso de mais de 70
anos, que é a idade de nosso Código de Processo Penal. Isto porque essas
dúvidas de hoje sobre as apurações conduzidas pelo MP existem todas
elas e ainda em maior grau em relação à investigação realizada pela
Polícia, cujo marco legal – o CPP de 1941 – está caduco e roto e é
incompatível com a Constituição de 1988 e o modelo acusatório, que
ordena a separação (atenção!) entre as funções de acusar e julgar. A função de investigar está embutida na de acusar. É assim em toda a parte. Não se queira inventar nada aí.
Vale invocar novamente as Regras de Havana:
10. As funções dos magistrados do Ministério Público estão estritamente separadas das funções de juiz.
O inquérito policial faliu. Cartorial, burocrático, cheio de salamaleques e precatórias (!); repleto de juridiquês e carente de verdadeira ciência policial. Um ajuntamento de papeis. Resultados? Pífios. Índices de solução na casa de um dígito, para crimes graves.
Culpa de quem? De ninguém. A culpa é da lei, que ficou parada no tempo.
O ideal seria termos investigação de ciclo completo
pela Polícia (termos várias polícias), com agentes com formação
multidisciplinar, com carreiras de chefia não privativas de bacharéis em
Direito (para quê?) e articulação constante com o Ministério Público,
como coordenador da investigação, sob controle de juiz de garantias.
Investigação
pela defesa, por seus próprios meios, também é essencial, a fim de que
provas exculpatórias sejam de logo conhecidas, abreviando-se a apuração
ou evitando-se a abertura de ações penais temerárias. Tentou-se regular a
investigação criminal defensiva no projeto de novo CPP
(PLS 156/2009), que foi aprovado no Senado em 2010, mas que agora
aguarda seu destino na Câmara dos Deputados. A redação proposta para o
artigo 13 é a seguinte:
Art. 13. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.
§ 1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento formal das pessoas ouvidas.
§ 2º A vítima não poderá ser interpelada para os fins de investigação defensiva, salvo se houver autorização do juiz das garantias, sempre resguardado o seu consentimento. § 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o juiz das garantias poderá, se for o caso, fixar condições para a realização da entrevista. § 4º Os pedidos de entrevista deverão ser feitos com discrição e reserva necessárias, em dias úteis e com observância do horário comercial. § 5º O material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial. § 6º As pessoas mencionadas no caput deste artigo responderão civil, criminal e disciplinarmente pelos excessos cometidos.
O equilíbrio é necessário, em prol da realização da Justiça. Aliás, neste aspecto, vale lembrar que o Ministério Público tem o dever
de colher, registrar e revelar provas que isentem o réu ou que lhe
sejam de qualquer maneira benéficas. Embora alguns membros da
instituição o esqueçam, tal diretriz decorre dos artigos 127 e 129,
inciso II, da Constituição e está claramente enunciada nas Regras de Havana. No particular, são pertinentes as Regras 13, 14 e 16, que impõem o dever de investigação isenta e o dever de recusar a utilização de provas obtidas por meios ilícitos:
13. No exercício das suas funções os magistrados do Ministério Público:
b) Protegem o interesse público, agindo com objetividade, tomam devidamente em consideração a posição do suspeito e da vítima e têm em conta todas as circunstâncias pertinentes, quer sejam favoráveis ou desfavoráveis ao suspeito;
14. Os magistrados do Ministério Público não encetam nem continuam investigações criminais ou fazem o possível para as suspender se um inquérito imparcial revelar que a acusação não é fundada.16. Quando os magistrados do Ministério Público recebem contra os suspeitos provas que eles sabem ou têm motivos razoáveis para suspeitar que foram obtidas por métodos ilícitos, que constituem uma grave violação dos direitos da pessoa humana e que implicam em particular a tortura ou um tratamento ou castigos cruéis, desumanos ou degradantes, ou que tenham implicado outras violações graves dos direitos do homem, recusam utilizar essas provas contra qualquer pessoa que não seja aquela que recorreu a esses métodos, ou informam o tribunal em consequência, e tomam todas as medidas necessárias para que seja feita justiça.
Toda intervenção do Estado sobre o indivíduo deve estar sujeita a supervisão. Para evitar abusos, além da checagem judicial, não se pode deixar de impor rigoroso controle externo
da Polícia pelo Ministério Público (art. 129, VII, CF), cabendo, por
sua vez, ao CNMP exercer o controle da atividade de promotores e
procuradores (art. 130-A, CF).
Só assim
teremos um quadro mais favorável no cenário caótico que se vê
atualmente, com cifras assustadoras em vários campos da criminalidade
comum e da delinquência organizada.
Essas
propostas e diretrizes são adotadas no primeiro mundo, onde não existe
esse debate sobre se o Ministério Público pode ou não investigar: este é
sempre o seu mais óbvio papel.