Há de se ter a compreensão de que não foi o juiz quem
elaborou a Constituição
A mensagem e o mensageiro
Por FERNANDO BARBAGALO - Correio Braziliense/redação e Blog do Sombra
É utopia pensar numa sociedade sem crimes. Mesmo em
países mais desenvolvidos (sócio e economicamente) ocorrem delitos de toda a
ordem. Igualmente utópico (ou inocente) é o pensamento majoritário no Brasil de
que a punição penal pode diminuir e quiçá acabar com a criminalidade sempre
crescente. ...
Esse
é um pensamento que está enraizado no inconsciente coletivo (bombardeado com
notícias diárias sobre crimes violentos) e que atinge também, com frequência,
os operadores do direito, os quais, sob o fundamento vago “proteção da
sociedade”, entendem que se está autorizado a prender (punir) as pessoas antes
mesmo que sejam julgadas, negando direitos fundamentais dispostos na
Constituição e na legislação vigente.
Ilustra exemplarmente esse pensamento, vídeo panfletário
postado por um delegado de polícia do Distrito Federal em que, a pretexto de —
alegações suas — “prestar um serviço de utilidade pública”, tece críticas a uma
decisão judicial que concedeu liberdade provisória a pessoas detidas por
suposto crime de tráfico de drogas.
No vídeo em questão, foram convenientemente pinçados
trechos da decisão judicial, não sendo lida em sua integralidade. Inicialmente,
dá-se a entender que o delegado participou das investigações que culminaram com
a prisão em flagrante do casal, fato desmentido posteriormente em sua página de
relacionamentos na internet.
O delegado inicia seu desabafo “informativo” relatando
caso de tráfico em que um casal foi preso (a autoridade desde já os trata por
“casal de traficantes de drogas”) com filmagens, depoimento de usuários “tudo
dentro das exigências da lei e da Constituição”, mas, no dia seguinte, foram
colocados em liberdade pelo Judiciário.
Ele continua seu relato, informando que o juiz entendeu
ser o flagrante regular. Ora, sabe-se que a regularidade do flagrante não
impede a concessão da liberdade provisória, aliás, é pressuposto para análise e
eventual concessão desta, pois, do contrário (se o flagrante fosse irregular),
dar-se-ia o relaxamento da prisão ilegal (fato enfatizado pelo juiz na decisão,
a propósito).
A autoridade policial chega ao cúmulo de afirmar que a
liberdade provisória foi concedida “sem fiança”, quando se sabe, ou se deveria
saber (e informar aos incautos, leigos em direito) que a Constituição, no art.
5º, XLIII, consagra a inafiançabilidade do crime de tráfico (o que não impede a
concessão de liberdade provisória, segundo entendimento do STF).
No entanto, não foi informado no vídeo que a prisão foi
substituída por quatro medidas cautelares pessoais, tais como: comparecimento
mensal e pessoal em juízo, proibição dos presos se ausentarem do Distrito
Federal e de alterarem seus endereços sem prévia autorização judicial, além de
recolhimento noturno da 0h às 5h, tudo em conformidade com os arts. 285, § 2º e
319, do CPP.
Omitiu-se também a quantidade de droga apreendida, que foi
de 0,2 grama de crack. Foi omitido, outrossim, que a posição adotada pelo
magistrado em questão encontra amparo nos tribunais superiores, podendo ser
citados diversos precedentes com o mesmo posicionamento adotado por diversos
tribunais brasileiros, incluindo, o STF2 e o STJ3.
Por fim, omitiu-se que todos os presos devem ser julgados
e condenados antes de serem punidos. Sim, parece démodé, mas é exigência
constitucional (art. 5º, LIV) e também, para desalento de muitos, são
considerados inocentes antes de serem julgados (art. 5º, LVII) e sequer
poderiam ser chamados, como o foram, de traficantes.
Há de se ter a compreensão de que não foi o juiz quem
elaborou a Constituição nem as leis vigentes em nosso país, mas que se
comprometeu a cumprir a Constituição a aplicar as leis, por isso, acredito que
o delegado, algo comum nesses tempos, errou o alvo de sua crítica, mirou a
mensagem, mas atingiu, injusta e inadvertidamente, o mensageiro.
Por FERNANDO BARBAGALO
Juiz
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