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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Liberdade artística como direito constitucional e o obscurantismo tardio

Sexta, 3 de outubro de 2017
  Por
Aldemario Araujo Castro*
Nas últimas semanas, a partir da atuação de grupos outrora aparentemente preocupados com os escândalos de corrupção, ganhou o noticiário da grande imprensa e os registros nas redes sociais um curioso debate acerca da produção artística e sua divulgação. Em função de expressões artísticas que utilizavam as temáticas da nudez e da sexualidade, aqui e ali relacionadas com elementos de fundo religioso, foram observadas vozes contundentes apontando: a) a desqualificação das manifestações como arte e b) alguma forma, mais ou menos incisiva, de impedimento (ou proibição) de veiculação.
 
Uma das mais obscuras consequências dessa discussão está presente numa proposição aprovada pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo. “Um projeto de lei que proíbe pornografia e nudez em exposições artísticas e culturais em espaços públicos no Espírito Santo foi aprovado pela Assembleia Legislativa. A votação aconteceu em regime de urgência, na tarde desta segunda-feira (23)./O texto foi elaborado pelo deputado estadual Euclério Sampaio (PDT). Como justificativa, o deputado afirma, no próprio PL, que o objetivo é 'a promoção do bem-estar das famílias', evitando constrangimento aos cidadãos./'Não se trata de punir manifestações quaisquer, senão as de natureza sexual que possam causar constrangimento aos cidadãos de diversas idades, crenças e costumes', escreveu./No PL, o teor pornográfico em exposições é descrito como 'expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a nudez humana'” (https://goo.gl/ZyCHAA).

O primeiro elemento a ser considerado no tratamento jurídico desse tema é a regra do artigo quinto, inciso nono, da Constituição. O enunciado normativo, ao declarar um importante direito fundamental, possui o seguinte formato: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Decorrem do aludido comando constitucional uma série de consequências.

A primeira das consequências do dispositivo constitucional destacado aponta para a impossibilidade jurídica, corroborando a impossibilidade fática, de alguém, na estrutura do Estado (uma autoridade) ou fora dela (um cidadão), definir o que é a arte no lugar do artista. O mais rasteiro sentido da palavra “livre”, potencializado como direito fundamental, impõe a ausência da interferência de terceiros no processo de criação artística. Nesse sentido, a arte como processo de afirmação de identidade, de pensamentos e de socialização integra, em lugar nobre e de destaque, a realização da dignidade da pessoa humana, objetivo maior da ordem jurídica (expressamente inscrita no artigo primeiro da Constituição).

A segunda das consequências da previsão constitucional referida aponta para a ampla possibilidade de divulgação da produção artística. O comando normativo afirma a liberdade de expressar a atividade no campo das artes. Assim, na mesma linha da consideração anterior, um terceiro, na estrutura do Estado (uma autoridade) ou fora dela (um cidadão), não reúne condições, a princípio, de obstar, impedir ou reclamar autorização prévia para a manifestação artística. A parte final do dispositivo, quando afasta a censura ou a necessidade de licença, confirmam a amplitude do direito de divulgar a criação artística.

Embora amplo, bem amplo, o direito fundamental relacionado com a manifestação da atividade artística não é absoluto. Aliás, nenhum direito é absoluto, conforme lição comezinha observada na Teoria Geral dos Direitos Humanos. Com efeito, a existência de outros direitos e a pluralidade político-social interferem na extensão do exercício do direito em questão. Importa, assim, ainda que sumariamente, por conta dos limites deste escrito, precisar os contornos ou as fronteiras do importante direito relacionado com a manifestação da criação artística.

Os possíveis condicionamentos ao amplo (mas não absoluto) direito de livre manifestação artística devem ser cuidadosamente encontradas nas normas (regras e princípios) e valores albergados na mesma Constituição que consagrou, corretamente, o direito de forma muito generosa. Nesse sentido, o disposto no art. 220 do Texto Maior precisa ser considerado. Esse comando está vazado nos seguintes termos: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição./§1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV./§2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística./§3º Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Na linha posta por esse dispositivo constitucional, foram editadas a Lei n. 8.069, de 1990 (art. 74 e seguintes), a Lei n. 10.359, de 2001 (artigo terceiro) e a Lei n. 12.485, e 2011 (art. 11). 

