Sábado, 1º de novembro de 2014
Escrito por Gabriel Brito e
Valéria Nader, da Redação
Em 28/10/2014
Enquanto o país vai
se recompondo da febre eleitoral que transformou a disputa entre Dilma e Aécio
numa rinha na qual os grandes e urgentes temas nacionais brilharam pela
ausência, começa-se a tecer análises do que vem pela frente. Enquanto os
movimentos progressistas alimentam a esperança de um mandato mais à esquerda de
Dilma, o mercado e seus porta-vozes também já marcam suas posições e
exigências.
“O resultado deste domingo foi muito marcante,
a ponto de fazer necessário mobilizar todas as forças de esquerda para impedir
a vitória de uma direita que dessa vez se apresentou de maneira muito mais
explícita, com uma roupagem conservadora não apenas socialmente, mas também
economicamente”, disse a historiadora e professora da Universidade Federal
Fluminense Virginia Fontes, em entrevista ao Correio.
Para ela, o clima não
ajuda em nada a clarear o que está em jogo e quais as tendências da chamada
“realpolitik”. Em sua visão, o fanatismo de ocasião, de lado a lado, “gerou uma
mobilização de variadas forças de esquerda, o que obscurece o fato de que o
governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda e a expectativa,
agora, é de que tampouco realize, de modo a atribuir maior protagonismo às
forças populares”.
Apesar do pessimismo,
que também se ancora na configuração de um congresso repleto de ranços
conservadores, até extremados, Virginia pensa que o próximo período reserva
campo aberto para diversas lutas, independentemente de uma maior unidade das
forças e pautas à esquerda do debate público.
“Não vejo ambiente propício para as lutas.
Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda de forma muito firme,
exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se não o fizerem de
maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos movimentos de massa, que
devem vir, apesar de não ser possível prever precisamente”, analisou.
A entrevista completa
com Virginia Fontes pode ser lida a seguir.
Correio
da Cidadania: Primeiramente, como você analisa a vitória de Dilma neste
domingo, com a margem de votos mais estreita dos últimos tempos?
Virginia
Fontes: O resultado deste
domingo foi muito marcante, a ponto de fazer necessário mobilizar todas as
forças de esquerda para impedir a vitória de uma direita que dessa vez se
apresentou de maneira muito mais explícita, com uma roupagem conservadora não
apenas socialmente, mas também economicamente. Tivemos o perfil de uma direita
organizada de forma muito dura, homofóbica, com toda a característica de um
anticomunismo primário, que grassou no Brasil há muito tempo, de forma
peculiar.
Isso gerou uma
mobilização de variadas forças de esquerda para barrá-la, o que obscurece o
fato de que o governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda. E a
expectativa, agora, é de que tampouco as realize, de modo a atribuir maior
protagonismo às forças populares.
Portanto, a
conjuntura das eleições é muito incômoda, porque de alguma maneira obscurece
para as grandes massas as condições reais nas quais se dão nossas lutas, além
de esconder as possibilidades e exigências reais de organização que temos pela
frente.
Faço uma constatação
muito amarga do processo eleitoral, Inclusive, aqui no Rio, fiquei muito
impressionada, pois até a última semana era como se nada acontecesse. Já na
última semana, alguns bairros tiveram mobilização, mas ainda era como se nada
acontecesse, apenas mais um fenômeno burocrático de ir votar.
É um resultado
incômodo.
Correio
da Cidadania: O que podemos esperar ainda do quarto mandato petista no
Planalto, ao olhar para a nova configuração do Congresso e para a atual
conjuntura econômica nacional e internacional?
Virginia
Fontes: É uma análise para
ser feita com calma. Em primeiro lugar, durante a campanha, praticamente todos
os candidatos do que considero alas direita e esquerda do capital – uma coisa é
ser socialista e se propor transformador, revolucionário, outra é orbitar em
torno do capital, como o PT – admitiram que fariam ajustes, mais ou menos
rápidos, mais ou menos intensos. Mas todos os candidatos sempre falaram em
fazer o ajuste.
Foi uma discussão de
cunho técnico e bastante despolitizada, uma vez que não se explicou como se
fariam tais ajustes e o que significam. Mas quer dizer que pressões de grandes
capitais – de origens diversas – exigem maiores ganhos, o que significa reter
ou diminuir conquistas dos setores populares e dos trabalhadores. Esse
compromisso estava claro em todos os quadrantes dos partidos que orbitam em
torno do capital.
O Congresso ainda
mais reacionário significa que a mobilização popular, que num governo
supostamente de esquerda deveria ocorrer, não aconteceu. O terreno das eleições
proporcionais, importantes por serem mais próximas da vida do eleitor, continua
entregue aos grandes grupos controladores de grandes máquinas, aliados de
proprietários de sistemas de comunicação de grande escala, e que demarcaram as
posições de ingresso no Congresso.
