Quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
Do Blogue Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti
Frente
a jovens que protestavam pacificamente contra o aumento da tarifa do
transporte coletivo, a Polícia Militar de São Paulo mostrou mais uma vez
sua incapacidade para atuar num ambiente democrático, agindo com uma
truculência que fez lembrar a SS nazista.
Por incrível que pareça, até a Folha de S. Paulo protestou, no editorial desta 5ª feira, 14:
"As forças de segurança fizeram mais que reprimir a ação dos vândalos. Cercando as pessoas que se aglomeravam na avenida Paulista e, de modo indiscriminado, disparando bombas de gás lacrimogêneo antes mesmo de a passeata começar, impediram a própria realização do protesto –em flagrante afronta à Constituição, portanto.
Já não era pouco, mas o exagero continuou quando a multidão se dispersou. Policiais caçaram como bandidos manifestantes que não se confundiam com os black blocs e desferiram golpes de cassetete mesmo contra quem não se predispunha para o confronto.
Em suma, a Polícia Militar, que no mais das vezes oscila entre a omissão diante do quebra-quebra e o abuso de força contra cidadãos, volta a exibir seu despreparo".
Coube ao jornalista Breno Tardelli, diretor de redação do jornal
eletrônico Justificando, fazer uma primorosa análise técnica do
desempenho da PM, constatando que os jagunços do governador Geraldo
Alckmin novamente utilizaram uma tática repressiva condenada por
organizações de Direitos Humanos e, em tese, pela própria corporação:
"Kettling (ou panela de Hamburgo) consiste em cercar e isolar as pessoas dentro de um cordão policial...
Foi exatamente o que ocorreu na Paulista. Isolados por cordões policiais
que não permitiam que ninguém entrasse ou saísse da manifestação, os
manifestantes foram surpreendidos com incontáveis bombas de gás
lacrimogênio".
Ou seja, a PM paulista mandou às urtigas o item 3.2.1. do seu Manual de
Controle de Distúrbios Civis, que é taxativo este respeito:
“A multidão não deve ser pressionada contra obstáculos físicos ou outra
tropa, pois ocorrerá um confinamento de consequências violentas e
indesejáveis”.
Segundo o professor do Mackenzie Humberto Barrionuevo Fabretti,
especialista em Segurança Pública, a PM contrariou até o senso comum,
pois "qualquer pessoa, instintivamente, sabe que não se deve encurralar
multidões em hipótese alguma". E completou:
"Cabe ao Estado agir da forma mais racional possível para evitar o
confronto e a violência. Cercar os manifestantes e atirar bombas em
todas as direções mostra um total desconhecimento de táticas de
contenção de manifestações, seria a mesma coisa que tentar apagar uma
fogueira com gasolina"
Da
justificada grita atual nada resultará, infelizmente. É o que nos
ensinaram vários episódios anteriores, como o da bestial desocupação do
Pinheirinho. Pois continuará faltando vontade política para cortar-se o
mal pela raiz.
A solução real para o problema seria a substituição das polícias militarizadas brasileiras por instituições civis, conforme recomendou enfaticamente o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, já lá se vão três anos e meio, levando em conta o altíssimo índice de letalidade dessas corporações e o fato de que parte expressiva de tais óbitos se devia a "execuções extrajudiciais".
Após analisar 11 mil casos de alegadas resistências seguidas de morte,
a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde
1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem Rota 66 - A história da polícia que mata: frequentemente não houvera resistência nenhuma mas, tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos.
Para piorar, as autoridades brasileiras quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.
Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos esquadrões da morte (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).
"TREINAMENTO
"Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (...) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público".
ENTULHO AUTORITÁRIO
Tal mostrengo existe por obra e graça da ditadura de 1964/85, só sobrevivendo a ela em função da pusilanimidade dos governantes civis a quem cabia eliminar o entulho autoritário.
Na sua trajetória para concentrarem poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas a eles leais.
O governador Adhemar de Barros, p. ex., até o último momento acreditou
que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do
caminho acusando-o de corrupto -o que ele sempre foi- mas, na verdade,
porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).
Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reserva do Exército".
Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-Codi's da vida foram ciosamente repassadas aos novos pupilos. Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns).
Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar. Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil.
Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só os deletando sob vara da então ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário.