Sábado, 12 de outubro de 2013
Discursando na abertura da Feira do Livro de Frankfurt, na qual o Brasil
é homenageado, o escritor Luiz Ruffato falou o que a esquerda
deveria estar falando o tempo todo e o que o PT há muito
deixou de falar, pois desde 2002 prefere as enganações
dos marqueteiros à realidade dramática das ruas.
É uma peça exemplar, antológica, que reproduzo quase na íntegra,
É uma peça exemplar, antológica, que reproduzo quase na íntegra,
poupando os leitores de algumas passagens que, até por serem
dispensáveis, tirariam o impacto do principal: o raio-X
de um país profundamente injusto e desumano.
Que só deixará de sê-lo por meio de uma transformação
revolucionária, não pelas ínfimas concessões que os
reformistas fazem às massas para mantê-las
subjugadas, elegendo e reelegendo os
que gerenciam o capitalismo ao invés
de o confrontarem.
Leiam, reflitam, divulguem:
"...a
história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na
negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que
existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em
condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo
em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da
tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito
corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos
autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um
fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento
de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a
assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos
colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram
aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi
abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de
possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos
depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base
da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas,
advogados, engenheiros, executivos, jornalistas, artistas plásticos,
cineastas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas
primárias da cidadania – moradia, transporte, lazer, educação e saúde de
qualidade –, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável
na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza
encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas
possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos
apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de
não-pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só
funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a
intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não
tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com
relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos
o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – o
semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100
mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número
três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à
violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de
condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada
e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros
de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior
número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última
década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos
mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes.
E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e
adolescentes, esses números são sempre subestimados.
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual
revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais
importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões
de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que
concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população
carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada
primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com
baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos
mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os
últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo:
cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados
como analfabetos funcionais – ou seja, um em cada três brasileiros
adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.
...continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e
no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes,
ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
...apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500
anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação,
saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de
alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer
hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança
pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário
mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em
dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o
respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a
burlar as leis.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas,
florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar
execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil,
desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado
como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de
protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e
indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e
consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de
matéria-prima e produtos fabricados com mão-de-obra barata, por falta de
competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais dentre todos".
Fonte: Blog Náufrago da Utopia