Sábado, 23 de janeiro de 2016
Não importa por onde comecemos a falar sobre as manifestações contra
os aumentos da tarifa do transporte público de São Paulo; elas trazem
características que provavelmente estarão presentes em todas as lutas
sociais travadas nas ruas neste ano de 2016. E por isso é essencial
entender o que está acontecendo, despindo-se de ideias pré-concebidas
sobre os atores em questão. Podemos começar falando sobre a cobertura da
imprensa, ou sobre a violência policial. Sobre a forma como se organiza
o movimento, ou sobre a tática black bloc. Ou até mesmo sobre a
ausência de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade.
Todos são ingredientes já conhecidos, no senso comum, há pelo menos três
anos.
O que temos de novo é o aprimoramento da repressão. O chacoalho que
2013 causou nas autoridades levou a uma escalada repressiva jamais
vista. Um 2014 de Copa do Mundo e um 2015 de crise e ajuste fiscal
também serviram para as aulas práticas dos agentes da “ordem”. E por
falar em ajuste fiscal e crise econômica, o Movimento Passe Livre –
responsável por convocar os atos – fez um levantamento de gastos em suas
páginas da internet, no qual chegou à conclusão de que a crise existe
em diversos setores, menos nos recursos da repressão.
Recentemente, foram comprados 6 blindados israelenses Plasan Sasa
pela PM paulista. Segundo informações deste levantamento – feito a
partir de dados divulgados por Metrô, SPtrans e imprensa – os veículos
custaram 30 milhões de reais. Com essa verba seria possível comprar 100
ônibus, 272 ambulâncias, ou até mesmo financiar a tarifa zero por cerca
de três dias para os 4,6 milhões de passageiros diários do metrô de São
Paulo.
O aumento entraria em vigor no sábado, dia 9 de janeiro. Vamos aos fatos.
Primeiro ato: o caos
Na sexta-feira, 8 de janeiro, o primeiro ato se concentrou no Theatro
Municipal, a partir das 17h. Cerca de 6 mil pessoas saíram de lá às
seis e meia e marcharam em círculos, contornando o próprio Theatro
Municipal e o Largo do Payssandu antes de ganharem o Vale do Anhangabaú.
Enquanto passavam pelo Vale, a Tropa de Choque se posicionava na
lateral do Terminal Bandeira, onde se encontram as avenidas 9 de Julho e
23 de Maio.
A multidão cruzou o Viaduto do Chá por baixo e buscou o acesso à
avenida 23 de Maio. A tática do Movimento Passe Livre é exatamente essa.
Trancar as ruas para chamar atenção à pauta. Concorde-se ou não, é
desonesto afirmar que a ação policial foi decorrente da depredação de
qualquer forma de patrimônio. O que se viu foi uma tropa de choque da
polícia militar instruída a impedir a qualquer custo que a multidão
trancasse a avenida 23 de Maio. E começou a chuva de bombas e balas de
borracha, às 19h em ponto.
Uma parte da multidão subiu em direção à rua Augusta, outra parte
voltou na direção do Theatro, e assim toda a manifestação foi se
dissipando pelo centro de São Paulo. Estava aberta a temporada de caça.
Policiais rondavam ostensivamente as ruas em busca de manifestantes.
Nesse momento, e não antes como insistem os grandes meios, alguns
manifestantes – e nem todos mascarados – quebraram vidraças de bancos e
tentaram fazer barricadas no trajeto entre a entrada do Terminal
Bandeira e a rua Martins Fontes.
Podemos entender a atitude de diversas formas. O que esta reportagem
viu foi uma reação – ainda que impensada – à repressão. Os jovens veem
nos bancos um símbolo de opressão. Talvez a ação tomada no calor do
momento seja questionável, mas a análise não. Basta uma breve pesquisada
a respeito dos inigualáveis lucros de Itaú, Bradesco e Santander em
plena crise econômica e ano de ajuste fiscal. E o recente veto da
presidenta Dilma em incluir a Auditoria da Dívida Pública nos próximos
planos de governo só joga água no mesmo moinho.
muito a ver com isso, e que nos perdoe a presidenta, mas que pênalti
perdido foi esse? Já funcionou no Equador, por exemplo, nosso vizinho.
