Sexta, 11 de dezembro de 2015
Do MPF
Depois
de extensa investigação, procuradores concluem que o projeto de desenvolvimento
do governo brasileiro promove a destruição da organização social, costumes,
línguas e tradições de povos indígenas
O Ministério Público Federal iniciou processo judicial na
Justiça Federal em Altamira (PA) em que busca o reconhecimento de que a
implantação de Belo Monte constitui uma ação etnocida do Estado brasileiro e da
concessionária Norte Energia, “evidenciada pela destruição da organização
social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados”. A ação
etnocida comprovada por longa investigação do MPF acaba por ser potencializada
com a recente permissão de operação, por conta do descumprimento deliberado e
agora acumulado das obrigações de todas as licenças ambientais que a usina
obteve do governo.
Por isso, a ação do MPF pede também a decretação de
intervenção judicial imediata, por meio de uma comissão externa, sobre o Plano
Básico Ambiental do Componente Indígena de Belo Monte, o chamado PBA-CI, ou
Programa Médio Xingu, que foi aprovado pelos órgãos licenciadores mas está
sendo implementado de maneira totalmente irregular pela Norte Energia. A
intervenção, de acordo com a proposta do MPF, promoveria a readequação dos
programas e funcionaria como uma auditoria externa independente para garantir a
transição da situação atual, de ilegalidade e ação etnocida (onde deveria haver
mitigação e compensação), para uma situação em que o dinheiro público que
financia a obra seja efetivamente usado em benefício dos povos afetados por
ela.
O Comitê Interventor, ou Comitê de Transição para o
Programa Médio Xingu “deve ser custeado pela Norte Energia e composto por
equipe multidisciplinar, com membros indicados pela FUNAI, pela ABA (Associação
Brasileira de Antropologia), pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência), pelo CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), por entidades
indigenistas e da sociedade civil, com participação paritária de indígenas e
acompanhamento do Ministério Público Federal”. Além disso, a Norte Energia terá
que comprovar que tem como garantir os recursos necessários para implementar o
programa durante os 35 anos do contrato de concessão de Belo Monte.
No total, a ação do MPF faz 16 pedidos liminares à Justiça
para mudanças na condução de Belo Monte, incluindo estudos complementares para
os novos impactos causados pelas ilegalidades do licenciamento e a obrigação de
arcar com medidas de reparação por perdas sociais e culturais, assim como pelos
abalos causados aos povos indígenas impactados. A Justiça pode determinar
perícias antropológicas em todas etnias afetadas para determinar que tipo de
reparação é necessária para cada povo.
A ação judicial foi concluída após longa investigação em
que estiveram envolvidos procuradores da República e peritos do MPF em várias
áreas. No total, o processo tem 50 volumes de documentos e dados que comprovam
os efeitos trágicos de Belo Monte sobre os povos indígenas afetados e
demonstram como, em vez de ser protegidos, eles foram violados em suas
tradições culturais e enfrentam a possibilidade concreta de desaparecimento,
pela forma como o licenciamento ambiental foi conduzido, mesmo que tais riscos
e danos já estivessem indicados no Eia-Rima e expressamente mencionados no
licenciamento.
Para o MPF, a ação etnocida suportada pelos nove povos
indígenas afetados por Belo Monte foi causada de um lado pela falta de rigor do
governo no licenciamento da usina: sob o manto do interesse nacional, as
obrigações foram postergadas ou modificadas de acordo com a conveniência da
empresa responsável pelo empreendimento, a Norte Energia S.A. Por outro lado, o
próprio governo, ao deixar de cumprir as suas obrigações – como fortalecer a
Funai e o Ibama e retirar invasores de terras indígenas – contribuiu
diretamente para a destruição cultural das etnias.
A ação do MPF afirma ainda que a forma como até agora a
Norte Energia e o governo brasileiro conduziram a implantação de Belo Monte
viola frontalmente o sentido da Constituição de 1988, porque evidencia a
manutenção de políticas assimilacionistas, que forçam a destruição cultural de
grupos indígenas, mesmo que tais práticas já tenham sido proibidas pela
legislação brasileira. “O que está em curso com a usina de Belo Monte é um
processo de extermínio étnico, pelo qual o governo federal dá continuidade às
práticas coloniais de integração dos indígenas à sociedade hegemônica”.
