Sábado, 1º de
novembro de 2014
O presidente da CPT, Dom Enemésio Lazzaris, assina Carta
enviada pela Pastoral da Terra à presidenta Dilma Rousseff, em que destaca
que "os conflitos e a violência, inclusive com assassinatos de camponeses
e camponesas, 130 no seu governo, conforme os dados registrados pela CPT,
acobertados pela impunidade, só tenderão a crescer se se mantiverem a
inoperância e a corrupção em muitos órgãos governamentais, ao par do que fazem
ou deixam de fazer o Legislativo e o Judiciário". Confira o documento na
íntegra:
Para a
Sra. Presidenta da República Dilma Rousseff
Excelentíssima Senhora,
A Comissão Pastoral da Terra, CPT, reunida em Conselho
Nacional, em Luziânia-GO, entre 27 e 29 de outubro de 2014, dirige-se
respeitosamente a V. Excia. para, em primeiro lugar, parabenizá-la pela
reeleição e desejar-lhe um novo mandato profícuo e benéfico para toda a nação
brasileira, de modo especial para os menos favorecidos, já que foram estes a
maioria dos que a reelegeram. Por isso merecem uma atenção toda especial de sua
parte.
Atendendo à sua abertura e solicitação para o diálogo,
expresso em seu primeiro pronunciamento após a vitória nas eleições, queremos
apresentar-lhe situações e questões nacionais que passaram ao largo de toda a
campanha eleitoral e que, agora, forçosamente, se tornam em alertas e
reivindicações. São situações, questões e reivindicações dos povos dos campos,
das águas e das florestas com quem a CPT atua e apoia.
A Senhora ao assumir a presidência jurou, e novamente vai
jurar, defender e aplicar a Constituição Federal. Esta, em seu artigo 184, diz
que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma
agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. Constatamos
que, sobretudo em seu mandato atual, no que exige este artigo, a Constituição
foi tratada como letra morta, pois foi efetuado o menor número de
desapropriações dos últimos 20 anos. Também não foi feita a retomada das áreas
devolutas e da União que estão nas mãos de grileiros. Atribuímos isso à total
falta de interesse político de seu governo em relação a este tema. São
claramente privilegiados os interesses de grupos ruralistas que estão entre os
principais que sempre comandaram e desmandaram sobre este país.
Estes grupos alinhados ao modelo desenvolvimentista
predador estão entre os responsáveis pela devastação ambiental dos nossos
biomas, com o desmatamento e a utilização intensiva de agrotóxicos que suprimem
a proteção vegetal e contaminam solos, águas, ar e trabalhadores e
trabalhadoras. Provocam ainda o secamento e morte de nascentes e rios, e o
rebaixamento de lençóis freáticos e aquíferos. A destruição dos Cerrados
compromete a segurança hídrica atual e futura, o que já se evidencia na crise
de abastecimento de várias regiões do país, que não se pode atribuir
simplesmente à falta de chuvas. Ao se expandir para a Amazônia, este modelo
chega à última fronteira, agrava a crise ecológica e nos põe a temer ainda mais
pelo futuro...
Seu governo e os do Presidente Lula, tidos como
“populares”, nos quais – acreditava-se – fariam a diferença, em relação aos
anteriores, para os povos do campo, acabaram se submetendo às exigências
econômicas e políticas do agronegócio e deixaram milhares e milhares de
famílias em situações mais que precárias, desumanas, em acampamentos à beira de estradas. Senhora Presidenta, a
retomada da Reforma Agrária, ressignificada, efetiva e melhorada, é uma medida
mais que urgente que seu novo governo deve tomar, pois ela irá melhorar os
índices da produção familiar, que já é responsável por 70% dos alimentos
consumidos no País. Uma política de maior apoio aos camponeses e camponesas das
várias categorias existentes no País, potencializará uma produção alimentar
qualitativamente diferente, saudável e harmônica com os bens da terra. Os
programas de seu governo – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Política
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – provam a eficácia da agricultura
familiar, responsável principal pela saída do Brasil do mapa mundial da fome,
segundo a ONU em recente relatório.
