Domingo, 26 de novembro de 2017
Do Esquerda.Net
O Legado de Vladimir Lenine
Cem anos depois da Revolução
Russa, as ideias de Vladimir Lenine sobre democracia, terrorismo e
revolução ainda importam. Entrevista a Tariq Ali, por Suzi Weissman
(Jacobin Radio).
26 de Novembro, 2017
O livro The Dilemmas of Lenin: Terrorism, War, Empire, Love, Revolution (link is external) [Os Dilemas de Lenine: Terrorismo, Guerra, Império, Amor, Revolução] do escritor, realizador e jornalista Tariq Ali, foi publicado em abril passado, no ano do centenário da Revolução Russa – e exatamente 100 anos depois das Teses de Abril (link is external)de
Lenine, o apelo às armas depois da bem sucedida Revolução de Fevereiro
que derrubou o czar, mas não trouxe o poder aos sovietes.
O livro de Tariq desvela um Lenine desconhecido, aquele que amava literatura latina e música clássica, aquele que foi profundamente influenciado pelas convulsões políticas do seu tempo, que afetaram intimamente a sua família.
A História encara a figura de Lenine como um ditador cruel e, por isso, poderá ser surpreendente ouvir falar sobre o seu compromisso com a democracia. Nesta entrevista com Suzi Weissman, da Jacobin Radio (link is external), Ali desvenda os mitos e as difamações sobre o papel de Lenine na história, ajuda-nos a analisar as suas ideias e ações, e questiona a sua relevância nos dias de hoje.
SW (Suzi Weissman)
Neste novo livro, apresenta-nos um Lenine que não temos visto habitualmente: o seu amor pela literatura, pelo Latim, pelo xadrez e o impacto da morte do seu irmão.
TA (Tariq Ali)
É o tipo de assuntos dos quais as pessoas não costumam falar, devido a uma série de razões. Um das razões tem a ver com o que a liderança soviética fez a Lenine depois da sua morte. Foi a decisão tomada pelo Politburo de o mumificar, expor o seu corpo ao público, transformá-lo num santo bizantino. Isto é muito uma tradição da Igreja Ortodoxa. Embora muitas pessoas do Politburo não fossem a favor daquilo, não puderam contrariá-lo, porque isso seria tomado como muito sectário. A viúva de Lenine, Nadia Krupskaya, e as suas duas irmãs suplicaram junto da liderança: “Ele teria odiado tal coisa. Ele abominava todo este tipo de deificação. Por favor, enterrem-no debaixo das paredes do Kremlin, onde outros líderes e ativistas foram sepultados. Não lhe façam isto”. Mas eles fizeram-no e isso foi um passo habilidoso. Puderam, assim, usar a figura de Lenine, especialmente nos anos de Estaline, e reconstrui-lo como alguém que ele não foi, forjar fotografias com ele.
Estaline fê-lo, particularmente. Claro que ele privou com Lenine muitas vezes, nas reuniões do Politburo, mas, para mostrar que eram amigos, uma data de fotografias foram falsificadas. Foram produzidas pinturas falsas para demonstrar que havia uma total continuidade entre Lenine, o seu pensamento e o que existiu na União Soviética dos anos 30 do século passado. Dois grupos de pessoas acreditaram ou acreditam nisto: um destes correspondeu à liderança Estalinista na Rússia e o segundo foi o Ocidente. Nisto, os dois grupos tinham uma aliança profana. Os Estalinistas diziam “O que estamos a fazer é uma continuação da obra do camarada Lenine” e o que o Ocidente, os seus líderes e ideologias disseram foi “Sim, Lenine é a base do que está agora a passar-se na União Soviética”. Estes dois estados e aparelhos ideológicos gigantes combinados fizeram com que as pessoas esquecessem quem realmente foi Lenine. Sob tudo isto, permanece um muito diferente líder e teórico político.
SW
Na primeira vez que fui à União Soviética, fiquei surpreendida com as longas filas de espera para ver o seu túmulo. Pensei, na altura, que há-de haver um tempo, na posteridade, para destrinçar quem foi Lenine. Já passou tempo suficiente para podermos trazer à luz este Lenine menos familiar?
TA
Há uma grande dose de hostilidade, claro, no pensamento dominante, mas a malícia já se foi porque a União Soviética já não existe. Eu fiquei, falando francamente, muito satisfeito e também muito surpreendido quando o New York Times me pediu um artigo (link is external) sobre Lenine. Eu defendi efetivamente as minhas ideias tais como as escrevi no livro, e o artigo foi publicado sem qualquer murmúrio.
Espero que tal signifique que uma atenção séria será dada ao seu pensamento e a alguns dos seus escritos-chave. As Teses de Abril, onde ele altera dramaticamente o seu ponto de vista sobre o que é necessário; Estado e Revolução (link is external), onde ele diz “O que nós precisamos é de uma versão da Comuna de Paris”.
Uma das questões-chave da Comuna de Paris foi a das eleições desde a base e em todos os níveis, de tal modo que o grande pintor francês Gustave Courbet organizou os artistas em cada quarteirão de Paris, que elegeram delegados e ficaram responsáveis por decidir sobre qual o aspeto que Paris deveria ter. Foi um processo totalmente democrático. Este é o modelo que Lenine queria. Depois da sua morte, algumas pessoas disseram que “A Guerra Civil foi horrível, mas mesmo durante a guerra nós tínhamos certas liberdades que nos lembravam a Comuna de Paris. Havia um sentimento de igualdade. Todos podiam dizer o que quisessem nas fileiras do exército e do partido. Podíamos discutir com os Comissários, etc.”. Toda esta experiência foi eliminada durante a ditadura de Estaline e isso criou esta opinião de que tudo teve origem com Lenine. O velho, muito velho debate – houve uma total continuidade entre Lenine e o que se seguiu depois ou não houve continuidade de todo? Não podemos dizer uma coisa, nem outra. Eu considero que houve elementos de continuidade. Não o podemos negar, mas mais sobre as decisões tomadas durante as situações de emergência.
