Sábado, 8 de
novembro de 2014
Do
Jornal do Brasil
Walmyr
Junior*
Você percebe
a perversidade do racismo quando ele, além de oprimir, tenta transportar a
denúncia para outro território. Que o racismo se faz presente em todas as
esferas da vida pública e privada, não temos dúvida. Mas, é de se alarmar
quando um caso ocorre dentro de um órgão da Secretaria Municipal de Cidadania e
Direitos Humanos. Assim, começa o caso explorado pelo artigo de hoje.
Lízia De Boni, servidora pública da Prefeitura Municipal de Vitória, sofreu
mais uma vez na pele as opressões e as violências que o racismo promove na
população negra.
O que parecia mais um atendimento a
munícipes pelo Procon, órgão em que a servidora trabalha, terminou em mais uma
reprodução do racismo que a oprime ao longo de 28 anos. Uma denúncia na 4ª
Delegacia Policial em Maruípe na tarde de 31/10/2014 foi realizada, conheça a
denúncia na íntegra:
"Por volta das
16hs do dia 30/11 chegou ao Procon Municipal de Vitória um senhor alterado por
ter chegado após o horário prevista de distribuição de senha. A coordenadora do
órgão mostrou a portaria municipal que regulamenta o horário de atendimento,
mas fez uma concessão e solicitou a uma funcionária que o atendesse. Durante o
atendimento, o munícipe puxou conversa enquanto a funcionária digitava os dados
do processo no computador. Ele se referia a um programa de TV sobre o oriente
médio e elogiava as feições físicas dos árabes, enquanto manifestava o desejo
de que as feições do povo brasileiro “evoluíssem” para um padrão com feições mais
europeias. E citando diferentes regiões do Brasil como exemplo, disse que a
região sudeste estava já manifestando padrões físicos mais aceitáveis devido
imigração italiana. Ele ainda se referiu às redes sociais, que essa semana as
pessoas estavam sendo acusadas de xenofobia, racismo e ódio. E que ele
DISCORDAVA DA EXISTÊNCIA DO RACISMO. Em dado momento, começou a se referir a um
apresentador de um programa de TV da Band. A funcionária continuou o seu
trabalho e disse que não assiste TV. O munícipe seguia dizendo que era um
absurdo ligar a TV e “dar de cara” com “aquilo”, que era muito feio e se vestia
como africano “ o cabelo de tranças horríveis, camisa larga e calça no meio das
pernas”. Por fim, manifestou que tinha motivo pra ter medo se cruzasse com “um
cara desses” na rua, que depois as pessoas falam que é racismo e ele discorda
disso. Ao perceber que o munícipe insistia na conversa, a funcionária
interrompeu o atendimento e começaram a discutir sobre o fato.
- Peraí. O senhor vem
no meu guichê pra vomitar racismo na minha cara?
- Não é racismo não.
Tô te contando um caso acontecido que eu não concordo.
- Senhor, eu estou
aqui pra falar de Código de Defesa do Consumidor e não sou obrigada a ouvir os
comentários racistas do senhor. Por que o senhor está falando isso comigo? Você
está falando que o meu povo é feio, que nosso cabelo é feio e que vcs tem que
ter medo da gente na rua?
- Mas é feio mesmo.
As pessoas não são obrigadas a ligar a televisão 23h e ver um cara daquele na
TV. Até parece que se você tiver passando na rua e encontrasse um sujeito
desse, não teria medo.
- O nome disso é
racismo e eu não vou tolerar. Se o senhor falar de celular eu atendo, se não eu
vou pedir pro senhor se retirar.
O munícipe insistiu
por diversas vezes em argumentar com adjetivos contra o apresentador negro, sem
ouvir o apelo da funcionária.
- Me desculpe, eu não
vou te atender. Se alguém se disponibilizar a atender pode ir. Eu não. -
Vocês vão ter que atender. Está aqui para isso.
- Não senhor, você
chegou após o horário de distribuição de senha e está escrito na portaria que
eu não sou obrigada. Posso fazer trabalho interno.
A coordenadora chegou
e pediu para a atendente se acalmar. A atendente se retirou e quando voltou ao
ambiente de trabalho o munícipe conversava com a coordenadora sobre o fato
ocorrido, insistindo muito que não era situação de racismo. A atendente voltou
para o seu guichê, ao lado onde estava o munícipe.
- Essa daí está aí
para servir e tem que me atender. Eu sou da justiça federal. Eu não vou pedir
desculpas pelo racismo, mas pelo fato ocorrido. Eu tava contando um caso pra
ela.
- Se o senhor tiver
que pedir desculpas e falar alguma coisa, tem que falar comigo que fui a
atingida. Eu não sou amiga do senhor pra ficar ouvindo caso.
- Eu não vou pedir desculpas pra você, estou falando com ela
(a coordenadora). Qual o nome “dessa aí”? -lizia de boni silva ,
matricula XXXXX.
Ele anotou. A
coordenadora se manifestou, dizendo que não queria “aquele tipo de conversa”
ali e que se a atendente quisesse fazer “aquilo”, era “da porta pra fora” ou
que resolvesse na justiça.
“Acabou Lízia. Fica
quieta. Acabou”.
A coordenadora pediu
que ela se retirasse e que o munícipe permanecesse. A atendente não aceitou,
falou que continuaria trabalhando e argumentou que estava na SECRETARIA
MUNICIPAL DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA e a coordenadora por ser advogada
tinha conhecimento do que era racismo e se fosse qualquer outro crime cometido
ali, já teriam chamado segurança.
O munícipe continuava
a argumentar. O tempo todo a coordenadora mandava a funcionária se calar e
dizia que conhecia as posições políticas dela, mas que ali “não era lugar”.
“Tem como você se calar?” “Já estou calada. Estou indo embora.” A funcionária
se sentindo constrangida se retirou e o munícipe permaneceu".
Espera-se que a
Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória instale uma
comissão para apurar o caso e garanta a integridade de Lízia De Boni, bem como
a erradicação de qualquer opressão, seja ela de gênero, orientação sexual,
religiosa, de raça dos espaços institucionais, bem como indicam as politicas
afirmativas e universais de garantia de vida à população, sobretudo negra.
Dizer que a opressão que a servidora sofreu é fruto de qualquer outra situação
é uma tentativa de desterritorializar o sistema racista que opera todos os dias
e condena negros e negras a condições de vidas indignas e legitimar a violência
física e simbólica a que estão submetidos.
* Walmyr Júnior é
professor. Representante do Coletivo Enegrecer no Conselheiro Nacional de
Juventude - CONJUVE. Integra Pastoral da Juventude e a Pastoral Universitária
da PUC-Rio. Representou a sociedade civil
no encontro com o Papa Francisco no Theatro Municipal, durante a JMJ.