Sábado, 1º de
novembro de 2014
Akemi
Nitahara – Repórter da Agência Brasil
Para banir a justificativa de "auto de
resistência" nos homicídios cometidos por forças de segurança é preciso
que haja perícia independente, ritos na apuração dos casos, afastamento do
agente envolvido e acompanhamento psicológico, além da desmilitarização das
polícias e a regulamentação dos meios de comunicação.
As sugestões foram apresentadas hoje (31) na plenária de
recomendações da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) que discutiu
os autos de resistência. O presidente da comissão, Wadih Damous, ressalta que o
relatório da CEV, a ser apresentado em abril, prevê recomendações para o
estado. A ideia, de acordo com ele, é que contemple problemas que perduram até
hoje.
“Nós consideramos que essa prática policial, que não está
prevista na lei, atenta contra os direitos humanos, contra a Constituição,
contra uma série de diretivas e normativas das Nações Unidas, e é uma prática
que perdura ao longo dos anos no Brasil. Foi aperfeiçoada na ditadura, com as
chamadas mortes em confronto, e hoje assumiu essa formalidade de auto de
resistência. Então, nós queremos banir isso da prática policial. Isso significa
extermínio, matança ilegal. Significa dizer para a sociedade que existem
pessoas que merecem ser mortas, eliminadas, que não merecem viver. E isso é
inaceitável”, segundo Wadih Damous.
Para o sociólogo Michel Misse, professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o Estado precisa romper com essa situação, levando a
discussão para o estado de direito dentro da polícia e do Ministério Público.
Segundo ele, “a origem do processo de acumulação da
violência fica mais claro na década de 50. Portanto, antes mesmo da ditadura,
quando surgem os esquadrões da morte, os grupos de extermínio na Baixada
Fluminense, e essa concepção segundo a qual você vai resolver o problema da
criminalidade matando criminosos. Esse é o primeiro problema. Se nós não
conseguirmos superar essa crença de que bandido bom é bandido morto, que é uma
das responsáveis pela violência em que estamos mergulhados, e que mata tanto
criminosos quanto policiais, não vamos conseguir avançar”.
Para o cientista político e delegado da polícia civil
Orlando Zaccone, na prática, o auto de resistência configura uma "pena de
morte informal", já que o arquivamento dos casos é feito com a anuência do
Ministério Público, que investiga a vítima e não a situação em que ocorreu a
morte.
“A identificação da vítima como traficante de drogas e o
local onde ocorre o suposto confronto - a favela, por exemplo - são elementos
que vão legitimar a morte e fazer com que o promotor de Justiça peça o
arquivamento, muitas vezes até contrariando o laudo cadavérico, no qual a
vítima apresenta lesões incompatíveis com legítima defesa, como tiros nas
costas. O que nós estamos vendo é que existe todo um aparato jurídico que
legitima esses altos índices de letalidade do sistema de Justiça Criminal”,
argumentou.
Uma pesquisa de Michel Misse mostra que mais de 99% dos
autos de resistência praticados no Brasil são arquivados. Outra, da Anistia
Internacional, identifica que, em 2011, 676 pessoas foram executadas em 20
países que ainda têm pena de morte, enquanto no mesmo ano as polícias do Rio de
Janeiro e de São Paulo praticaram 940 mortes. “Isso é um problema de ciência
política, poque nós não temos pena de morte. Como um país que não tem pena de
morte pode matar 42% a mais do que todos os países que têm pena de morte no
mundo?” - questiona Zaccone.
Além disso, o delegado ressalta que em 2007 foram mais de 1
mil registros de auto de resistência, chegando à proporção de um morto para
cada seis presos. Ele compara com a última guerra ocorrida na América do Sul, a
das Malvinas, em 1982. “Nós não podemos dizer que sempre que um policial mata
alguém não existe legítima defesa, mas é importante consignar que os números
são assustadores, maiores que em guerras. A Guerra das Malvinas, por exemplo,
matou menos do que as polícias do Rio e de São Paulo em um ano. Esses são dados
assustadores”, acrescentou.
Desde janeiro de 2013, o Rio de Janeiro passou a registrar
os casos como Homicídio Decorrente de Intervenção Policial - Auto de
Resistência. Só em agosto deste ano - o último dado disponível - foram
registrados 44 casos no estado. O Mapa da Violência, da Flacso Brasil,
mostra que dos 68.977 assassinatos ocorridos no país, de 2002 a 2012, mais de
10 mil foram registrados como auto de resistência.