Sábado, 12 de setembro de 2015
Do ESQUERDA.NET
O militante brasileiro Waldo
Mermelstein vivia no Chile e foi testemunha do processo revolucionário e
do golpe que vitimou milhares de pessoas e impôs o modelo precursor do
neoliberalismo. Quarenta e dois anos depois republicamos este artigo de
2011.
11 de Setembro, 2015
O
golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 vitimou milhares de
pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos
trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Não por
acaso, os estudantes e o povo que se manifestam nestes dias às centenas
de milhares pelas ruas de Santiago levantam a bandeira de “Se va caer, se va caer, la educación de Pinochet”.
Assim como a educação, a saúde e a previdência são privadas em sua
esmagadora maioria, assim como as empresas que exploram o cobre, sua
principal riqueza. Tão profunda foi a derrota imposta em 73. A melhor
homenagem aos caídos, aos centenas de milhares de exilados é essa
demonstração de força das massas chilenas.
Mas como se chegou a um desfecho tão terrível? Havia outra
possibilidade? Como tão poderoso movimento social foi derrotado
praticamente sem combates?
O Chile em 1970
O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de
urbanização (75%), uma trajetória de quase cem anos de organização do
movimento operário, o mais antigo e poderoso partido comunista das
Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que
tinha uma forte ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e
estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes
militares. O movimento de massas contava com uma poderosa central
sindical, a CUT, cujos filiados representavam cerca de 25% dos
assalariados.
Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de
mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao
estrangulamento do modelo econômico de substituição de importações à
influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC),
em 1964, foi às eleições para enfrentar a coalizão de esquerda com a
bandeira de “Revolução em liberdade”. Seu programa focava a reforma
agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a
“chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do
imperialismo americano, que àquela época implementava seu programa da
Aliança para o Progresso a fim de tentar deter a tremenda influência da
revolução cubana.
Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente
sua cara patronal, repressiva, pró-imperialista. Inicialmente, sua
estrategia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a
reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo
negócio para as companhias americanas. Com isso, o movimento de massas
começou a aumentar significativamente suas lutas, havendo o aumento
exponencial das greves, especialmente as ilegais. Houve três greves
gerais até o processo eleitoral em 1970; os camponeses, estimulados pela
promessa de reforma agrária, começaram a ocupar terras e
aproveitaram-se da recente permissão de sindicalização antes negada para
fazê-lo aos milhares.
A Unidade Popular (UP)
Em 1970, realizam-se as eleições e a coalizão de partidos de
esquerda, a UP, consegue a primeira maioria, com Salvador Allende à
cabeça. A UP era composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido
Socialista (PS), mais um pequeno partido dissidente da DC, o Movimento
de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenas agrupações burguesas, como o
Partido Radical), consegue a primeira maioria (36%). Para que o
candidato vitorioso tivesse sua eleição confirmada ainda teria que
passar pela aprovação do parlamento. Intensas pressões e negociações
precederam essa votação. O imperialismo americano procura estimular os
setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado
Henry Kissinger resumiu a consideração do imperialismo americano com a
vontade popular, ao comentar com seus colegas “não vejo por que temos
que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à
irresponsabilidade do seu próprio povo».
A extrema direita chegou a tentar sequestrar o comandante do
Exército, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados
eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das forças armadas e da
burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o
setor mais golpista da burguesia perdeu espaço. Antes de votar, no
entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias
constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições
centrais do regime capitalista.
Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre
Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta
vez a presidente. Ele era um reformista convicto e nunca o escondeu. As
concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável
oposição que seu governo sofreu por parte da burguesia e do imperialismo
e sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com
que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu
grande valor pessoal no último ato ao enfrentar com coragem os gorilas
chilenos não redime seus erros, a escolha equivocada da chamada via
institucional ao socialismo e sua responsabilidade na derrota.
O primeiro ano
A UP tinha um programa de reformas básicas que incluía a aceleração
da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei e,
principalmente, a nacionalização completa do cobre, que representava 80%
das receitas de exportação do país. Quanto à indústria seria dividida
em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta
última, seriam incorporadas as empresas monopólicas. Nas áreas não
estatais a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco
definidos comitês de vigilância da produção. Os bancos seriam também
nacionalizados.