Relatos de agressões, abusos de autoridade e práticas questionáveis
por parte da repressão começaram a pipocar nas redes sociais. Um deles,
esta reportagem teve o desprazer de presenciar. A prisão dos quatro
garotos, filmada também pelos Jornalistas Livres, na qual uma
série de flagrantes foi forjada para justificar a ação. Os garotos foram
conduzidos à base policial localizada na praça Roosevelt sob aplausos
de um casal que frequentava a praça. Skatistas solidários aos garotos
fizeram coro contrário, em repúdio os aplausos.
Na segunda-feira seguinte, o MPL fez o chamado “trancamento de ruas”.
Trancou a Faria Lima, na altura do Largo Batata como uma prévia da
manifestação do dia seguinte. Também recebemos informações de
trancamentos na Lapa. Na segunda-feira, 18 de janeiro, véspera do quarto
ato, destacou-se o trancamento do terminal Parque Dom Pedro, o maior
terminal de ônibus urbano da América Latina.
Segundo ato: a barbárie
O segundo ato contra o aumento das tarifas não começou às 17h, na
Praça do Ciclista, como previa sua concentração. Diversas questões
anteciparam as tensões. Um vídeo “viralizado” na internet que mostrava
um policial infiltrado agredindo uma manifestante e logo sendo agredido
por outros manifestantes; um enorme conflito entre poder público e
movimento social a respeito do trajeto; e, para variar, a
irresponsabilidade dos grandes meios de comunicação na cobertura dos
fatos.
O vídeo citado gerou revolta em setores mais conservadores da
sociedade, uma vez que foi lançado em página característica. Foram
feitas prisões na casa dos manifestantes que foram filmados, em ações
que fugiram do padrão exigido pelos códigos de justiça brasileiros. A
não presença de oficiais de justiça com mandado de prisão ou algo do
gênero pode vir a caracterizar uma ação ilegal por parte dos policiais
envolvidos. Por outro lado, a grande imprensa não ficou atrás. Manchetes
de jornais impressos chamando os manifestantes de “mimados”,
“vândalos”, entre outros jargões, fez lembrar a mesma mídia de antes do
grande massacre de 13 de junho de 2013, no qual muitos profissionais da
imprensa foram atacados em nome de uma suposta “retomada” da Paulista,
bradada no editorial de um desses famosos jornais.
Outra questão levantada pela imprensa corporativa foi a de questionar
a pauta de modo superficial. “Mas como se revoltam por uma aumento de
30 centavos e não dizem nada sobre os bilhões roubados?” Sejamos francos
e menos canalhas. É tão óbvio quanto coerente que quem se revolta com o
aumento do transporte público também está revoltado com a situação de
crise e corrupção como um todo. Além disso, o MPL já deixou bem claro
que não tem a proposta de dirigir um movimento mais amplo, mas, sim,
pautar a questão do transporte público dentro das movimentações sociais e
populares, por ser uma pauta com a qual eles já possuem acúmulo de mais
de dez anos de estudos e atuação.
Mais uma questão que abalou as relações entre a multidão e o Estado
foi a respeito do trajeto a ser percorrido pelo ato. Os manifestantes
haviam definido em reunião prévia que iriam para o Largo da Batata, em
Pinheiros. A polícia militar fazia questão de que descessem para o
centro da cidade e terminassem na praça da República. A distância para
ambos lugares é praticamente a mesma a partir da Praça do Ciclista;
acontece que além da decisão prévia sobre o destino do ato, a polícia
havia preparado uma recepção, digna de autocracia, para os manifestantes
ao longo da descida da Consolação e na chegada ao centro da cidade. O
clima esquentava.