A coisa mais emocionante estava a acontecer aquando dos seus últimos escritos, quando ele está numa fúria. Estava a ficar debilitado devido a um ataque de coração. Inesperadamente, vê tudo à distância, pois os médicos não lhe permitiam mais participar nas reuniões do governo ou do partido. Ele olha para o que eles tinham conseguido e diz: “Oh meu deus, isto não está a correr bem”.
O seu grande argumento, no Estado e Revolução, é que uma república socialista tem de destruir todas as remanescências do czarismo, a sua burocracia e o grande chauvinismo russo. Ele diz: “Às vezes, parece-me que, apesar de termos ganho a revolução, a velha burocracia czarista continua no poder, infetando os líderes e os funcionários do aparelho bolchevique, tal como era antes”. Isto choca-o e, por isso, prepara um conjunto de documentos incisivos para tentar alterar a situação, mudando a estrutura do Politburo, atribuindo mais poder à Comissão de Controlo, dizendo que Estaline deveria ser destituído do cargo de secretário-geral do partido, dizendo o que correu mal e porquê. Isto é o que nós, muitos de nós, temos dito durante anos. O Socialismo, considerando o quando e onde aconteceu, é sempre uma aproximação. Não podemos dizer: “Isto é o Socialismo”. Estamos a lutar nessa direção. Lenine escreve isto prontamente.
SW
No livro, descreve quando o velho anarquista, o Príncipe Kropotkine, conheceu Lenine, aquando do seu regresso à então União Soviética. Os anarquistas estavam prestes a ser expulsos, mas ele veio até Moscovo e encontrou-se com ele, em maio de 1919, e queixou-se da burocracia. Lenine respondeu que “Nós somos sempre contra o funcionalismo, em qualquer parte”.
TA
Ele era muito próximo de Kropotkine e muito próximo de alguns militantes e ativistas anarquistas. Como poderia não ser? Eles dominaram a política russa durante todo o século XIX. Não foi o Marxismo que foi dominante. Foi o anarquismo. Esta era a ideologia de que a juventude gostava. Eram as ideias de Kropotkine e de Bakunine, as quais adotaram e por elas foram guiados até uma forma de anarco-terrorismo, porque eles alegavam que “Nada foi deixado para nós fazermos”.
Nalguma correspondência entre Karl Marx e russos como Chernyshevsky e, claro, nas conversas com Bakunine, ele diz: “Eu oponho-me completamente ao terrorismo em geral, porque isso é uma distração em relação à construção de partidos e movimentos de massas, e à conquista da maioria da classe trabalhadora”. “Porém, no caso russo”, salienta Marx, “há um argumento, uma vez que tudo está bloqueado. Quando os jovens dizem que 'a única forma de desbloqueio é fazer explodir os opressores', eu compreendo isso. Não se pode construir uma estratégia à volta disso, mas eu compreendo-o”.
Muitas das mulheres que se tornaram ativas naquela altura eram de classe-média, com uma educação cuidada, ou no caso de Sophia Perovskaya – que fez explodir um dos czares – ela era mesmo a filha de um governador-geral de São Petersburgo. Estes burocratas seniores sabiam exatamente onde ia o czar, quando ele ia e onde ele andava, por isso, ela organizou tudo. Ela foi a principal organizadora e obviamente foi enforcada por isso – foi a primeira mulher a ser executada pela autocracia czarista.
Lenine conhecia isto. Cresceu neste contexto. O seu irmão cometeu o erro de se envolver num pequeníssimo grupo anarquista quando o anarquismo estava, ele próprio, em colapso. Ele apenas escreveu os panfletos e o procurador, no tribunal, disse-lhe: “Aleksandr Ulyanov, nós sabemos o que você fez”. O irmão de Lenine respondeu: “Sim, vocês sabem que eu escrevi os panfletos, mas eu assumo inteira responsabilidade por toda a ação”. Houve nobreza naquele gesto. Ele não precisava de o ter feito, ele não fez aquilo, ele poderia ter recebido apenas a pena de prisão. Lenine, tendo crescido neste meio, conhecia tudo, e uma das primeiras coisas que fez foi encontrar-se e ver vários destes anarquistas e velhos militantes anarquistas. Krupskaya escreve de modo bastante abrangente em Memories of Lenin (link is external) [Memórias de Lenine]: “Nós nunca visitámos uma cidade sem que Lenine dissesse 'Ok, eu agora tenho de ir ver A, B, C, D, E, porque eles ainda estão vivos'”. Estes eram sempre antigos militantes anarquistas, de tal modo que este hábito permaneceu nele.
SW
As anteriores táticas que Lenine veio a recusar mais tarde – a tática do uso do terror – desencadearam uma discussão por todo o mundo. Aqui, nos EUA, Eugene Debs e Big Bill Haywood ponderaram sobre isso e falaram sobre como o uso da ação direta é aceite, embora esta tenha de ser realizada pelo movimento dos trabalhadores.
TA
Verdade.
SW
Esta é a posição que Lenine também adotou mais tarde. Por que é que a Comuna de Paris significava tanto para ele?
TA
A Comuna de Paris surgiu, essencialmente, a partir da derrota sofrida pela classe dominante francesa, colocada nas mãos dos prussianos e dos alemães, tal como aconteceu em muitas outras revoluções na história. Napoleão III cometeu um enorme erro ao provocar os alemães e Bismarck e o seu gangue estavam à espera. Depois desta derrota infligida no exército francês, eles refugiaram-se em Versalhes. Os parisienses, especialmente, os trabalhadores, os artesãos e os intelectuais, disseram então: “Nós não aceitamos esta rendição, deixem-nos libertar Paris, sustentá-la e lutar contra os prussianos. Nós não queremos ser ocupados nem por Napoleão, nem pelos prussianos”.
Aqui, podemos ver ecos da posição de Lenine durante a I Guerra Mundial: “Nós não apoiaremos nenhum dos lados. Tivemos um primeiro vislumbre disto na Comuna de Paris e eles assumiram-no. Derrotaram os exércitos reacionários reunidos em Versalhes e, assim, tivemos o primeiro despontar daquilo a que podemos chamar de democracia popular e dos trabalhadores”.