Essas práticas, lembra o MPF, foram banidas do ordenamento
jurídico em 1988, porque, “respaldadas num positivismo evolucionista,
naturalizaram o processo de integração dos silvícolas à sociedade hegemônica
como uma trajetória linear de um suposto melhoramento sócio-moral de grupos
arcaicos, detentores de um estado sociopolítico e cultural transitório, que
necessariamente deveria se extinguir e se incorporar à civilização superior”.
Em um resumo das irregularidades demonstradas pela
investigação, o MPF afirma que “a usina de Belo Monte conclui seu ciclo de
instalação sem que os territórios indígenas estejam protegidos, sem a
estruturação do órgão indigenista para cumprir sua missão institucional, com a
fragmentação e revisão unilateral do PBA-CI e sem a criação do Programa Médio
Xingu, que garantiria ao PBA a capacidade mitigatória necessária para tornar
esse empreendimento viável”.
Além de todas as falhas, o MPF aponta como especialmente
trágico o Plano Emergencial aplicado pela Norte Energia nas terras indígenas do
médio Xingu entre 2010 e 2012, com a distribuição indiscriminada de mercadorias
entre os índios, que se configurou como uma política de pacificação e
silenciamento em tudo similar aos momentos de maior violência da colonização do
território brasileiro. (veja
vídeo do MPF sobre o plano emergencial)
“Resta amplamente
demonstrado que a usina de Belo Monte põe em curso um processo de eliminação
dos modos de vida dos grupos indígenas afetados, ao não impor barreiras às
transformações previstas e acelerar ainda mais a sua velocidade com ações
homogenizantes e desestruturantes”, conclui a ação enviada pelo MPF à Justiça.
O processo ainda não tem numeração.
Irregularidades encontradas na
investigação do MPF
O que deveria ter sido feito de acordo com as licenças
e qual é a situação hoje
Proteção territorial indígena
Foi prevista como ação essencial para evitar invasões,
roubo de madeira e outros recursos florestais, além de proliferação de doenças
e perdas culturais previstas com a implantação da usina. Deveria ter sido
implantada em 2012, antes do início das obras. A Norte Energia até hoje não
implementou nada. Há entrada indiscriminada de não-índios em todas as terras
indígenas. Como resultado, houve uma explosão do desmatamento ilegal em terras
indígenas, sendo que a TI Cachoeira Seca é considerada a mais desmatada do
Brasil atualmente.
Fortalecimento do órgão
indigenista
Deveria ser prévio ao início das obras. Em vez disso, em
2012, pouco antes do começo de Belo Monte, foram retirados os postos da Funai
de todas as aldeias indígenas. O MPF tem ação judicial específica sobre esse
tema na Justiça, que pede a reestruturação física e a contratação de pessoal,
mas o governo nunca cumpriu a decisão liminar. Como resultado, a Funai hoje tem
72% menos funcionários para atuar com os nove povos indígenas afetados. Em 2011
eram 60 servidores, hoje são meros 23. Com isso, a Norte Energia tratou
diretamente com os índios durante toda a obra, o que evidencia a promiscuidade
entre público e privado no licenciamento, já que a empresa tem interesses
diretamente antagônicos aos direitos dos povos afetados.
Regularização fundiária de Terras
Indígenas
A obrigação de regularizar as terras dos povos afetados
por Belo Monte figura como condicionante da obra desde a primeira licença em
2010. Até hoje, quase nada foi cumprido. Todas as medidas dependem única e
exclusivamente do governo brasileiro: a homologação e extrusão (retirada de
invasores) da Terra Indígena Cachoeira Seca; a extrusão e demarcação física da
Terra Indígena Paquiçamba; a conclusão do processo de extrusão da Terra
Indígena Arara da Volta Grande, a garantia de acesso dos Juruna da T.I.