Outro dispositivo constitucional, que deve ser aplicado
com firmeza e determinação e com a maior urgência, é o Art. 67 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que diz que “a União concluirá
a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
promulgação da Constituição”. Passaram-se 26 anos e a maior parte das terras
indígenas ainda não foi demarcada. E o mais lamentável é que seu governo tenha
determinado a suspensão da identificação das Terras Indígenas, propondo “mesas
de conciliação”, que são uma forma de reduzir ou mesmo eliminar o direito à
terra dos povos e comunidades, pois, como bem se sabe, “a corda sempre
arrebenta do lado mais fraco”... Dezessete decretos de homologação de Terras
Indígenas estão sobre sua mesa só aguardando sua assinatura, Presidenta!
Outros tantos estão sobre a mesa do Ministro da Justiça para encaminhamento.
Isso demonstra a falta de sensibilidade em relação a esta causa, que é de todos
nós. A isso se soma a tentativa de retirar da FUNAI a competência para a
identificação e demarcação dos territórios indígenas, repassando-a a órgãos que
pouco ou nada sabem da realidade e história indígenas. Com isso crescem os
conflitos, carregados de violência, com aumento do número de assassinatos e que
colocam os primeiros habitantes deste País numa situação de inferioridade, a
perpetuar o massacre da época colonial.
O mesmo acontece em relação aos quilombolas. O artigo 68
das ADCT dispõe que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No seu primeiro mandato, esta
determinação também não foi praticamente efetivada, fazendo crescer o número de
conflitos envolvendo estas comunidades.
Os interesses do agronegócio – com suas monoculturas de
soja, cana de açúcar, gado, eucalipto e outros –, o das mineradoras e a aposta
em grandes projetos como o de construção de barragens e outras obras de
energia, se sobrepõem aos direitos dos povos indígenas, das comunidades
quilombolas, das comunidades de fundo e fecho de pasto, dos pescadores
artesanais, dos faxinalenses, dos extrativistas e de outras comunidades tradicionais,
e até de assentados e assentadas da reforma agrária, que são expulsos da terra
com o consequente desenraizamento das famílias.
Senhora Presidenta, os conflitos e a violência, inclusive
com assassinatos de camponeses e camponesas, 130 no seu governo, conforme os
dados registrados pela CPT, acobertados pela impunidade, só tenderão a crescer
se se mantiverem a inoperância e a corrupção em muitos órgãos governamentais,
ao par do que fazem ou deixam de fazer o Legislativo e o Judiciário. O INCRA, a
Fundação Cultural Palmares, além da FUNAI, devem ser fortalecidos, aprimorando
os seus quadros e sua atuação.
Outra situação que merece especial atenção da sua parte é
a dos trabalhadores e trabalhadoras submetidos à condição análoga à de
escravos. Neste sentido lembramos que a Senhora assinou a Carta-Compromisso,
proposta pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo
(CONATRAE), de garantir a continuidade e a intensificação do combate ao
trabalho escravo, especificamente de que não haja nenhum retrocesso na
legislação vigente.
A CPT também se preocupa com a educação no e do campo.
Milhares de escolas rurais têm sido fechadas, nos últimos anos, obrigando
estudantes a longas viagens para longe de seu meio. Com isso a eles e elas se
oferece uma educação descontextualizada que favorece o êxodo rural e o
esvaziamento do campo. Muitas outras escolas que se mantêm abertas estão em
condições mais que precárias. Senhora Presidenta, é urgente uma política
educacional voltada para a permanência das famílias no campo, com o
fortalecimento das Escolas Família Agrícola (EFAs), das Casas Familiares
Rurais, das escolas indígenas, das escolas quilombolas e outras do gênero.
Senhora Presidenta, podemos esperar de sua parte uma
atuação ativa para garantir aos povos dos campos, das águas e das florestas
seus direitos constitucionais, sobretudo de acesso às terras e aos territórios
que historicamente lhes pertencem e dos quais foram esbulhados? Ou vamos continuar
assistindo a uma atuação de cunho colonialista, que vê nestes povos e
comunidades simplesmente “entraves ao desenvolvimento”, ao “crescimento”?
Esperamos de V. Excia. um governo renovado, mais
comprometido com as causas populares, que estavam na origem de seu partido. De
nossa parte conte com este nosso apoio: continuar ao lado dos camponeses e
camponesas do Brasil, em suas lutas e esperanças.
Luziânia, 29 de outubro de 2014.
Dom Enemésio Lazzaris
Presidente
Fonte: CPT