Nem todos os participantes da Comuna eram trabalhadores. Havia muitos cidadãos envolvidos que eram pequenos artesãos, em pequenas oficinas, artistas, escritores. Rimbaud, por exemplo, escreveu um poema descrevendo a passagem pela Comuna de Paris que é incrivelmente emocionante. Então, a Comuna de Paris eletrificou toda a gente, ao dizerem: “Nós vamos eleger os nossos representantes desde a base”, porque a democracia nunca existiu em tempo algum. A Alemanha era, provavelmente, a mais avançada, mas, também aqui, uma poderosa lei de emergência foi posta em marcha para manter os sociais-democratas à distância. Esta democracia de base entusiasmou toda a gente, estes representantes foram para a assembleia local e para a sua assembleia-geral de Paris, fazendo com que as suas vozes fossem ouvidas.
O Consenso de Viena, em 1815, não foi tão dissemelhante do Consenso de Washington dos anos 90 do século passado, onde disseram: “Temos de nos certificar de que seja onde for que a revolução surja, onde quer que se desenvolvam forças da oposição, elas são esmagadas imediatamente. Não podemos correr esses riscos”.
Depois, 1848 irrompeu com revoluções e demandas de autodeterminação nacionais por toda a Europa, e depois deu-se a eclosão da Comuna de Paris. Isto estava muito perto dos corações e das mentes dos revolucionários, por todo o mundo. A mensagem chegou tão longe quanto as Filipinas: “Vejam o que está a acontecer em Paris. Vejam o que está a ser dito ou que eles estão a fazer”. De 1871 em diante, assistimos ao desenvolvimento de uma corrente que era proto-marxista. Karl Marx apoiou completamente a Comuna, mas sentiu que muitos erros táticos foram cometidos devido à inexperiência que poderia ter sido interrompida. Aqueles que tentam diferenciar Lenine de Marx descobrirão que, afinal, o que Marx disse da Comuna de Paris foi muito similar ao que Lenine viria a dizer mais tarde.
Um outro aspeto sobre Lenine e o estado que iria ser criado em 1917 é que toda a aliança do Ocidente – as potências da Entente1, os EUA – consistia em pessoas que acabariam por vir a governar os serviços de informação americanos nos anos vindouros. John Foster Dulles e Alan Dulles, quando tinham vinte e pouco anos, estavam presentes na reunião marcada para se decidir como derrotar a Revolução Russa. A Inglaterra foi envolvida. Outras potências europeias foram envolvidas. Vinte e dois exércitos preparados pelas grandes potências da aliança do Ocidente estavam a tentar derrotar os russos. Isso deixou uma profunda marca na revolução.
Precisamos de compreender a política. Lenine, a sua geração, e Marx, todos estes eram seres políticos. Tinham o entendimento de que sem política, nada poderia avançar. Neste sentido, Lenine foi claramente um génio, tal como até os seus inimigos o reconhecem. Sendo absolutamente claro como cristal, não mascarando as derrotas como vitórias, mas argumentando que as vitórias poderiam ser possíveis se fizéssemos A, B e C.
SW
A Revolução de Outubro foi espontânea, com uma torrente de trabalhadores nas ruas. Derrubaram o czar, mas como houve indecisão, os sovietes não reclamaram o seu poder e, em vez disso, um fraco governo provisório chegou ao governo. Foi um tempo de liberdade, contudo, a revolução não estava ainda terminada. O que aconteceu quando Lenine voltou do exílio e desembarcou na estação Finlândia [em São Petersburgo]?
TA
Quando Lenine chegou, os sovietes estavam a ser reunidos. Alguns existiam. Não por todo o país, mas nos principais centros, era este o modelo. Não havia parlamento. A Duma não era de todo respeitada, por causa da experiência de 1905 – um ensaio-gera da revolução, como Lenine lhe chamou -, quando os sovietes surgiram espontaneamente e, nestes, nenhum dos partidos era suficientemente forte. Estes sovietes eram genuinamente espontâneos e libertadores. Muitos consideravam que aquilo deveria ser o modelo da democracia – uma democracia soviética – que tinha um significado muito diferente daquele que depois veio a adquirir.
Quando Lenine chega, é saudado por uma delegação oficial do soviete, liderada pelos partidos liberais e moderados e, efetivamente, Chkheidze, um menchevique de direita, afirma: “Nós damos-te as boas-vindas, camarada Lenine, em nome do Soviete de Petrogrado, mas instamos-te a compreender que esta é uma revolução muito alargada e que tens de te unir com todos para que o movimento avance”. Lenine dá-lhe um aperto de mãos, de modo indiferente, e depois avança para cumprimentar os delegados dos trabalhadores e dos soldados. E profere: “Nós temos de fazer uma revolução e esta revolução tem de ser socialista. Temos de pôr fim à guerra e ir em busca de terra, paz e pão”. Este é um dos velhos slogans de Lenine, um dos mais batidos. Debaixo de cada palavra, terra, paz e pão, há um pilar de ferro, que é a política estratégica e tática dos bolcheviques. Isso é o que enquadra estes pilares e estes são slogans muitos populares.
Os funcionários lamentam. Pensam algo como “Meu deus, nada muda, o tipo está igual, não mudou”, porque alguns bolcheviques levaram-nos a entender que estavam todos juntos agora e que nada mais iria acontecer. Lenine compreendeu que, se perdessem aquele momento, não haveria revolução, até porque estes farsantes que estavam no poder recusavam-se a tirar a Rússia da guerra, algo que correspondia a uma exigência muitíssimo popular. Eles não podiam ou não tinham poder para transformar a situação social.
SW
É aqui que Victor Serge (link is external) diz que Lenine foi um revolucionário na altura da revolução e isso define um líder. Ele compreendeu o momento, viu o que este implicava, agarrou-o e fê-lo avançar.
TA
Exatamente. Lenine escreveu o rascunho das Teses de Abril. Não devemos mistificar demasiado isto, ele gostava de escrever sob a forma de teses. Estas eram condensadas e muito claras. Não havia palavras a mais nas teses, apenas o mapeamento e a enunciação do que era necessário fazer. Lenine disse que os proletários tinham de tomar o poder. A ortodoxia dizia que apenas nos era permitido ter, naquele momento, uma revolução democrática burguesa. Isto significava que nós não deveríamos participar nela, porque éramos contra a burguesia. Deixem-nos fazer a revolução e nós esperaremos, e quando eles a tiverem alcançado e desenvolvido, aí, sairemos para fazer uma revolução socialista diferente. Lenine disse que isto era “um completo e absoluto absurdo”.
