Sexta, 31 de outubro de 2014
Na ausência de
diferenças substanciais, o debate do 2º turno das eleições presidenciais tem
sido dominado pelo esforço mútuo de desconstruir a idoneidade do adversário. As
acusações recíprocas de malversação de dinheiro público e de aparelhamento do
Estado não têm fim. A cada ataque corresponde um contra-ataque. O “mensalão”
petista é rebatido com o “mensalão” tucano. O “propinoduto” da Petrobrás, com o
generoso “trem da alegria” da Alstom. É cara e coroa.
Os candidatos
defendem-se de maneira conhecida. Negam peremptoriamente qualquer malfeito e
juram ir até as últimas consequências para apurar os fatos, definir as
responsabilidades e punir os culpados, doe a quem doer. Até as pedras sabem que
nada será feito. Os denunciados são homens-bomba. Se abrirem a boca, a casa
cai.
O próprio
conteúdo do debate revela a cumplicidade dos candidatos com o sistema da
corrupção. Ao personalizar e particularizar os escândalos, associando-os a
desvios de conduta individuais, lacunas na legislação e falhas nos
procedimentos de fiscalização, o discurso sugere que a pilhagem do Estado decorre
de problemas que poderiam ser corrigidas caso houvesse vontade política.
Enquanto falam, Dilma e Aécio sabem que mentem. Não existe um chefe político
brasileiro que não tenha à sua sombra a figura sinistra e misteriosa do
“operador” responsável pelas finanças da campanha. Nas altas esferas do poder,
o homem do dinheiro é conhecido e goza de grande prestígio entre os pares.
Travestida de
guardiã dos interesses gerais da população e defensora da moralidade, a mídia é
parte orgânica do sistema de corrupção. Sem um sistema venal e degradado de
formação da opinião pública não haveria corrupção generalizada como modo de
funcionamento do sistema político, pois não haveria como circular (ou deixar de
circular), no momento conveniente, as denúncias, dossiês, intrigas,
insinuações, ameaças e chantagens que constituem a munição pesada da guerra
entre as camarilhas que disputam o poder do Estado.
A luz intensa
lançada sobre os escândalos de corrupção não tem a finalidade de elucidar o
problema, mas, antes o contrário, objetiva desviar a atenção para aspectos
secundários e personagens de menor relevância, a fim de ofuscar as relações que
explicitam as engrenagens que subordinam os homens de Estado à lógica dos
grandes e pequenos negócios. Ventríloqua de interesses escusos que permanecem
sempre na penumbra, a grande mídia manipula a opinião pública com informações
parciais, distorcidas e descontínuas, gerando uma visão apocalíptica e
moralista do problema. Ao reduzir as causas do assalto aos cofres públicos à
fraqueza de caráter, a corrupção é naturalizada. A imprensa marrom – quase a
totalidade de nossa imprensa – esbalda-se e transforma a indústria da chantagem
num grande negócio. “Se ninguém tem compostura, então, nos locupletamos todos”
– uma moral que calha bem com a degeneração da res pública.
Se houvesse
realmente vontade política de enfrentar a corrupção, seria preciso mostrar à
população seu caráter sistêmico e desnudar os interesses de classe que lhe dão
sustentação. Para tanto, bastaria não desperdiçar as raras oportunidades
abertas pelos homens bombas que quebram o pacto de silêncio e expor à população
a fisiologia que rege o aparelho digestivo do sistema político brasileiro.
A propósito, os
depoimentos recentes do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto
Costa, e do doleiro Alberto Youssef são pérolas que deveriam ser bem
aproveitadas. Seus testemunhos ao Ministério Público expõem com requintes de
detalhes como funcionava e quem comandava o esquema de desvio de recursos na Petrobras.
As primeiras lições são reveladoras:
a) A corrupção é
um sistema que aprisiona os partidos políticos da burguesia e os aparelhos de
Estado aos interesses do grande capital. Por trás da quadrilha que se apoderou
de cinco diretorias da Petrobras, encontram-se os partidos da base de
sustentação do governo federal e treze grandes empresas, entre as quais as
principais empreiteiras do país - OAS, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior e
Camargo Correia;
b) O centro
nervoso que comanda as grandes negociatas encontra-se no controle do
Legislativo pelo poder econômico e no controle do Executivo pelo Legislativo.
Ainda no começo do governo Lula, em 2004, uma greve parlamentar de noventa dias
forçou o presidente a nomear Paulo Roberto Costa, com mandato meticulosamente
definido para arrecadar recursos para os partidos da base. É a prova dos nove
de que a chamada “governabilidade” requer necessariamente conivência e
cumplicidade incondicionais com a corrupção;
c) A corrupção é
um sistema que envolve todos os partidos da ordem, mesmo os da oposição. A
propina paga a altos cardeais do PSDB para que colaborassem na operação abafa
da CPI da Petrobrás no Senado Federal deixa patente que ninguém escapa aos
tentáculos da corrupção. A guerra de acusações recíprocas é uma farsa. No jogo
do toma lá dá cá, a arte da política transforma-se na arte da malandragem e da
impostura.
O debate
eleitoral da corrupção não pode ser levado às últimas consequências porque a
população não pode saber que a corrupção é um pressuposto do sistema
representativo. Pois a promiscuidade entre o público e o privado – seu
determinante histórico – é uma das pedras angulares da organização do Estado
brasileiro.
Fonte: Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br