Da
Auditoria Cidadã da Dívida
Por Maria
Lucia Fattorelli — Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina.
Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo
Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na
Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico,
deputada Zoe Konstantopoulos para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da
Grécia a partir de abril/2015.
No apagar das luzes de 2015, a presidenta Dilma editou o
Decreto no 8.616 , que regulamenta a modificação dos termos dos contratos de
refinanciamento de dívidas de estados e municípios que havia sido aprovada pela
Lei Complementar 148, de 2014 .
Essa regulamentação era esperada desde 2014, quando a
referida Lei Complementar foi sancionada. Entretanto, na tarde de 24 de março
de 2015, a presidenta declarou que não iria cumprir a Lei Complementar no
148/2014.
Depois de vários meses, surge, finalmente, a
regulamentação. Mas em que termos? Trazendo uma série de condições e exigências
que vão muito além do texto da Lei Complementar que pretendia regulamentar
pífias modificações que simplesmente trocam o índice de atualização (de IGP-DI
para IPCA), e reduz a taxa de juros reais (que variava de 6% a 9% para 4% ao
ano). Tais modificações não irão valer a partir da vigência da Lei Complementar
no 148/2014, mas somente a partir da assinatura de aditivos contratuais que
desrespeitam o Federalismo.
A exigência mais violenta, por sua gritante
inconstitucionalidade, requer que, previamente à obtenção do insignificante
desconto nas condições financeiras do contrato, o ente federado abra mão de
qualquer questionamento jurídico sobre a dívida ou o contrato de
refinanciamento, renunciando expressamente a qualquer ilegalidade em relação
aos mesmos!
Tamanho abuso consta do art. 2o, inciso II, do referido
Decreto 8.616:
II – desistência expressa e irrevogável de ação judicial
que tenha por objeto a dívida ou o contrato com a União sobre o qual incidam as
condições previstas nos arts. 2º a 4º da Lei Complementar nº 148, de 2014, e
renúncia a quaisquer alegações de direito relativas à referida dívida ou
contrato sobre as quais se funda a ação;
Quem já visitou outros contratos de dívida externa,
celebrados na década de 1980 sob o cabresto do FMI, reconhecerá logo os termos
de referido dispositivo. O brilhante relatório do então Senador Severo Gomes
tratou de semelhante cláusula de renúncia à nulidade, entre outros aspectos
jurídicos que merecem ser revisitados .
A razão para essa absurda exigência se deve ao fato de a
dívida e os contratos dos entes federados se encontrarem inflados por
ilegalidades e ilegitimidades desde a origem dos convênios firmados com base na
Lei 9.496/97, cuja gênese está expressa em Carta de Intenções de dezembro/1991
com o FMI, itens 24 e 26 . Dentre as ilegalidades dessas renegociações cabe
destacar:
• Desrespeito ao Federalismo: A exagerada remuneração
nominal estabelecida na Lei 9.496/97 impôs ônus excessivo aos Estados e
Municípios. Em 2010, por exemplo, entes federados pagaram cerca de 20% de
remuneração à União, enquanto esta emprestou aos Estados Unidos da América do
Norte a taxa inferior a 1% e o BNDES emprestou a empresas privadas a taxas
inferiores a 6% ao ano;
• Desrespeito à Sociedade: Da mesma forma que não cabe a
cobrança de tributos entre os entes federados (Constituição Federal, art. 150,
VI, “a”), pois estes recairiam sobre o cidadão que ao mesmo tempo vive em um
município, num estado e no país, o ônus excessivo recai sobre o cidadão
brasileiro, e sem contrapartida alguma, pois a mesma Lei 9.496 determinou que
os valores recebidos dos Estados e Municípios se destinam obrigatoriamente ao
pagamento da dívida pública federal;
• Cobrança de juros sobre juros: a elevada exigência de
remuneração tem transformado parcela de juros em nova dívida, sobre a qual
passa a incidir o anatocismo, ilegal conforme súmula 121 do STF, de 1963, que
assim se pronunciou: “É vedada a capitalização de juros, ainda que
expressamente convencionada”.
