Terça, 28 de outubro de
2014
Da Tribuna da Internet
Jacques
Gruman
“Os homens sempre voltam” (personagem Jumento, da
peça Os saltimbancos, referindo-se à persistência da repressão)
Em algum momento de 2011, estava lendo uma coletânea de
poemas do Millôr Fernandes. Bati os olhos no Canção
número 1 para seres estranhos, de 1961. Foi uma pancada, como se
alguém tivesse traduzido o que eu sentia naquele instante. Compartilho:
Vou a caminho/E mergulho e volto./É uma noite
perene/Entre todas as noites./No ar, nem silêncio./E vamos, vamos,
vamos,/Deixando para trás/As pegadas profundas/Destes passos únicos./Só o Ieti
me entende/Tão abominável/Em seu gelo eterno./Abominável ele/Abomináveis
nós./Eu te amo, Ieti./Te amo, pio bove.
Aflito como o Ieti, o texto foi o empurrão que faltava
para começar a colocar no monitor um pouco de quem eu sou e de como estou no
mundo. A primeira crônica puxou a segunda, e veio uma enfiada semanal de
memórias, invencionices, pensatas mais ou menos pretensiosas, rabugices,
gargalhadas, provocações. Criei personagens fiéis a Manoel de Barros: 90% do
que eu falo é invenção, só 10% é mentira. São quase três anos de encontros com
pessoas que eu não vejo, mas que sustentam comigo um diálogo silencioso e
elegante. Bônus da internet.
CONVITE
Em agosto de 2012, fui convidado pelo portal Carta Maior a
publicar as crônicas semanais. Autorizei de imediato a reprodução dos textos,
e, desde então, ganhei um espaço na seção Cultura. Sempre me deram total
liberdade. Isso, no entanto, acabou semana passada. Fui sutilmente censurado,
num gesto que não devo, não posso, não quero, não vou aceitar. Passo a relatar
os fatos.
O portal se denomina “da esquerda brasileira e latinoamericana”.
Na eleição terminada ontem, reduziu-se esquerda brasileira a PT. Em sua quase
totalidade, os artigos construíram uma espécie de braço eleitoral do Partido
dos Trabalhadores, reduzindo a pó o espaço que outros segmentos da esquerda
deveriam ter se fosse levada a sério uma interlocução democrática com o campo
progressista. Foi neste clima que enviei, no dia 17 de outubro, o texto Você abusou: crônica de um voto. Nele,
defendi, sem histeria ou fanatismo, o voto nulo. Um de meus propósitos era
quebrar o monopólio da opinião petista no portal, numa perspectiva de esquerda.
Ofereci aos leitores a oportunidade de cotejarem suas opiniões com uma
alternativa que não vinha pela direita. O que aconteceu em seguida foi puro
Darth Vader, o Lado Escuro da Força.
No primeiro momento, a crônica foi publicada na seção
Cultura (embora o texto fosse claramente político e merecesse estar na seção
correspondente). Logo após, para meu espanto e horror, foi simplesmente
retirada do portal. Isso mesmo: censurada! A leitora Sandra Bastos percebeu a
sombra da guilhotina e registrou o estranhamento no dia 19 de outubro. Quando
voltou ao ar, a crônica saiu da página de frente e foi exilada para as páginas
internas, que têm visibilidade muito menor. Com isso, a repercussão ficou
severamente prejudicada, bloqueando minha intenção de inflamar um debate mais
do que necessário.
EXCESSO DE MATÉRIAS
Soube que editores do portal alegaram “excesso de
matérias” para fazer o que fizeram. Conversa mole. As matérias da seção Cultura
da semana passada, por exemplo, incluíam o cinema de Rosselini e as opiniões de
Juca Ferreira sobre o cinema brasileiro. Como se vê, temas que poderiam ser
perfeitamente postergados, já que estávamos na última semana da campanha
eleitoral. Outro detalhe importante. Minhas crônicas sempre permaneceram na
página da frente do portal por uma semana. A primeira vez em que isso não
aconteceu foi exatamente quando divergi da maré montante dilmista. Não nasci
ontem, não acredito neste tipo de coincidência. Um dos articulistas do Carta
Maior escreveu que votar nulo equivalia a um “crime”. Bingo. Lá estava eu
rotulado de criminoso, indigno de ocupar um espaço onde estava a convite.
O pensamento autoritário não admite marolas. Quer
garantias antecipadas de que não será ameaçado. No fim da década de 70,
colaborei com o semanário Movimento, da chamada imprensa nanica. Submetido à
censura prévia, muitas de suas matérias eram parcial ou totalmente vetadas.
Mesmo não sendo jornalista, fui encarregado de entrevistar o general Pery
Constant Bevilacqua. O militar era um legalista de velha cepa, que tinha
defendido a posse de Jango depois da renúncia de Jânio e se oposto ao golpe de
64. Defendia, quando o entrevistei, a anistia (foi um dos fundadores do Comitê
Brasileiro pela Anistia).
Redigi a matéria e, tal como em outras, assinei com o
pseudônimo de Adolfo Marques. Tratava-se de uma homenagem camuflada a um dos
meus grandes ídolos: Adolph Marx, vulgo Harpo Marx, o genial artista que
lançava toneladas de humor anárquico e mudo nos filmes dos Irmãos Marx. Pois
bem. Os censores de Brasília vetaram na íntegra o texto. Experimentei o gosto
amargo da impotência nestas situações. Não havia a quem reclamar.
Claro que a atitude arbitrária do Carta Maior não é igual
a dos esbirros da ditadura militar. Os editores foram um pouco mais sutis.
Limitaram-se a esconder o que era incômodo. Foi uma espécie de veto branco,
asséptico, para tentar livrar a cara dos que o cometeram. Incorreram em dois
erros. O primeiro foi acreditar que eu relevaria a manobra. Ledo e ivo engano.
Não compactuo com a violação de meus princípios.
O segundo foi subestimar a inteligência dos leitores.
Mesmo com visibilidade menor, a crônica foi lida e comentada por um número
razoável de internautas. Talvez para surpresa dos censores, que imaginam que
ler é aderir, a grande maioria manteve suas convicções e me criticou
educadamente. A todos eles, aliás, agradeço pela elegância e cumprimento pelo
espírito democrático. Tivesse agido corretamente, o Carta Maior teria
patrocinado um debate interessante, que sairia da bitola estreita e medíocre
que presidiu as eleições recém encerradas.
Solicitei, delicadamente, esclarecimentos formais ao
portal. Em resposta, tive o silêncio. Às vezes, ele é necessário. Em outras, no
entanto, seu ruído é ensurdecedor. Entendi o recado. Entendi e não aceito. Em
questões de liberdade, sou luxemburguista fanático (de Rosa, não de Vanderlei):
“A liberdade para os partidários do governo, apenas para os membros do partido,
por muitos que sejam, não é liberdade. A liberdade é sempre a liberdade para o
que pensa diferente”. E mais: “Sem livre enfrentamento de opiniões, a vida
morre em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente”. Por tudo
isso, não me restou alternativa. Esta foi a minha última crônica que o Carta
Maior teve autorização para publicar. Continuarei a escrevê-las semanalmente,
remetendo-as apenas para uma lista selecionada de endereços eletrônicos.