Sobrou, apenas, algum
espaço de manifestação nas eleições majoritárias, com alguma dose de
inquietação social. Isso é muito grave. É sintoma do que houve nos últimos
anos, isto é, um desengajamento das causas populares e da militância
efetivamente socialista, comprometida com processos de transformação
substantiva, resultando em um parlamento muito marcado pela direita. Ficou um
espaço socialmente mais conservador, para além de economicamente – pois neste
caso os dois grupos são conservadores. Porém, a diferença de agora é uma base
mais homofóbica, visceralmente anticomunista, sem nenhuma tolerância e
grosseiramente reacionária.
Desse ponto de vista,
o que esperar do próximo governo, sendo que o anterior já se viu completamente
aprisionado pelo jogo politiqueiro? Muito pouco. Para uma esquerda
revolucionária, socialmente comprometida com transformações (em suma,
anticapitalista), cada dia mais terão de se reorganizar forças populares e
fechar uma pauta clara em comum, capaz de enfrentar o legislativo e o
executivo.
Correio
da Cidadania: Faz algum sentido os setores e partidos que se colocam à esquerda
do PT, muitos dos quais apoiaram o voto crítico em Dilma no segundo turno,
esperarem uma guinada à esquerda do partido e alguma possibilidade de parcerias
políticas?
Virginia
Fontes: Pessoalmente, não
vejo muita possibilidade. É difícil explicar, mas o que acontece? Os processos
eleitorais supõem o PT de esquerda, os outros de direita, e falsificam o jogo
anterior, porque na verdade são esquerda e direita em torno do capital. Essa
discussão não é explicitada. É como se apagassem o nervo pra discutir o
epidérmico. Nesse processo, é como se reafirmássemos que a característica atual
do PT é a sua característica ideal. Praticamente se reafirma que ser a esquerda
do capital é o melhor papel do PT.
Dentro de tal ponto
de vista, tenho muito pouca expectativa de que uma guinada ocorra. Seria muito
bom, mas a expectativa, para mim, não existe. Os partidos que se mantêm na
linha anticapitalista precisam definir um programa em comum. A ideia não é se
unificarem, mas precisam de uma pauta de luta comum e clara. É o trabalho a ser
feito e não é instantâneo.
Correio
da Cidadania: Diante disso, como ficarão as pautas associadas aos movimentos
populares e progressistas nesse próximo período?
Virginia
Fontes: Tenho bastante
expectativa nesse terreno, porque tais pautas não foram cumpridas pelos
governos precedentes: reforma agrária; reforma educacional de fato, de base
popular, com educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada;
reforma universitária ampla, capaz de desprivatizar e desmercantilizar a vida;
reforma e mobilidade urbanas...
Essas ideias estão
muito vivas na população e nos movimentos sociais. Acredito que as lutas em
torno de tais pautas serão retomadas, até porque são pautas absolutamente
irrealizáveis no âmbito do capitalismo no mundo contemporâneo.
Eventualmente, essas
lutas já foram superadas em alguns países, anos atrás, mas na atualidade vêm
sendo crescentemente impossíveis de serem satisfeitas pela ordem dominante.
Portanto, o que imagino, e espero, é que os movimentos retomem suas pautas de
luta, contra a homofobia, o racismo, pelo transporte, educação, saúde,
mobilidade, mesmo que enfrentem limitações provavelmente ainda maiores.
Já vínhamos
assistindo o processo de privatização da saúde, da educação, uma sequência de
processos de gestão privada de recursos públicos, que precisam dar lucro e,
assim, prejudicam diretamente os setores populares. Suponho que os movimentos
retomem suas pautas de luta e, de alguma maneira, como já faziam antes,
atravessem o ritmo de setores da esquerda do capital que acham que tudo vai
bem.
Correio
da Cidadania: Acredita que se desenha um tempo propício para novas rebeliões
populares, a exemplo das que vimos mais recentemente? Como isso se daria num
ambiente institucional mais conservador?
Virginia
Fontes: Não acho que está
aberto um tempo mais propício para as lutas populares. Acho que serão tempos
mais duros. Virão ajustes em favor do capital, que significam mais
contrarreformas, redução de direitos sociais e públicos. O segundo ponto é que
uma direita conservadora, econômica e socialmente, se reconstituiu nessas
eleições, ao menos aparentemente, o que é um problema sério a ser enfrentado. É
uma direita socialmente agressiva e com perfil de não dar nenhum espaço para
nenhuma conquista sociopolítica.
Não vejo ambiente
propício para as lutas. Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda
de forma muito firme, exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se
não o fizerem de maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos
movimentos de massa, que devem vir, apesar de não ser possível prever
precisamente.
No entanto, como
sabemos que as manifestações de 2013 se deram a partir de exigências mais
evidentes e concretas da vida dos trabalhadores – transporte, habitação, saúde,
educação, que são os temas mais candentes, incluindo a reação à violência
estatal –, podemos imaginar que tais pautas estarão recolocadas de forma muito
aguda. Mas não porque o ambiente esteja favorável.
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