• Capitalização mensal de juros: A Lei da Usura (Decreto
nº 22.626/1933), vigente, estabeleceu: “Art. 4º – É proibido contar juros dos
juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos
líquidos em conta-corrente de ano a ano”.
Dessa forma, juros vencidos e não pagos deveriam ser
computados à parte, mas sobre estes não poderiam incidir novos juros, em
obediência à Súmula 121 do STF.
O texto do Decreto 22.626/33 aponta para mais uma questão
relevante: os juros somente poderiam ser acumulados em conta-corrente ao final
de cada ano e não mensalmente.
• Cobrança de juros superiores aos autorizados pelo
Senado: Na prática, os juros que estão sendo pagos pelos entes federados têm
sido superiores aos autorizados em Resoluções do Senado Federal. No caso de
Minas Gerais, por exemplo, em vez dos 7,5% a.a. autorizados pelo Senado, foram
pagos 7,763%, o que significou erro nos cálculos superior a R$ 2 bilhões no
período analisado. No caso do Rio de Janeiro, em vez de 6%, foram pagos 6,17% a
cada ano.
• Exigência de robustas garantias: O pagamento das dívidas
dos entes federados tem como garantia as transferências constitucionais
obrigatórias devidas pela União, o que significa que o risco de inadimplência é
nulo, não justificando cobrança de remuneração tão abusiva;
• Desequilíbrio entre as partes: Estados e Municípios
haviam sido impedidos de acessar outros créditos com entidades federais
(Decreto nº 2.372/97) e foram forçados a aderir às condições da Lei 9.496 para
refinanciar dívidas anteriores em condições ainda mais onerosas, além de
submeterem a amplo programa de privatizações e ajuste fiscal.
• Desconsideração do valor de mercado dos títulos
estaduais e municipais: A União não considerou o baixo valor de mercado da
dívida mobiliária estadual e municipal, tendo refinanciado tais dívidas a 100%
de seu valor nominal, o que representou inaceitável transferência de recursos
públicos para o setor financeiro privado. Também foram ignoradas as práticas
fraudulentas denunciadas pela CPI dos Títulos Públicos (conhecida como CPI dos
Precatórios).
• Assunção de dívidas privadas representadas por passivo
de bancos estaduais no esquema PROES: Passivos dos bancos estaduais
privatizados (ou não) foram transferidos para os respectivos estados e foram
refinanciados em conjunto com as dívidas de cada estado, onerando indevidamente
as finanças estaduais;
• Desconsideração dos antecedentes: Não foram considerados
os impactos da política monetária federal, principalmente no início dos anos
90, que provocou crescimento astronômico da dívida dos Estados antes da
negociação, evidenciando co-responsabilidade da União;
• Adoção do IGP-DI: A adoção do índice (IGP-DI) calculado
por uma instituição privada (IBRE/FGV) provocou crescimento da dívida dos entes
federados de forma injustificada;
• Ausência de cláusula do equilíbrio econômico-financeiro
do contrato: ao contrário do que faz nos contratos administrativos de longo
prazo, a União não estabeleceu tal cláusula para proteger os entes federados;
• Condições diferentes para cada Estado: a taxa de juros
reais variou de 6% a 7,5%, e o comprometimento da receita dos Estados variou de
11,5% a 15%.
Os contratos de refinanciamento de dívidas de Municípios
se deram com base na Medida Provisória no 1.811/99 , que segue a mesma lógica.
O recente Decreto 8.616, de 29/12/2015, engessa e cala
estados e municípios, impedindo-os de arguir os aspectos acima elencados, ou
quaisquer outras ilegalidades embutidas nas dívidas ou nos contratos dos entes
federados!