A multidão se recusou, em jogral, a seguir o trajeto determinado pela
PM, que por sua vez decidiu que por isso a manifestação não poderia
acontecer. Por volta das 18h30, a multidão se dirigia para a Avenida
Rebouças e era barrada pela PM. Havia bloqueios feitos pelas tropas de
Choque e do Braço na Consolação, no acesso da Paulista à Rebouças e na
própria Paulista pouco antes da esquina com a Haddock Lobo. Em outras
palavras, os pouco mais de 4 mil manifestantes estavam encurralados.
Na esquina da Paulista com a Consolação, próximo do acesso à Doutor
Arnaldo, diversos jornalistas estiveram isolados da multidão pelo cordão
policial e eram impedidos de trabalhar do outro lado. Isso antes e
também logo depois das 19h, quando novamente começaram as bombas. Assim
como na sexta-feira anterior, a repressão foi brava, mas nesse dia
podemos dizer que foi um massacre. “Foi pior do que 2013”, afirmou o
fotógrafo Sérgio Silva no calor do momento, ele que sentiu na pele (e no
olho) a repressão de três anos atrás.
O saldo final foi incalculável. Esta reportagem acabou envelopada na
rua Sergipe junto com grupos de manifestantes que tentavam dispersar.
“Todo mundo aqui cala a boca e senta em cima da mão que eu estou
mandando”, afirmou o policial do Choque, sem identificação. Muitos
jovens secundaristas estavam ali, e nitidamente desesperados. Em um
breve espaço de tempo, consegui sacar o cartucho de memória da câmera,
substituí-lo por um vazio, e esconder o que continha as fotos do dia –
não são raros os relatos de material jornalístico apagado ou apreendido
em situações como essa.
Dois estudantes secundaristas tentaram argumentar e pediram calma aos
policiais, que responderam com uma prisão por desacato e um
espancamento em cada um. Um colega deles afirmou que eram estudantes do
Fernão Dias, segunda escola a ser ocupada no ano passado. O nível de
violência na ação e na postura dos policiais chamou a atenção de um
professor da FAU que também acabou envelopado: “vou escrever um
pós-doutorado sobre essa linguagem violenta com um relato disto que
acabou de acontecer”, declarou. Vale lembrar que o envelopamento, ou
“caldeirão de Hamburgo”, é uma tática proibida e já gerou polêmicas a
seu respeito em fevereiro de 2014, durante manifestação crítica à
realização da Copa do Mundo da FIFA que aconteceria dali a poucos meses.
Após o envelopamento, o jovem Peterson Marques procurou a reportagem
do Correio da Cidadania. Ele havia perdido os dentes da frente por causa
da agressão policial. “Eu fui ajudar as meninas que estavam apanhando e
comecei a apanhar também, na cara. Só percebi que tinha perdido os
dentes quando fui cuspir”, contou. Ele foi para a Santa Casa, onde
recebeu atendimento. No fechamento desta matéria, a última informação
que temos é de que conseguiu um dentista que se ofereceu para fazer
tratamento de canal e recolocar os dentes perdidos.
Além de Peterson, o pintor Douglas Ferreira, de 24 anos, foi atingido
no olho esquerdo por uma bala de borracha e correu risco de perder a
visão. Apuramos que já não corre esse risco. Além dele, houve centenas
de relatos de feridos dos quais o jornalista Alceu Castilho tomou nota e
cujo link está disponível ao final desta reportagem.
A libertação dos três presos, o repúdio à ação da PM e o direito à
livre manifestação se juntaram ao aumento da tarifa e deram o tom do ato
que se realizou dois dias depois. Em contrapartida, governo do estado e
prefeitura tentaram uma anticonstitucional liminar que impedisse
manifestações – especialmente as do MPL, visto que em outras
manifestações o tratamento é “diferenciado” – de serem realizadas sem
uma aprovação prévia do comando da polícia militar em relação ao trajeto
que percorrerá. É o poder público dando cada dia mais mostras da sua
incrível capacidade de diálogo.
