De Carta Capital
por
Vladimir
Safatle
Foto José Cruz/ Agência Brasil
Se
fosse o caso de fornecer uma analogia histórica para a situação atual do
Brasil, talvez o melhor a fazer seria voltar os olhos para a Argentina dos anos
1970. De certa forma, não há nada mais parecido com o atual governo Dilma do
que a Argentina de Isabelita Perón. Dilma transformou-se em uma Isabelita Perón
do Cerrado.
Uma presidenta refém de seus operadores políticos, impotente
diante da dissolução do acordo peronista entre setores da esquerda e setores
conservadores em torno da figura de seu finado marido, Juan Domingo Perón,
Isabelita foi a figura mais bem-acabada do esgotamento do ciclo de acordos,
avanços e paralisias que marcou o peronismo. Ao se deixar guiar pelos setores
mais conservadores do peronismo, Isabelita parecia uma morta-viva, a encarnação
de um tempo que já acabara, mas ninguém sabia como terminar.
Agora, imaginem que estamos na
Argentina dos anos 1970 e Perón não morreu. Como um fantasma, ele volta para
tentar organizar a oposição contra o governo que ele mesmo elegeu, federando as
vozes dos descontentes com o governo criado por ele mesmo e para o qual indicou
vários ministros. Não, algo dessa natureza não poderia acontecer na Argentina.
Algo assim só pode ocorrer no Brasil. Pois não é isso o que estamos vendo com
um Lula reconvertido a arauto da “frente de esquerda” juntamente com o resto do
que ainda tem capacidade de formulação no PT? O mesmo PT que, em um dia, vai à
televisão para afirmar seu compromisso com a defesa dos direitos trabalhistas
para, no dia seguinte (vejam, literalmente no dia seguinte) votar em peso a
favor de um pacote de medidas que visam “ajustar” a economia não exatamente
taxando lucros bancários exorbitantes, mas diminuindo os mesmos direitos
trabalhistas que defendera 24 horas antes.
Nesse contexto, o que pode ser uma frente de esquerda a não
ser a última capitulação da esquerda brasileira à sua própria impotência? Ou,
antes, o reconhecimento tácito de que a esquerda brasileira só pode oferecer o
espetáculo deprimente de discursos esquizofrênicos divididos entre o reino das
boas intenções e a dureza das decisões no “mundo real”? Acreditar que aqueles
que nos levaram ao impasse serão os mesmos capazes de nos tirar de tal situação
é simplesmente demonstrar como a esquerda brasileira vive de fixações em um passado
que nunca se realizou, que nunca foi efetivamente presente. É mostrar ao País
que a esquerda não tem mais nada a oferecer de realmente novo e diferente do
que vimos.
Se
a esquerda quiser ter alguma razão de existência (pois é disso que se trata),
ela deve começar por fazer uma rejeição clara do modelo que foi aplicado no
Brasil na última década, seja no campo político, seja no campo econômico. O
modelo lulista não chegou a seu esgotamento por questões exteriores, pressão da
mídia ou inabilidades de negociação da senhora Dilma. Ele se esgotou por suas
contradições internas e quem o criou não é capaz de criar nada de distinto do
que foi feito.
Insistiria ainda em como é falsa a
ideia de que a esquerda brasileira está de joelhos sem saber o que fazer. Há anos,
vários setores progressistas têm alertado para o impasse que agora vivemos. Há
anos, várias pautas foram colocadas em circulação, entre elas a revolução
tributária que taxe a renda e libere a taxação sobre o consumo, a democracia
direta com poder de deliberação, veto e gestão, o combate à especulação
imobiliária através de leis que limitem a propriedade de imóveis, a reforma
agrária, a diminuição da jornada de trabalho, a autogestão de fábricas e locais
de trabalho, o salário máximo, o casamento igualitário, as leis radicais de
defesa da ecologia, o fim da política de encarceramento sistemático, a
exposição da vida financeira de todos os que ocupam cargos de primeiro e
segundo escalão, a punição exemplar da corrupção, o fim do monopólio da
representação política para partidos. Não é a falta de direção que acomete a
esquerda brasileira. É a falta de coragem, o que é muito mais grave.