Tais refinanciamentos vêm absorvendo grande parte dos
recursos dos orçamentos estaduais e municipais, afetando a vida de toda a
sociedade que paga a conta, tanto por meio dos elevados tributos, como por meio
dos serviços públicos que deixa de receber. Apesar de pagar a conta, a
sociedade não sabe que dívidas são essas; como foram contraídas; onde foram
aplicados os recursos; quem se beneficiou dos empréstimos; qual a natureza dos
passivos dos bancos estaduais privatizados que foram transformados em dívida do
estado, etc.
Estados e diversos municípios brasileiros amargam sérias
dificuldades para continuar cumprindo as onerosas condições impostas pela União
desde o final da década de 1990, que fizeram com que as dívidas se
multiplicassem e se transformassem em uma bola de neve.
Para se ter uma ideia, o município de São Paulo
refinanciou uma dívida de R$11 bilhões no ano 2.000. Em 2013 essa dívida
alcançou o patamar de R$ 58 bilhões, apesar de o município ter pago R$28
bilhões para a União no período. A conta não fecha, os números não batem, pois
entram em ação os perversos mecanismos de atualização monetária mensal
cumulativa calculada com base em um dos índices mais onerosos, o IGP-DI,
calculado pela a FGV – instituição privada.
Em cima dessa correção mensal, ainda incidem os elevados
juros, a cada mês. E essa onerosidade de condições não é o único problema dos
paulistanos. Recaem, sobre a origem da dívida que foi refinanciada, diversas
denúncias de fraude comprovadas até por Comissões Parlamentares de Inquérito.
Resultado: a maior cidade da América Latina não tem recursos para uma série de
investimentos essenciais à população, mas vem pagando religiosamente essa
dívida eivada de fraudes, ilegalidades e ilegitimidades. E de acordo com o novo
decreto 8.616, não poderá mais questionar nada disso.
A situação de diversos entes federados ficou tão onerosa
que alguns preferiram buscar recursos no exterior, endividando-se junto a
bancos privados internacionais e Banco Mundial, para pagar à União. Uma
verdadeira aberração! E mais: diante da expressiva alta do dólar, os entes
federados que adotaram essa alternativa esdrúxula se deparam com dificuldades
ainda mais graves.
Nesse imbróglio, pressionados pela própria União, temos
detectado a adoção de esquema ilegal que irá gerar ainda mais dívida para
estados e municípios. Trata-se de sofisticado arranjo que vem sendo implementado
por diversos entes federados, por meio da criação de empresa independente,
sociedade anônima, que passa a gerenciar ativos públicos e emitir debentures
que, na prática, constituem obrigação de mesma natureza de dívida pública, já
que conta com a garantia dos respectivos entes públicos. Tal mecanismo
inconstitucional beneficia principalmente ao setor financeiro privado,
disfarçando a geração de dívida pública e comprometendo seriamente as finanças
públicas e a população, tanto a geração atual como as futuras.
Tanto esse recente esquema como as dívidas refinanciadas
anteriormente fazem parte do que denominamos Sistema da Dívida, ou seja, a
utilização do instrumento do endividamento público para transferir recursos
públicos para o setor financeiro privado.
Desde a aprovação da Lei 9.496/97e da edição da MP 1.811/99, todos os pagamentos de dívidas por parte de estados e municípios à União são destinados por esta ao pagamento da dívida federal, conforme dispositivos idênticos que constam dos respectivos atos legais .
Desde a aprovação da Lei 9.496/97e da edição da MP 1.811/99, todos os pagamentos de dívidas por parte de estados e municípios à União são destinados por esta ao pagamento da dívida federal, conforme dispositivos idênticos que constam dos respectivos atos legais .
Não há saída sem o enfrentamento do Sistema da Dívida,
como afirmamos em recente carta aberta endereçada aos governadores, comentada
pelo ilustre professor Adriano Benayon . A ferramenta que joga luz sobre esse
processo e revela a verdade é a AUDITORIA.