Paquiçamba ao reservatório de Belo Monte.
Plano Emergencial
“O que vulgarmente ficou conhecido como 'Plano
Emergencial' foi um caminho à margem das normas do licenciamento, definido
longe dos espaços legítimos de participação e protagonismo indígena, por meio
do qual o empreendedor obteve o êxito de, ao atrair os indígenas aos seus
balcões, mantê-los longe dos canteiros de obras de Belo Monte, mesmo sem
cumprir condicionantes indispensáveis. Uma política maciça de pacificação e
silenciamento, que se fez com a utilização dos recursos destinados ao
etnodesenvolvimento. E que, dos escritórios da Eletronorte aos balcões da Norte
Energia, rapidamente atingiu a mais remota aldeia do médio Xingu”, com danos
nem sequer dimensionados, mas já presentes.
Assim o processo do MPF descreve o Plano Emergencial, que deveria ter implementado ações voltadas ao etnodesenvolvimento, para sustentabilidade alimentar e econômica dos povos indígenas afetados, de acordo com as características culturais próprias e o tempo de contato com a sociedade envolvente. No lugar disso, foi estabelecido um balcão de negócios na cidade de Altamira, sob controle direto e exclusivo da empresa Norte Energia, onde eram distribuídos todos os meses, R$ 30 mil para cada aldeia, em mercadorias.
Assim o processo do MPF descreve o Plano Emergencial, que deveria ter implementado ações voltadas ao etnodesenvolvimento, para sustentabilidade alimentar e econômica dos povos indígenas afetados, de acordo com as características culturais próprias e o tempo de contato com a sociedade envolvente. No lugar disso, foi estabelecido um balcão de negócios na cidade de Altamira, sob controle direto e exclusivo da empresa Norte Energia, onde eram distribuídos todos os meses, R$ 30 mil para cada aldeia, em mercadorias.
Como resultado, índios que muitas vezes nunca tinham
estado na cidade foram obrigados a se deslocar com frequência até Altamira,
muitos pararam de plantar e pescar, as aldeias ficaram entupidas de lixo, houve
proliferação de várias pestes por causa do lixo, doenças como hipertensão,
obesidade e diabetes começaram a surgir com a modificação da alimentação
tradicional, a mortalidade infantil disparou, assim como o alcoolismo, o
consumo de drogas e a prostituição, o atendimento à saúde foi inviabilizado –
nem vacinas os profissionais conseguiam distribuir nas aldeias vazias por conta
da necessidade de deslocamento contínuo para Altamira.
Barracos
Fora das normas do licenciamento e com a Funai sem pessoal
suficiente para fiscalizar, a Norte Energia passou a construir casas sem
nenhuma adequação às culturas indígenas nas aldeias do médio Xingu. Foram
dezenas de casas – barracos de madeira cobertas com telhas de fibrocimento,
assemelhadas às casas de favelas urbanas – construídas sem nenhuma fiscalização
nem da Funai nem do Ibama.
O saldo da construção irregular de dezenas de casas nas aldeias é considerado pelo MPF como de extrema gravidade. Há um caso de uma índia de 17 anos, grávida de operário que não tinha autorização para ingresso em Terra Indígena, utilização de mão de obra indígena sem contrato formal, desorganização das atividades produtivas nas aldeias, despejo de resíduos de construção, derrubada de madeira sem autorização. A própria Funai emitiu relatório em que considera que “a execução inadequada das ações provocou, em algumas terras indígenas, impactos mais severos e significativos que o próprio empreendimento”.
O saldo da construção irregular de dezenas de casas nas aldeias é considerado pelo MPF como de extrema gravidade. Há um caso de uma índia de 17 anos, grávida de operário que não tinha autorização para ingresso em Terra Indígena, utilização de mão de obra indígena sem contrato formal, desorganização das atividades produtivas nas aldeias, despejo de resíduos de construção, derrubada de madeira sem autorização. A própria Funai emitiu relatório em que considera que “a execução inadequada das ações provocou, em algumas terras indígenas, impactos mais severos e significativos que o próprio empreendimento”.
