Por
Aldemario Araujo Castro*

Uma das mais obscuras consequências
dessa discussão está presente numa proposição aprovada pela
Assembleia Legislativa do Espírito Santo. “Um projeto de
lei que proíbe pornografia e nudez em exposições
artísticas e culturais em espaços públicos no Espírito
Santo foi aprovado pela Assembleia Legislativa. A votação
aconteceu em regime de urgência, na tarde desta
segunda-feira (23)./O texto foi elaborado pelo deputado
estadual Euclério Sampaio (PDT). Como justificativa, o
deputado afirma, no próprio PL, que o objetivo é 'a
promoção do bem-estar das famílias', evitando
constrangimento aos cidadãos./'Não se trata de punir
manifestações quaisquer, senão as de natureza sexual que
possam causar constrangimento aos cidadãos de diversas
idades, crenças e costumes', escreveu./No PL, o teor
pornográfico em exposições é descrito como 'expressões
artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos,
desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato
sexual e a nudez humana'” (https://goo.gl/ZyCHAA).
O primeiro elemento a ser considerado
no tratamento jurídico desse tema é a regra do artigo
quinto, inciso nono, da Constituição. O enunciado normativo,
ao declarar um importante direito fundamental, possui o
seguinte formato: “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”. Decorrem do
aludido comando constitucional uma série de consequências.
A primeira das consequências do
dispositivo constitucional destacado aponta para a
impossibilidade jurídica, corroborando a impossibilidade
fática, de alguém, na estrutura do Estado (uma autoridade)
ou fora dela (um cidadão), definir o que é a arte no lugar
do artista. O mais rasteiro sentido da palavra “livre”,
potencializado como direito fundamental, impõe a ausência da
interferência de terceiros no processo de criação artística.
Nesse sentido, a arte como processo de afirmação de
identidade, de pensamentos e de socialização integra, em
lugar nobre e de destaque, a realização da dignidade da
pessoa humana, objetivo maior da ordem jurídica
(expressamente inscrita no artigo primeiro da Constituição).
A segunda das consequências da
previsão constitucional referida aponta para a ampla
possibilidade de divulgação da produção artística. O comando
normativo afirma a liberdade de expressar a atividade no
campo das artes. Assim, na mesma linha da consideração
anterior, um terceiro, na estrutura do Estado (uma
autoridade) ou fora dela (um cidadão), não reúne condições,
a princípio, de obstar, impedir ou reclamar autorização
prévia para a manifestação artística. A parte final do
dispositivo, quando afasta a censura ou a necessidade de
licença, confirmam a amplitude do direito de divulgar a
criação artística.
Embora amplo, bem amplo, o direito
fundamental relacionado com a manifestação da atividade
artística não é absoluto. Aliás, nenhum direito é absoluto,
conforme lição comezinha observada na Teoria Geral dos
Direitos Humanos. Com efeito, a existência de outros
direitos e a pluralidade político-social interferem na
extensão do exercício do direito em questão. Importa, assim,
ainda que sumariamente, por conta dos limites deste escrito,
precisar os contornos ou as fronteiras do importante direito
relacionado com a manifestação da criação artística.
Os possíveis condicionamentos ao
amplo (mas não absoluto) direito de livre manifestação
artística devem ser cuidadosamente encontradas nas normas
(regras e princípios) e valores albergados na mesma
Constituição que consagrou, corretamente, o direito de forma
muito generosa. Nesse sentido, o disposto no art. 220 do
Texto Maior precisa ser considerado. Esse comando está
vazado nos seguintes termos: “A manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição./§1º
Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir
embaraço à plena liberdade de informação jornalística em
qualquer veículo de comunicação social, observado o
disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV./§2º É vedada
toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística./§3º Compete à lei federal: I - regular as
diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público
informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que
não se recomendem, locais e horários em que sua
apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os
meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou
programações de rádio e televisão que contrariem o
disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos,
práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao
meio ambiente”. Na linha posta por esse dispositivo
constitucional, foram editadas a Lei n. 8.069, de 1990 (art.
