Quinta, 8 de setembro de 2016
Do samba.catracalivre.com.br
O
cantor e compositor Dorival Caymmi era muito chegado do escritor Jorge Amado,
que também foi seu padrinho de casamento. Além disso, eles eram parceiros e
compuseram um dos maiores clássicos da música brasileira, "É doce morrer
no mar".
Houve
um período em que Jorge Amado morou na Inglaterra, e os dois trocavam cartas.
Uma delas, de Dorival para Jorge, ficou bastante conhecida.
Leia a carta de Caymmi para Jorge Amado:
“Jorge meu irmão, são onze e
trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para Yemanjá, pois o
reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas
canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci.
Talvez Stela saiba, ela sabe tudo,
que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la?
Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês.
Quando vierem, me tragam um pano
africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.
Ontem saí com Carybé, fomos buscar
Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando pernas, sentindo os
cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis
contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo.
Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a
Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se fartou de
elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e
acarajés e gente em volta.
Se eu tivesse tempo, ia ser
pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor vou
compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga
que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver:
visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com
Celestino sobre como
investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?
Quero te dizer uma coisa que já te
disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na Europa e nunca
mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o
firmamento azul, esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de
Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa da consagração, ikedes e iaôs,
todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver sua irmã subir
ao trono de rainha?
Pois ontem, às quatro da tarde, um
pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e não te
encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A
lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo
de menino, é merencória. A daqui é aquela lua. Por que foi ele para a
Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom filho-da-puta é
o que ele é, nosso irmãozinho.
Sabes que vendi a casa da Pedra da
Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima dela e anunciaram
nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a
casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João
Ubaldo, daquelas duas línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a
minha.
Mas hoje, antes de me mudar, fiz
essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em saveiro e no mestre
do saveiro, no mar da Bahia. Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e
de mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa,
quantas outras e todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei
te tendo de padrinho.
A bênção, meu padrinho, Oxóssi te
proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de trazer meu
pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.