As semanas foram passando e duas coisas tornaram-se óbvias. As ideias de Lenine eram extremamente populares nas fábricas, não apenas nas fábricas de Putilov, mas também num considerável número de unidades fabris subsidiárias, nos arredores de Petrogrado. As suas ideias eram também muito populares entre as mulheres, as trabalhadoras e as confinadas ao espaço da casa. Fazendo com que isto fosse percebido no seu próprio partido, Lenine persuadiu primeiramente as bases bolcheviques. A classe trabalhadora está à frente do partido, depois as bases estão à frente da liderança partidária e, por fim, Lenine dirige-se finalmente aos dirigentes do partido, dizendo: “Ok, o que vamos fazer?” Por esta altura, muitos concordavam que as Teses de Abril tinham de ser adotadas e, por isso, quando Lenine os abordou pela primeira vez, comentaram que “Lenine enlouqueceu. O que é que se passa?”
Acima de tudo, a adoção das Teses de Abril abriu a porta a Trotsky e ao seu pequeno grupo de intelectuais extremamente dotados, que andavam a discutir estes temas entre si desde há anos, para entrarem e se juntarem ao Partido Bolchevique – consequente, isso reforçou a cultura intelectual dos bolcheviques, que não estava no seu mais alto nível.
SW
Falemos, então, do período entre abril e outubro e sobre o entusiasmo da revolução.
TA
Trata-se de altos e baixos. A certa altura, em julho de 1917, os trabalhadores – ou a secção mais militante dos trabalhadores, não organizados em nenhum partido, embora muitos fossem simpatizantes bolcheviques – decidem que “Basta, nós temos de assumir o poder agora”. Lenine, que na altura conhecia extremamente bem a situação, estava convicto de que isso seria prematuro, porque ainda não tinham a maioria nos sovietes mais importantes e, por isso, tenta conter a situação. Porém, assim que os trabalhadores saem à rua, os bolcheviques saem com eles. Não havia razão para ficar em casa ou para a passividade, e isto é depois esmagado.
Depois, segue-se uma resposta contra-revolucionária. Trotsky é preso. Outros líderes bolcheviques são apanhados. Lenine é forçado a partir para o exílio, pelo próprio partido, disfarçado como ferroviário e usando uma peruca (que lhe ficava muito bem, já agora). Ele atravessa a fronteira e a partir daí passa a bombear a liderança, dizendo que “Isto é um revés temporário. Nada de fundamental se alterou”.
Em setembro, a frente de guerra está totalmente a desintegrar-se, há motins, deserções em larga escala e os camponeses de uniforme regressam a casa – e regressam muito vulneráveis à agitação bolchevique. É a política de agitação bolchevique que os vai convencer. Para Kornilov e os generais da direita tornou-se muito difícil confiar nos seus soldados para executarem os massacres. Quando as tropas de Kornilov marcham em direção a Petrogrado para bater em toda a gente e tomar o poder ao estilo de Pinochet, os agitadores bolcheviques saem à rua e avisam: “Olha, sabes porque é que estás ser trazido para Petrogrado? Vens para reprimir os teus camaradas trabalhadores e ajudar a esmagar outros soldados”. E o exército começa a diluir-se.
Nesta altura, Lenine regressou a Moscovo e têm lugar reuniões secretas da liderança do partido, nas quais decidem que “este é o dia, 7 de novembro, em que vamos, de facto, tomar o poder”. As pessoas dizem que se tratou de uma conspiração, mas na verdade, trata-se da mais abertamente proclamada revolução da história mundial. Não houve nenhum segredo. Até quando Lenine estava em minoria, alguém lhe disse no soviete de Petrogrado, que “As pessoas falam em tomar o poder. Há algum partido, nesta assembleia, preparado para tomar o poder, agora?” Este homem calvo e de estatura baixa levanta a mão, é reconhecido, levanta-se e diz: “ Os bolcheviques estão prontos para tomar o poder agora”. Há risos, animação e piadas.
No final de setembro, algo de muito importante acontece. Os bolcheviques tinham a maioria nos sovietes de trabalhadores e soldados, em Moscovo e Petrogrado. Quando Lenine compreende que isto aconteceu e a situação se alterou, decide então que “Ok, o tempo é agora”, e planeiam a tomada do poder, que aconteceu sem qualquer violência.
E aqui é preciso uma nota de rodapé. O grande historiador menchevique N. N. Sukhanov, que escreveu uma dos melhores histórias da revolução – bastante crítica de Lenine, em alguns aspetos, mas uma história incrível –, conta que telefonou à sua esposa, para lhe dizer que estaria atrasado e que esta lhe respondeu dizendo que “Prefiro que não venhas para casa esta noite. Estão aqui muitas pessoas. Fica no escritório esta noite”. No dia seguinte, Sukhanov descobre que a razão por que foi expulso foi a de que o Comité Central bolchevique estava reunido na sua casa, para tomar a decisão de lançar a insurreição.
SW
Trotsky disse uma vez que não só as revoluções são a furiosa inspiração da história, como a revolução é a luta pelo exército, e que o lado que consegue o exército ganha. Todas as guarnições apoiavam os bolcheviques, mas a revolução foi francamente pacífica.
TA
Completamente. Houve muito poucos confrontos armados. O filme de Eisenstein, Outubro [Oktyabr, 1928], exagerou a situação. Ele sentiu que tinha de fazer um filme sobre isso, mas tratou-se de um caso relativamente calmo. Havia uma grande alegria nas ruas.
SW
Qual é o legado da revolução?
TA
Socialismo mais democracia. Esta foi uma revolução socialista feita antes do seu tempo, isolada da Europa pelos massacres na Alemanha dos líderes alemães da classe trabalhadora, Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht, etc. Todos os bolcheviques sabiam que se estivessem isolados, haveria problemas. E claro, houve problemas – tanto internamente, como com as potências internacionais e a ascensão do fascismo na Alemanha.
