Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 2 de novembro de 2014

Proibir as balas de borracha é só o começo. A civilização requer bem mais

Domingo, 2 de outubro de 2014
Do Blog Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti


Algumas vítimas da truculência dos agentes da ordem: o fotógrafo Alex Silveira...

No Brasil de hoje é assim: conseguem-se, quanto muito, ínfimos avanços no rumo da civilização --e isto mediante esforços hercúleos! 


Finalmente um juíz honrou sua toga e proibiu a utilização das famigeradas balas de borracha contra os manifestantes que confrontam os podres poderes nas ruas.

É pouco, muito pouco, quase nada. Afinal, o que deveria ser colocado em xeque, antes de mais nada, é a própria existência da PM, pois o policiamento militarizado não passa de mais um grotesco resquício ditatorial (vide aqui). Deveria ter sido extinto logo em 1985, junto com outros entulhos autoritários.
...a jornalista Giuliana Vallone...

Então, só me resta apoiar (como o faço ao reproduzir o artigo abaixo) quem luta por este tantinho de respeito aos direitos humanos, na esperança de que a sociedade, começando a impor limites à barbárie fardada, siga tal caminho até bem mais longe --passando, p. ex., a coibir verdadeiramente as torturas e abusos de poder, encarcerar os agentes que executam contraventores a sangue frio e depois montam cenários de resistência à prisão, etc. 


Até cair a ficha de que métodos e práticas característicos de exércitos só devem ser aplicados contra inimigos externos, não contra nosso próprio povo.

PELO FIM DOS OLHOS DE VIDRO

Rafael Custódio (*) e Rafael Lessa (**), na Folha de S. Paulo 

...e a estudante Dayane de Oliveira.



A liberdade de expressão e o direito de reunião são alguns dos pilares de uma sociedade democrática. Em um país em desenvolvimento como o Brasil, onde movimentos reivindicatórios são muitos e constantes, essas garantias adquirem contorno ainda mais fundamental.


O exercício desses direitos deve ser garantido pelo Estado. Há muito, porém, assistimos a cenas que explicitam que as forças policiais não lidam adequadamente com o direito de manifestação e com eventuais episódios de violência que sejam praticadas em tais contextos.

Durante os protestos de 2013, as cenas de violência desproporcional contra multidões, a pretexto de reprimir atos ilícitos de algumas pessoas, correram o mundo e geraram enorme preocupação sobre o que ocorreria quando da realização de grandes eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

Diante das inúmeras violações --constatadas em vídeos, fotos e testemunhos-- o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a ONG Conectas Direitos Humanos apresentaram formalmente ao governo de São Paulo um documento com recomendações que tratavam do tema do uso da força em manifestações.

As propostas, calcadas em normas nacionais e internacionais sobre uso da força, foram ignoradas.


Diante disso, as entidades elaboraram, respectivamente, uma Ação Civil Pública e um amicus curiae (parecer técnico) e levaram o caso para a apreciação do Poder Judiciário, demandando, entre outras medidas, que o governo criasse uma política que discipline com rigor o uso da força policial em manifestações.

Em decisão alinhada à garantia da liberdade de expressão e do direito de reunião, o juiz Valentino Aparecido de Andrade concedeu em parte o pedido liminar e determinou a elaboração de plano de atuação que exclua o uso de balas de borracha pela polícia em manifestações.

A essência de tal entendimento está no fato de que arma de fogo, ainda que com 'bala de borracha', não deve ser usada contra multidões ou contra pessoas desarmadas, como tantas vezes já se assistiu em nosso contexto democrático.

Há 14 anos, o repórter-fotográfico Alex Silveira, que cobria uma manifestação de professores, foi atingido por uma bala de borracha no olho e perdeu 80% de sua visão. Recentemente, ele teve seu pleito de indenização rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Estado. No entendimento deste, a culpa de ter perdido a visão teria sido do próprio fotógrafo, já que se colocara na situação de risco.



Fatos como esse apenas evidenciam que casos de uso desproporcional da 'bala de borracha', em regra, não são devidamente apurados e reparados pelo Estado. Em 2013, a jornalista Giuliana Vallone, da Folha, foi atingida por uma bala de borracha em seu olho esquerdo ao cobrir uma das manifestações.

O mesmo ocorreu com Sergio Silva, fotógrafo que cobria protestos em 2013 e que perdeu o olho esquerdo. Também no mesmo ano, Dayane [de Oliveira], de 17 anos, que passava próximo a uma festa na comunidade de Paraisópolis, foi atingida por uma bala de borracha em razão de operação policial que buscava dispersar a aglomeração de pessoas.

O uso de armas de fogo menos letais por parte das forças de segurança tem sido desproporcional, abusivo e violador dos direitos de reunião e manifestação. O mínimo esperado é que, se o cidadão decidir se expressar nas ruas, não volte para casa com um olho de vidro.

* Rafael Custódio é coordenador do Programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos. ** Rafael Lessa integra o Núcleo de Cidadania e DH da Defensoria Pública do Estado de SP.