74 e seguintes), a Lei n. 10.359, de 2001 (artigo terceiro)
e a Lei n. 12.485, e 2011 (art. 11).
Portanto, é perfeitamente cabível,
até mesmo necessário, implementar a indicação informativa em
relação às manifestações artísticas que possar causar algum
tipo de constrangimento de cunho religioso ou alcançar
crianças e adolescentes (em processo de construção da
personalidade). É sempre importante frisar que cautelas de
aviso ou eventual restrição de acesso não se confundem com
censura ou proibição, claramente afastadas pela
Constituição.
No limite extremo, mediante
intervenção judicial, seria possível a interdição de
manifestações artísticas. Para tanto, uma análise cuidada de
todo o contexto envolvido precisaria identificar uma
inequívoca promoção de valores recusados claramente pelo
constituinte. Não seria aceitável a expressão artística
voltada para a promoção de discriminações (de raça, gênero,
orientação sexual, etc), da violência e da criminalidade de
forma geral. Não se trata, aqui, de repudiar a mera presença
de elementos dessas temáticas. Trata-se de identificar casos
raros e extremos de veiculações culturais que, por todo o
contexto analisado, possuem a finalidade precípua de
promover valores incompatíveis com aqueles consagrados na
Constituição.
Deve ser sublinhado que a utilização
da nudez, da sexualidade, da violência e mesmo de elementos
ligados às religiões não são motivos suficientes, tomados de
forma isolada, para definição de condicionamentos ou
limitações. Com efeito, a produção artística da humanidade
ao longo dos séculos está recheada de exemplos de usos
desses temas de todas as formas possíveis (provocativa,
ingênua, explícita, velada, com extremo mau gosto, com
leveza, etc). Ademais, são incontáveis, nos museus dos
quatro cantos do mundo, as peças, de várias naturezas, que
exploram essas temáticas.
Um dos aspectos mais insólitos do
debate em curso acerca da liberdade de manifestação
artística é o enquadramento do mesmo como um embate entre o
pensamento político de esquerda e o de direita. Nada pode
ser mais inusitado e equivocado. O direito à liberdade de
veiculação da produção artística é um desdobramento da
liberdade de manifestação do pensamento. Tratam-se de
direitos claramente de índole liberal. A Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, veiculada pela Revolução
Francesa de 1789, proclamava (artigo 11): “A livre
comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem”.
Também deve ser anotada a existência
de uma boa dose de hipocrisia na atuação dos atuais
“moralistas” (ou “guardiões da moralidade da família
brasileira”, como provavelmente alguns querem ser
conhecidos). A salutar liberalização dos costumes nas
últimas décadas, fenômeno de âmbito mundial, tem viabilizado
o crescente contato do público em geral, pelos mais variados
meios, com intensas manifestações relacionadas com a nudez e
a sexualidade. Aliás, ao longo dos séculos, a história da
humanidade está marcada por milhares de registros artísticos
nessas áreas, como antes anotado. Claro que cabe um debate
sereno e responsável acerca da fixação de indicações
classificatórias em veiculações de conteúdos dessas
naturezas em meios de comunicação de massa ou espaços
abertos ao público. Não deve ser confundida, entretanto,
essa discussão construtiva com a sanha moralista,
proibicionista e hipócrita de grupos e setores movidos pela
uma lógica quase medieval.
O debate em torno das manifestações
artísticas também é alimentado por interesses
político-ideológicos bem definidos. Certos setores e grupos
da sociedade brasileira perseguem dois claros objetivos com
as iniciativas referidas. Em primeiro lugar, buscam desviar
a atenção de largos setores da sociedade para longe do mar
de lama comprometedor do atual Presidente da República,
vários de seus ministros e boa parte de sua base de
sustentação político-parlamentar. Em segundo lugar, procuram
capitanear e capitalizar uma disputa em torno de valores e
costumes no seio da sociedade. Nessa última perspectiva, se
apresentam como defensores do que existe de mais atrasado e
retrógrado no convívio humano, falsamente rotulados como
valores “da família” ou das pessoas “de bem”.
*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional e Professor da Universidade Católica de Brasíli