Tivesse acontecido a revolução na Alemanha, nos anos 20 do século passado, e toda a história da Europa teria sido diferente.
Notas:
O livro de Tariq desvela um Lenine desconhecido, aquele que amava literatura latina e música clássica, aquele que foi profundamente influenciado pelas convulsões políticas do seu tempo, que afetaram intimamente a sua família.
A História encara a figura de Lenine como um ditador cruel e, por isso, poderá ser surpreendente ouvir falar sobre o seu compromisso com a democracia. Nesta entrevista com Suzi Weissman, da Jacobin Radio (link is external), Ali desvenda os mitos e as difamações sobre o papel de Lenine na história, ajuda-nos a analisar as suas ideias e ações, e questiona a sua relevância nos dias de hoje.
SW (Suzi Weissman)
Neste novo livro, apresenta-nos um Lenine que não temos visto habitualmente: o seu amor pela literatura, pelo Latim, pelo xadrez e o impacto da morte do seu irmão.
TA (Tariq Ali)
É o tipo de assuntos dos quais as pessoas não costumam falar, devido a uma série de razões. Um das razões tem a ver com o que a liderança soviética fez a Lenine depois da sua morte. Foi a decisão tomada pelo Politburo de o mumificar, expor o seu corpo ao público, transformá-lo num santo bizantino. Isto é muito uma tradição da Igreja Ortodoxa. Embora muitas pessoas do Politburo não fossem a favor daquilo, não puderam contrariá-lo, porque isso seria tomado como muito sectário. A viúva de Lenine, Nadia Krupskaya, e as suas duas irmãs suplicaram junto da liderança: “Ele teria odiado tal coisa. Ele abominava todo este tipo de deificação. Por favor, enterrem-no debaixo das paredes do Kremlin, onde outros líderes e ativistas foram sepultados. Não lhe façam isto”. Mas eles fizeram-no e isso foi um passo habilidoso. Puderam, assim, usar a figura de Lenine, especialmente nos anos de Estaline, e reconstrui-lo como alguém que ele não foi, forjar fotografias com ele.
Estaline fê-lo, particularmente. Claro que ele privou com Lenine muitas vezes, nas reuniões do Politburo, mas, para mostrar que eram amigos, uma data de fotografias foram falsificadas. Foram produzidas pinturas falsas para demonstrar que havia uma total continuidade entre Lenine, o seu pensamento e o que existiu na União Soviética dos anos 30 do século passado. Dois grupos de pessoas acreditaram ou acreditam nisto: um destes correspondeu à liderança Estalinista na Rússia e o segundo foi o Ocidente. Nisto, os dois grupos tinham uma aliança profana. Os Estalinistas diziam “O que estamos a fazer é uma continuação da obra do camarada Lenine” e o que o Ocidente, os seus líderes e ideologias disseram foi “Sim, Lenine é a base do que está agora a passar-se na União Soviética”. Estes dois estados e aparelhos ideológicos gigantes combinados fizeram com que as pessoas esquecessem quem realmente foi Lenine. Sob tudo isto, permanece um muito diferente líder e teórico político.
SW
Na primeira vez que fui à União Soviética, fiquei surpreendida com as longas filas de espera para ver o seu túmulo. Pensei, na altura, que há-de haver um tempo, na posteridade, para destrinçar quem foi Lenine. Já passou tempo suficiente para podermos trazer à luz este Lenine menos familiar?
TA
Há uma grande dose de hostilidade, claro, no pensamento dominante, mas a malícia já se foi porque a União Soviética já não existe. Eu fiquei, falando francamente, muito satisfeito e também muito surpreendido quando o New York Times me pediu um artigo (link is external) sobre Lenine. Eu defendi efetivamente as minhas ideias tais como as escrevi no livro, e o artigo foi publicado sem qualquer murmúrio.
Espero que tal signifique que uma atenção séria será dada ao seu pensamento e a alguns dos seus escritos-chave. As Teses de Abril, onde ele altera dramaticamente o seu ponto de vista sobre o que é necessário; Estado e Revolução (link is external), onde ele diz “O que nós precisamos é de uma versão da Comuna de Paris”.
Uma das questões-chave da Comuna de Paris foi a das eleições desde a base e em todos os níveis, de tal modo que o grande pintor francês Gustave Courbet organizou os artistas em cada quarteirão de Paris, que elegeram delegados e ficaram responsáveis por decidir sobre qual o aspeto que Paris deveria ter. Foi um processo totalmente democrático. Este é o modelo que Lenine queria. Depois da sua morte, algumas pessoas disseram que “A Guerra Civil foi horrível, mas mesmo durante a guerra nós tínhamos certas liberdades que nos lembravam a Comuna de Paris. Havia um sentimento de igualdade. Todos podiam dizer o que quisessem nas fileiras do exército e do partido. Podíamos discutir com os Comissários, etc.”. Toda esta experiência foi eliminada durante a ditadura de Estaline e isso criou esta opinião de que tudo teve origem com Lenine. O velho, muito velho debate – houve uma total continuidade entre Lenine e o que se seguiu depois ou não houve continuidade de todo? Não podemos dizer uma coisa, nem outra. Eu considero que houve elementos de continuidade. Não o podemos negar, mas mais sobre as decisões tomadas durante as situações de emergência.
A coisa mais emocionante estava a acontecer aquando dos seus últimos escritos, quando ele está numa fúria. Estava a ficar debilitado devido a um ataque de coração. Inesperadamente, vê tudo à distância, pois os médicos não lhe permitiam mais participar nas reuniões do governo ou do partido. Ele olha para o que eles tinham conseguido e diz: “Oh meu deus, isto não está a correr bem”.