Terceiro ato: paz com armas, vozes cansadas
“Por favor, não jogue bomba”, dizia a camiseta de um manifestante,
ainda na concentração no Theatro Municipal, e de certa forma expressava o
clima de tensão que manifestantes, imprensa e transeuntes sentiam em
relação à ação policial. Desde as 14h, três antes do início da
concentração, a polícia já tomava toda a região do Vale do Anhangabaú e
arredores da Praça Ramos – onde fica o Theatro Municipal, local de uma
das concentrações do ato deste dia. Acompanhamos esta manifestação, que
foi até o vão do MASP, passando pela avenida Brigadeiro Luis Antônio. A
outra concentração foi no Largo da Batata, às 17h em Pinheiros.
Ainda no Theatro, o jogral de início do ato comemorou a soltura de
três manifestantes presos nos atos anteriores, mas lembrou que ainda
restavam dois. Havia uma presença mais intensa da mídia. O ato partiu no
sentido da Secretária Estadual de Segurança Pública, poucas quadras de
distância dali. Chegando lá, encontramos uma secretaria altamente
guardada pela PM. Foi feito um jogral criticando a política de segurança
e pedindo a desmilitarização da polícia e o respeito aos direitos de se
manifestar. O ato seguiu sentido Brigadeiro Luis Antônio, por onde
subiria até virar à direita na Paulista e encerrar em frente ao MASP,
onde foi feito outro jogral.
Não houve muitos incidentes durante o trajeto, a não ser uma bomba
que estourou fora do espaço da manifestação ainda no início da subida da
Brigadeiro. Segundo manifestantes que estavam próximos, policiais as
atiraram na direção de moradores de rua que ali estavam. “Houve um
princípio de desespero e revolta, mas o povo se segurou e estamos
seguindo. Hoje está bonito”, afirmou Luis Berti, livreiro. Também foi
possível presenciar um policial da Tropa do Braço dando uma cacetada em
um jovem que participava do cordão de isolamento dos manifestantes.
Aparentemente sem motivo.
De qualquer maneira, é importante ressaltar mais uma vez que a
presença ostensiva e explicitamente intimidadora da polícia ditou o
passo tímido deste terceiro ato. Mas nem tudo foi só intimidação e
provocação. Também houve vias de fato. Uma breve confusão de
aproximadamente 15 minutos entre manifestantes que tentavam pular a
catraca da estação Consolação, na linha verde do metrô, gerou bombas e
tiros dentro da estação por parte dos agentes do Estado e alguns vidros
quebrados por parte de manifestantes mais exaltados. Este fato foi
tomado como um todo pela “rigorosa” cobertura dos grandes meios de
comunicação.
Enquanto isso, na dispersão do outro ato, um fato ainda mais
estarrecedor, que prossegue ignorado pelos mesmos rigores. Um grupo de
manifestantes foi encurralado pela polícia na ponte Eusébio Matoso.
Relatos dão conta de agressões físicas a manifestantes, incluindo até
mesmo agressões sexuais. “Não havendo nenhum tipo de registro
cinematográfico, espancaram todos com socos, chutes, spray de pimenta e
cacetadas. Com as meninas a abordagem foi ainda pior: além de bater, as
abusaram, colocando a mão em suas vaginas e tacando-as no chão, aos
risos. Que tipo de instituição faz isso? Que tipo de instituição tem
como parte do trabalho, além de espancar e desorientar pessoas por elas
se manifestarem, também violentá-las sexualmente e, quem sabe,
assassiná-las?”, desabafou a manifestante D.M. nas redes
sociais. Nenhuma nota na grande imprensa.
E na semana em que publicamos essa primeira reportagem sobre os atos
contra a tarifa, a dura vida paulistana continuará sacudida pelas
manifestações contra o reajuste nos ônibus, trens e metrôs. Se a cidade
vai parar ou a nova tarifa se imporá, os próximos dias dirão. De toda
forma, continuaremos registrando os novos e candentes capítulos das
disputas sociais e econômicas que marcam esse incerto período da
história brasileira.
Notas:
Para visualizar fotos acesse: rolenacidade.tumblr.com
Veja também:
*Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania.