Quarta, 24 de julho de 2013
Bernardo Santoro
Tribuna da Imprensa
Uma das funções mais chatas do advogado é se manter atualizado sobre
as novas leis. Cada nova lei é uma possibilidade potencial de
enriquecimento do advogado. Dentro desse espírito empreendedor, estava
lendo o Diário Oficial do Estado do Rio de hoje e logo de cara me deparo
com uma monstruosidade: o Decreto 44.302/2013, que cria a CEIV,
Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações
Públicas.
Em outras oportunidades já argumentei que direito de greve e de
protesto não é bagunça, e que o direito de manifestação não pode impedir
o direito de ir e vir de outras pessoas, além disso, é evidente que o
vandalismo deve ser ferozmente coibido e qualquer crime deve ser sempre
punido, realizado ou não em manifestações. Mas esse CEIV passa de todos
os limites razoáveis impostos pela democracia: cria um DOI-CODI
fluminense em plena democracia.
Para quem não sabe, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) era um órgão de
investigação do exército destinado a suprimir quaisquer manifestações e
tentativas de questionar a ditadura militar, sendo responsável pelo
sumiço e morte de várias pessoas. Parece ser clara a inspiração do
Governador no DOI-CODI para a criação da CEIV. O art. 1o tem mais conteúdo administrativo e não vem ao caso, mas os arts. 2o e 3o são verdadeiras monstruosidades antidemocráticas, e merecem comentários próprios. Vejamos:
Art. 2º. Caberá à CEIV tomar todas as providências necessárias à
realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo
requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos
necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de
punição de atos ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas.
ATO DE EXCEÇÃO
O que seriam “todas as providências necessárias à realização da
investigação”? Tortura? Sequestro? Essa redação é típica de ato de
exceção. A realização de investigação criminal é privativa de delegado,
expansível no máximo para o Ministério Público (com controvérsias,
diga-se), e, em casos excepcionais, para CPIs, sempre com autorização
constitucional. A Constituição veda que o poder executivo, fora da
polícia judiciária, investigue crimes. Investigação de crimes por órgãos
do poder executivo fora da polícia judiciária é típico de regimes
fascistas, onde se usa desse expediente para fins políticos de
perseguição de minorias e oposicionistas. Qualquer crime praticado em
manifestações públicas deve ser investigado e punido como se tivesse
sido praticado fora da manifestação. O fato de ter sido cometido em
manifestação política não qualifica e nem desqualifica o crime.
Art. 3º. As solicitações e determinações da CEIV encaminhadas a
todos os órgãos públicos e privados no âmbito do Estado do Rio de
Janeiro terão prioridade absoluta em relação a quaisquer outras
atividades da sua competência ou atribuição.
Parágrafo Único – As empresas Operadoras de Telefonia e
Provedores de Internet terão prazo máximo de 24 horas para atendimento
dos pedidos de informações da CEIV.
Esse artigo é o fim da democracia. De acordo com esse decreto, fica
revogado o direito de sigilo do cidadão fluminense. Entidades privadas
como bancos e operadoras de telefonia estariam obrigadas a entregar toda
e qualquer informação nossa ao CEIV. Essa medida é tão ilegal que até
mesmo a polícia, para investigar crimes, precisa de autorização judicial
para poder quebrar o sigilo fiscal, bancário, telefônico e de dados dos
cidadãos. E ainda assim os juízes só podem conceder autorização se a
autoridade policial demonstrar que essa quebra é fundamental para as
investigações. Sigilos só podem ser quebrados em última instância, mas
não para o Governador Cabral e sua CEIV.
E o que é mais revoltante: crimes investigados por essa CEIV têm
prioridade sobre qualquer outra investigação. Vamos por isso em
perspectiva: se amanhã uma criança for estuprada e assassinada no
Leblon, esse crime deixará de ser prioridade para os órgãos de
investigação frente à quebra de uma vidraça de uma loja no próprio
Leblon ocorrida durante uma manifestação. Essa é uma completa inversão
de valores. Todos os crimes devem ser investigados e seus agentes presos
e condenados, sem priorizar qualquer um deles, mas se tiver que se
priorizar alguma investigação, por qualquer motivo, obviamente que os
crimes contra a vida devem ter prioridade.
Por tudo isso, é flagrantemente inconstitucional esse decreto
expedido pelo Duce carioca, e este articulista pugna que todos os crimes
sejam investigados e os criminosos encontrados e penalizados, sem
distinção de preferência política e com respeito aos direitos
individuais básicos, sem uso do aparelho estatal para fins de
perseguição política.