O seu grande argumento, no Estado e Revolução, é que uma república socialista tem de destruir todas as remanescências do czarismo, a sua burocracia e o grande chauvinismo russo. Ele diz: “Às vezes, parece-me que, apesar de termos ganho a revolução, a velha burocracia czarista continua no poder, infetando os líderes e os funcionários do aparelho bolchevique, tal como era antes”. Isto choca-o e, por isso, prepara um conjunto de documentos incisivos para tentar alterar a situação, mudando a estrutura do Politburo, atribuindo mais poder à Comissão de Controlo, dizendo que Estaline deveria ser destituído do cargo de secretário-geral do partido, dizendo o que correu mal e porquê. Isto é o que nós, muitos de nós, temos dito durante anos. O Socialismo, considerando o quando e onde aconteceu, é sempre uma aproximação. Não podemos dizer: “Isto é o Socialismo”. Estamos a lutar nessa direção. Lenine escreve isto prontamente.
SW
No livro, descreve quando o velho anarquista, o Príncipe Kropotkine, conheceu Lenine, aquando do seu regresso à então União Soviética. Os anarquistas estavam prestes a ser expulsos, mas ele veio até Moscovo e encontrou-se com ele, em maio de 1919, e queixou-se da burocracia. Lenine respondeu que “Nós somos sempre contra o funcionalismo, em qualquer parte”.
TA
Ele era muito próximo de Kropotkine e muito próximo de alguns militantes e ativistas anarquistas. Como poderia não ser? Eles dominaram a política russa durante todo o século XIX. Não foi o Marxismo que foi dominante. Foi o anarquismo. Esta era a ideologia de que a juventude gostava. Eram as ideias de Kropotkine e de Bakunine, as quais adotaram e por elas foram guiados até uma forma de anarco-terrorismo, porque eles alegavam que “Nada foi deixado para nós fazermos”.
Nalguma correspondência entre Karl Marx e russos como Chernyshevsky e, claro, nas conversas com Bakunine, ele diz: “Eu oponho-me completamente ao terrorismo em geral, porque isso é uma distração em relação à construção de partidos e movimentos de massas, e à conquista da maioria da classe trabalhadora”. “Porém, no caso russo”, salienta Marx, “há um argumento, uma vez que tudo está bloqueado. Quando os jovens dizem que 'a única forma de desbloqueio é fazer explodir os opressores', eu compreendo isso. Não se pode construir uma estratégia à volta disso, mas eu compreendo-o”.
Muitas das mulheres que se tornaram ativas naquela altura eram de classe-média, com uma educação cuidada, ou no caso de Sophia Perovskaya – que fez explodir um dos czares – ela era mesmo a filha de um governador-geral de São Petersburgo. Estes burocratas seniores sabiam exatamente onde ia o czar, quando ele ia e onde ele andava, por isso, ela organizou tudo. Ela foi a principal organizadora e obviamente foi enforcada por isso – foi a primeira mulher a ser executada pela autocracia czarista.
Lenine conhecia isto. Cresceu neste contexto. O seu irmão cometeu o erro de se envolver num pequeníssimo grupo anarquista quando o anarquismo estava, ele próprio, em colapso. Ele apenas escreveu os panfletos e o procurador, no tribunal, disse-lhe: “Aleksandr Ulyanov, nós sabemos o que você fez”. O irmão de Lenine respondeu: “Sim, vocês sabem que eu escrevi os panfletos, mas eu assumo inteira responsabilidade por toda a ação”. Houve nobreza naquele gesto. Ele não precisava de o ter feito, ele não fez aquilo, ele poderia ter recebido apenas a pena de prisão. Lenine, tendo crescido neste meio, conhecia tudo, e uma das primeiras coisas que fez foi encontrar-se e ver vários destes anarquistas e velhos militantes anarquistas. Krupskaya escreve de modo bastante abrangente em Memories of Lenin (link is external) [Memórias de Lenine]: “Nós nunca visitámos uma cidade sem que Lenine dissesse 'Ok, eu agora tenho de ir ver A, B, C, D, E, porque eles ainda estão vivos'”. Estes eram sempre antigos militantes anarquistas, de tal modo que este hábito permaneceu nele.
SW
As anteriores táticas que Lenine veio a recusar mais tarde – a tática do uso do terror – desencadearam uma discussão por todo o mundo. Aqui, nos EUA, Eugene Debs e Big Bill Haywood ponderaram sobre isso e falaram sobre como o uso da ação direta é aceite, embora esta tenha de ser realizada pelo movimento dos trabalhadores.
TA
Verdade.
SW
Esta é a posição que Lenine também adotou mais tarde. Por que é que a Comuna de Paris significava tanto para ele?
TA
A Comuna de Paris surgiu, essencialmente, a partir da derrota sofrida pela classe dominante francesa, colocada nas mãos dos prussianos e dos alemães, tal como aconteceu em muitas outras revoluções na história. Napoleão III cometeu um enorme erro ao provocar os alemães e Bismarck e o seu gangue estavam à espera. Depois desta derrota infligida no exército francês, eles refugiaram-se em Versalhes. Os parisienses, especialmente, os trabalhadores, os artesãos e os intelectuais, disseram então: “Nós não aceitamos esta rendição, deixem-nos libertar Paris, sustentá-la e lutar contra os prussianos. Nós não queremos ser ocupados nem por Napoleão, nem pelos prussianos”.
Aqui, podemos ver ecos da posição de Lenine durante a I Guerra Mundial: “Nós não apoiaremos nenhum dos lados. Tivemos um primeiro vislumbre disto na Comuna de Paris e eles assumiram-no. Derrotaram os exércitos reacionários reunidos em Versalhes e, assim, tivemos o primeiro despontar daquilo a que podemos chamar de democracia popular e dos trabalhadores”.
Nem todos os participantes da Comuna eram trabalhadores. Havia muitos cidadãos envolvidos que eram pequenos artesãos, em pequenas oficinas, artistas, escritores. Rimbaud, por exemplo, escreveu um poema descrevendo a passagem pela Comuna de Paris que é incrivelmente emocionante. Então, a Comuna de Paris eletrificou toda a gente, ao dizerem: “Nós vamos eleger os nossos representantes desde a base”, porque a democracia nunca existiu em tempo algum. A Alemanha era, provavelmente, a mais avançada, mas, também aqui, uma poderosa lei de emergência foi posta em marcha para manter os sociais-democratas à distância. Esta democracia de base entusiasmou toda a gente, estes representantes foram para a assembleia local e para a sua assembleia-geral de Paris, fazendo com que as suas vozes fossem ouvidas.