PBA-CI-PMX (Plano Básico Ambiental
– Componente Indígena – Programa Médio Xingu)
Diante do caos gerado pelo plano emergencial e tendo
necessidade de obter a Licença de Instalação, em 2012 a Norte Energia S.A
apresentou o chamado PBA-CI-PMX (Plano Básico Ambiental – Componente Indígena –
Programa Médio Xingu). Construído por uma equipe de profissionais com
experiência com povos indígenas, o PBA foi aprovado pelos órgãos licenciadores
– Ibama e Funai e foi base essencial para a concessão da Licença de Instalação.
“Com o Programa Médio Xingu, a Norte Energia pretendeu
fazer prova de que seria possível a implementação viável da hidrelétrica, num
conjunto de obrigações do agente público e do agente concessionário, em que
ações de Estado seriam executadas com aporte de recursos provenientes do financiamento
da hidrelétrica”, lembra a ação do MPF. Mas foi só até a obtenção da LI. Logo
depois, concluiu a investigação do MPF, o PBA foi corrompido e fragmentado por
ação deliberada da Norte Energia, tornando-se fonte de novos conflitos, com
risco real de não haver mitigação nenhuma dos impactos de Belo Monte.
A Funai aprovou o PBA e deu 30 dias para que a Norte
Energia apresentasse um plano operativo com cronograma para instalação do PBA.
Em vez disso, a empresa apresentou um plano que suprimiu projetos atividades e
ações, além de reformular objetivos, o que é irregular. O plano apresentado nem
sequer contava com um responsável técnico, como é obrigatório. Por conta disso,
a Funai teve que passar um total de 9 meses pressionando a Norte Energia para que
adequasse o plano operacional ao que tinha sido aprovado como PBA. Mesmo assim,
na última versão apresentada, a empresa se sentiu livre para reduzir, por sua
conta e risco, as obrigações que tinha. A Funai acabou aprovando o plano
operacional com ressalvas, para evitar que as ações continuassem paralisadas, o
que só agravava a situação de etnocídio.
São vários exemplos de ações previstas e que a Norte
Energia se recusou a cumprir no plano operativo. No caso da educação escolar
indígena, a empresa reduziu propositalmente suas obrigações a apoiar as
secretarias de educação e elaborar materiais didáticos. No caso da saúde
indígena, a concessionária de Belo Monte respondeu ao Ministério da Saúde, mais
de uma vez, que não cumpriria determinada ação “por entender que não era de sua
competência” ou “por não estar contemplada no plano operativo”.
Em análise do corpo de peritos do MPF comparando o PBA
aprovado pelas autoridades e o plano operativo feito pela empresa, 37 ações de
saúde indígena foram apagadas unilateralmente pela empresa.O resultado foi que
até agora (dezembro de 2015), concedida a Licença de Operação para Belo Monte,
as ações de saúde indígena mal foram iniciadas, apesar da gravidade dos
impactos já registrados, desde aumento da mortalidade infantil até o surgimento
de doenças como alcoolismo, hipertensão e DSTs, que nunca tinham sido
registradas em áreas indígenas.
Para o MPF, a Norte Energia conseguiu reescrever, de
acordo com a sua conveniência, o Plano Básico Ambiental que tinha sido
aprovado, no que dizia respeito aos indígenas. O governo brasileiro não teve
capacidade nem demonstrou interesse de coibir a ilegalidade dessa situação. O
MPF diz ser evidente que ao apresentar o Plano Básico Ambiental, a empresa
queria obter a autorização para iniciar as obras. Mas nunca teve intenção de
cumpri-lo. “A nova roupagem (o plano operativo) da concessionária é, em
verdade, uma forma ilegítima e deliberada de reduzir gastos – desta que é a
obra mais cara aos cofres públicos da história do Brasil – economizando nas
ações socioambientais”, diz a ação judicial.
Ministério Público Federal no Pará — Assessoria de Comunicação