Portanto, é perfeitamente cabível, até mesmo necessário, implementar a indicação informativa em relação às manifestações artísticas que possar causar algum tipo de constrangimento de cunho religioso ou alcançar crianças e adolescentes (em processo de construção da personalidade). É sempre importante frisar que cautelas de aviso ou eventual restrição de acesso não se confundem com censura ou proibição, claramente afastadas pela Constituição.

No limite extremo, mediante intervenção judicial, seria possível a interdição de manifestações artísticas. Para tanto, uma análise cuidada de todo o contexto envolvido precisaria identificar uma inequívoca promoção de valores recusados claramente pelo constituinte. Não seria aceitável a expressão artística voltada para a promoção de discriminações (de raça, gênero, orientação sexual, etc), da violência e da criminalidade de forma geral. Não se trata, aqui, de repudiar a mera presença de elementos dessas temáticas. Trata-se de identificar casos raros e extremos de veiculações culturais que, por todo o contexto analisado, possuem a finalidade precípua de promover valores incompatíveis com aqueles consagrados na Constituição.

Deve ser sublinhado que a utilização da nudez, da sexualidade, da violência e mesmo de elementos ligados às religiões não são motivos suficientes, tomados de forma isolada, para definição de condicionamentos ou limitações. Com efeito, a produção artística da humanidade ao longo dos séculos está recheada de exemplos de usos desses temas de todas as formas possíveis (provocativa, ingênua, explícita, velada, com extremo mau gosto, com leveza, etc). Ademais, são incontáveis, nos museus dos quatro cantos do mundo, as peças, de várias naturezas, que exploram essas temáticas.

Um dos aspectos mais insólitos do debate em curso acerca da liberdade de manifestação artística é o enquadramento do mesmo como um embate entre o pensamento político de esquerda e o de direita. Nada pode ser mais inusitado e equivocado. O direito à liberdade de veiculação da produção artística é um desdobramento da liberdade de manifestação do pensamento. Tratam-se de direitos claramente de índole liberal. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, veiculada pela Revolução Francesa de 1789, proclamava (artigo 11): “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem”.

Também deve ser anotada a existência de uma boa dose de hipocrisia na atuação dos atuais “moralistas” (ou “guardiões da moralidade da família brasileira”, como provavelmente alguns querem ser conhecidos). A salutar liberalização dos costumes nas últimas décadas, fenômeno de âmbito mundial, tem viabilizado o crescente contato do público em geral, pelos mais variados meios, com intensas manifestações relacionadas com a nudez e a sexualidade. Aliás, ao longo dos séculos, a história da humanidade está marcada por milhares de registros artísticos nessas áreas, como antes anotado. Claro que cabe um debate sereno e responsável acerca da fixação de indicações classificatórias em veiculações de conteúdos dessas naturezas em meios de comunicação de massa ou espaços abertos ao público. Não deve ser confundida, entretanto, essa discussão construtiva com a sanha moralista, proibicionista e hipócrita de grupos e setores movidos pela uma lógica quase medieval. 

O debate em torno das manifestações artísticas também é alimentado por interesses político-ideológicos bem definidos. Certos setores e grupos da sociedade brasileira perseguem dois claros objetivos com as iniciativas referidas. Em primeiro lugar, buscam desviar a atenção de largos setores da sociedade para longe do mar de lama comprometedor do atual Presidente da República, vários de seus ministros e boa parte de sua base de sustentação político-parlamentar. Em segundo lugar, procuram capitanear e capitalizar uma disputa em torno de valores e costumes no seio da sociedade. Nessa última perspectiva, se apresentam como defensores do que existe de mais atrasado e retrógrado no convívio humano, falsamente rotulados como valores “da família” ou das pessoas “de bem”.

*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional e Professor da Universidade Católica de Brasíli