O Consenso de Viena, em 1815, não foi tão dissemelhante do Consenso de Washington dos anos 90 do século passado, onde disseram: “Temos de nos certificar de que seja onde for que a revolução surja, onde quer que se desenvolvam forças da oposição, elas são esmagadas imediatamente. Não podemos correr esses riscos”.
Depois, 1848 irrompeu com revoluções e demandas de autodeterminação nacionais por toda a Europa, e depois deu-se a eclosão da Comuna de Paris. Isto estava muito perto dos corações e das mentes dos revolucionários, por todo o mundo. A mensagem chegou tão longe quanto as Filipinas: “Vejam o que está a acontecer em Paris. Vejam o que está a ser dito ou que eles estão a fazer”. De 1871 em diante, assistimos ao desenvolvimento de uma corrente que era proto-marxista. Karl Marx apoiou completamente a Comuna, mas sentiu que muitos erros táticos foram cometidos devido à inexperiência que poderia ter sido interrompida. Aqueles que tentam diferenciar Lenine de Marx descobrirão que, afinal, o que Marx disse da Comuna de Paris foi muito similar ao que Lenine viria a dizer mais tarde.
Um outro aspeto sobre Lenine e o estado que iria ser criado em 1917 é que toda a aliança do Ocidente – as potências da Entente1, os EUA – consistia em pessoas que acabariam por vir a governar os serviços de informação americanos nos anos vindouros. John Foster Dulles e Alan Dulles, quando tinham vinte e pouco anos, estavam presentes na reunião marcada para se decidir como derrotar a Revolução Russa. A Inglaterra foi envolvida. Outras potências europeias foram envolvidas. Vinte e dois exércitos preparados pelas grandes potências da aliança do Ocidente estavam a tentar derrotar os russos. Isso deixou uma profunda marca na revolução.
Precisamos de compreender a política. Lenine, a sua geração, e Marx, todos estes eram seres políticos. Tinham o entendimento de que sem política, nada poderia avançar. Neste sentido, Lenine foi claramente um génio, tal como até os seus inimigos o reconhecem. Sendo absolutamente claro como cristal, não mascarando as derrotas como vitórias, mas argumentando que as vitórias poderiam ser possíveis se fizéssemos A, B e C.
SW
A Revolução de Outubro foi espontânea, com uma torrente de trabalhadores nas ruas. Derrubaram o czar, mas como houve indecisão, os sovietes não reclamaram o seu poder e, em vez disso, um fraco governo provisório chegou ao governo. Foi um tempo de liberdade, contudo, a revolução não estava ainda terminada. O que aconteceu quando Lenine voltou do exílio e desembarcou na estação Finlândia [em São Petersburgo]?
TA
Quando Lenine chegou, os sovietes estavam a ser reunidos. Alguns existiam. Não por todo o país, mas nos principais centros, era este o modelo. Não havia parlamento. A Duma não era de todo respeitada, por causa da experiência de 1905 – um ensaio-gera da revolução, como Lenine lhe chamou -, quando os sovietes surgiram espontaneamente e, nestes, nenhum dos partidos era suficientemente forte. Estes sovietes eram genuinamente espontâneos e libertadores. Muitos consideravam que aquilo deveria ser o modelo da democracia – uma democracia soviética – que tinha um significado muito diferente daquele que depois veio a adquirir.
Quando Lenine chega, é saudado por uma delegação oficial do soviete, liderada pelos partidos liberais e moderados e, efetivamente, Chkheidze, um menchevique de direita, afirma: “Nós damos-te as boas-vindas, camarada Lenine, em nome do Soviete de Petrogrado, mas instamos-te a compreender que esta é uma revolução muito alargada e que tens de te unir com todos para que o movimento avance”. Lenine dá-lhe um aperto de mãos, de modo indiferente, e depois avança para cumprimentar os delegados dos trabalhadores e dos soldados. E profere: “Nós temos de fazer uma revolução e esta revolução tem de ser socialista. Temos de pôr fim à guerra e ir em busca de terra, paz e pão”. Este é um dos velhos slogans de Lenine, um dos mais batidos. Debaixo de cada palavra, terra, paz e pão, há um pilar de ferro, que é a política estratégica e tática dos bolcheviques. Isso é o que enquadra estes pilares e estes são slogans muitos populares.
Os funcionários lamentam. Pensam algo como “Meu deus, nada muda, o tipo está igual, não mudou”, porque alguns bolcheviques levaram-nos a entender que estavam todos juntos agora e que nada mais iria acontecer. Lenine compreendeu que, se perdessem aquele momento, não haveria revolução, até porque estes farsantes que estavam no poder recusavam-se a tirar a Rússia da guerra, algo que correspondia a uma exigência muitíssimo popular. Eles não podiam ou não tinham poder para transformar a situação social.
SW
É aqui que Victor Serge (link is external) diz que Lenine foi um revolucionário na altura da revolução e isso define um líder. Ele compreendeu o momento, viu o que este implicava, agarrou-o e fê-lo avançar.
TA
Exatamente. Lenine escreveu o rascunho das Teses de Abril. Não devemos mistificar demasiado isto, ele gostava de escrever sob a forma de teses. Estas eram condensadas e muito claras. Não havia palavras a mais nas teses, apenas o mapeamento e a enunciação do que era necessário fazer. Lenine disse que os proletários tinham de tomar o poder. A ortodoxia dizia que apenas nos era permitido ter, naquele momento, uma revolução democrática burguesa. Isto significava que nós não deveríamos participar nela, porque éramos contra a burguesia. Deixem-nos fazer a revolução e nós esperaremos, e quando eles a tiverem alcançado e desenvolvido, aí, sairemos para fazer uma revolução socialista diferente. Lenine disse que isto era “um completo e absoluto absurdo”.
As semanas foram passando e duas coisas tornaram-se óbvias. As ideias de Lenine eram extremamente populares nas fábricas, não apenas nas fábricas de Putilov, mas também num considerável número de unidades fabris subsidiárias, nos arredores de Petrogrado. As suas ideias eram também muito populares entre as mulheres, as trabalhadoras e as confinadas ao espaço da casa. Fazendo com que isto fosse percebido no seu próprio partido, Lenine persuadiu primeiramente as bases bolcheviques. A classe trabalhadora está à frente do partido, depois as bases estão à frente da liderança partidária e, por fim, Lenine dirige-se finalmente aos dirigentes do partido, dizendo: “Ok, o que vamos fazer?” Por esta altura, muitos concordavam que as Teses de Abril tinham de ser adotadas e, por isso, quando Lenine os abordou pela primeira vez, comentaram que “Lenine enlouqueceu. O que é que se passa?”
Acima de tudo, a adoção das Teses de Abril abriu a porta a Trotsky e ao seu pequeno grupo de intelectuais extremamente dotados, que andavam a discutir estes temas entre si desde há anos, para entrarem e se juntarem ao Partido Bolchevique – consequente, isso reforçou a cultura intelectual dos bolcheviques, que não estava no seu mais alto nível.
SW
Falemos, então, do período entre abril e outubro e sobre o entusiasmo da revolução.
TA
Trata-se de altos e baixos. A certa altura, em julho de 1917, os trabalhadores – ou a secção mais militante dos trabalhadores, não organizados em nenhum partido, embora muitos fossem simpatizantes bolcheviques – decidem que “Basta, nós temos de assumir o poder agora”. Lenine, que na altura conhecia extremamente bem a situação, estava convicto de que isso seria prematuro, porque ainda não tinham a maioria nos sovietes mais importantes e, por isso, tenta conter a situação. Porém, assim que os trabalhadores saem à rua, os bolcheviques saem com eles. Não havia razão para ficar em casa ou para a passividade, e isto é depois esmagado.
Depois, segue-se uma resposta contra-revolucionária. Trotsky é preso. Outros líderes bolcheviques são apanhados. Lenine é forçado a partir para o exílio, pelo próprio partido, disfarçado como ferroviário e usando uma peruca (que lhe ficava muito bem, já agora). Ele atravessa a fronteira e a partir daí passa a bombear a liderança, dizendo que “Isto é um revés temporário. Nada de fundamental se alterou”.
Em setembro, a frente de guerra está totalmente a desintegrar-se, há motins, deserções em larga escala e os camponeses de uniforme regressam a casa – e regressam muito vulneráveis à agitação bolchevique. É a política de agitação bolchevique que os vai convencer. Para Kornilov e os generais da direita tornou-se muito difícil confiar nos seus soldados para executarem os massacres. Quando as tropas de Kornilov marcham em direção a Petrogrado para bater em toda a gente e tomar o poder ao estilo de Pinochet, os agitadores bolcheviques saem à rua e avisam: “Olha, sabes porque é que estás ser trazido para Petrogrado? Vens para reprimir os teus camaradas trabalhadores e ajudar a esmagar outros soldados”. E o exército começa a diluir-se.
Nesta altura, Lenine regressou a Moscovo e têm lugar reuniões secretas da liderança do partido, nas quais decidem que “este é o dia, 7 de novembro, em que vamos, de facto, tomar o poder”. As pessoas dizem que se tratou de uma conspiração, mas na verdade, trata-se da mais abertamente proclamada revolução da história mundial. Não houve nenhum segredo. Até quando Lenine estava em minoria, alguém lhe disse no soviete de Petrogrado, que “As pessoas falam em tomar o poder. Há algum partido, nesta assembleia, preparado para tomar o poder, agora?” Este homem calvo e de estatura baixa levanta a mão, é reconhecido, levanta-se e diz: “ Os bolcheviques estão prontos para tomar o poder agora”. Há risos, animação e piadas.
No final de setembro, algo de muito importante acontece. Os bolcheviques tinham a maioria nos sovietes de trabalhadores e soldados, em Moscovo e Petrogrado. Quando Lenine compreende que isto aconteceu e a situação se alterou, decide então que “Ok, o tempo é agora”, e planeiam a tomada do poder, que aconteceu sem qualquer violência.
E aqui é preciso uma nota de rodapé. O grande historiador menchevique N. N. Sukhanov, que escreveu uma dos melhores histórias da revolução – bastante crítica de Lenine, em alguns aspetos, mas uma história incrível –, conta que telefonou à sua esposa, para lhe dizer que estaria atrasado e que esta lhe respondeu dizendo que “Prefiro que não venhas para casa esta noite. Estão aqui muitas pessoas. Fica no escritório esta noite”. No dia seguinte, Sukhanov descobre que a razão por que foi expulso foi a de que o Comité Central bolchevique estava reunido na sua casa, para tomar a decisão de lançar a insurreição.
SW
Trotsky disse uma vez que não só as revoluções são a furiosa inspiração da história, como a revolução é a luta pelo exército, e que o lado que consegue o exército ganha. Todas as guarnições apoiavam os bolcheviques, mas a revolução foi francamente pacífica.
TA
Completamente. Houve muito poucos confrontos armados. O filme de Eisenstein, Outubro [Oktyabr, 1928], exagerou a situação. Ele sentiu que tinha de fazer um filme sobre isso, mas tratou-se de um caso relativamente calmo. Havia uma grande alegria nas ruas.
SW
Qual é o legado da revolução?
TA
Socialismo mais democracia. Esta foi uma revolução socialista feita antes do seu tempo, isolada da Europa pelos massacres na Alemanha dos líderes alemães da classe trabalhadora, Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht, etc. Todos os bolcheviques sabiam que se estivessem isolados, haveria problemas. E claro, houve problemas – tanto internamente, como com as potências internacionais e a ascensão do fascismo na Alemanha.
Tivesse acontecido a revolução na Alemanha, nos anos 20 do século passado, e toda a história da Europa teria sido diferente.
Notas:
1NdT: referência à Tríplice Aliança, entre a França, o Reino Unido e a Rússia czarista, aquando da I Grande Guerra.
Entrevista publicada em jacobinmag.com (link is external), 25.05.2017.
Tradução de Sofia Roque para o Esquerda.net.
Entrevista publicada em jacobinmag.com (link is external), 25.05.2017.
Tradução de Sofia Roque para o Esquerda.net.
Termos relacionados Cem anos da Revolução Russa, Política