O programa da UP fazia uma referência vaga a uma transição ao
socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem
especificar seus ritmos e métodos. Allende em vários discursos como
presidente falava de uma segunda forma de transição ao socialismo,
supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as
regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo a
suposta “flexibilidade” das instituições do estado chileno.
Outro elemento no programa da Unidade Popular que estimulou o
movimento a lutar foi a declaração de que “as transformações
revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas
se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e
efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala
esquerda, sem maiores precisões, mas mesmo assim era uma linguagem
distinta dos demais governos e foi tomada ao pé da letra pelos
trabalhadores e pelos setores populares e acabou ultrapassando em muito
as ações e intenções do governo e com ele se chocou em vários momentos.
O governo Allende foi um clássico governo de colaboração de classes
em um país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda
instabilidade, particularmente a partir do locaute patronal de 1972.
Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de
fazermos algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma
realidade viva e complexa. Pelo seu conteúdo programático, pela sua
prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador
controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de
festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos
nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no
Brasil. Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo
apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha
semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de
frente popular pela denominação dada pela Internacional Comunista sob
domínio de Stálin. A proposta era a de organizar uma aliança
anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe
trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional,
oposta aos monopólios e ao imperialismo para completar uma primeira fase
democrático-burguesa do processo revolucionário.
A partir de outubro de 72, o governo, além das características
anteriores, começa a se assemelhar aos governos no auge de situações
revolucionárias, e logo nos vêm à mente o exemplo de Kerensky na Rússia
em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez
mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se
enfrentavam, entre revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era
um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os
marcos da dominação estatal capitalista.
Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo. O Chile que
Allende recebeu vivia uma profunda crise econômica, recessão e inflação
na casa dos 35% e a maior dívida externa per capita do mundo. A UP
aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de
estímulo keynesiano, aumentando os salários pelo menos no nível da
inflação, elevando os benefício sociais (entre eles, a entrega gratuita
de meio litro de leite para cada criança do país) e , em especial os
previdenciários, aumentando o crédito para a economia, diminuindo o
desemprego, estimulando a construção de casas populares, acelerando a
reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios
industriais e bancários por meio da compra e muito especialmente
nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em
primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”. O efeito foi
imenso, em 71 houve uma grande transferência de renda para o trabalho
assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% da renda nacional (o que é
verdadeiramente extraordinário), o desemprego baixou quase à metade,
para 3,9% . A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda
dessas medidas, lançar medidas de democratização do Estado, em
particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única
para poder prosseguir com as reformas. Com isso, cinco meses após
assumir o poder, a UP conseguiu 51% dos votos nas eleições municipais.
Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da
UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas
não investia quase nada, por seu caráter parasitário e principalmente
por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam
controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores
privilegiados das classes médias urbanas e rurais.
Por outro lado, as massas, depositavam enormes expectativas no
governo e o apoiavam, sentindo que havia chegado o momento de conquistar
seus direitos tanto tempo postergados: as ocupações de terras
explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada
da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação
básica (que era uma fórmula complicada e que permitia a sobrevivência de
propriedades de até milhares de hectares), o que deixaria cerca de 40%
das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários, os
camponeses resolveram se adiantar e começaram a ocupá-las,
organizando-se em conselhos camponeses autônomos dos oficiais e propondo
a radicalização da reforma agrária. Papel importante tiveram os
mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos
espanhóis, que pediam a restituição de suas terras. A reação do governo
foi dupla : condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a
radicalização, mas, para não perder o controle acelerou a reforma
agrária, a tal ponto que em dois anos se cumpriram as metas para seis
anos...
É interessante que tenha sido do campo, da província de Linares, de
onde tenha surgido a primeira contestação organizada, pela esquerda, à
política do governo: o congresso de camponeses daquela província, em 71,
exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que
deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a
diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e
o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores
terras para eles, assim como suas máquinas e animais.
Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores
salários e condições de trabalho, as greves continuam aumentando
exponencialmente. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua
nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos
pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar
uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem
Yarur, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país, era uma
das candidatas, mas o governo não havia anunciado sua nacionalização. Os
dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de
base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a
sua passagem para a APS. Como conta o historiador Peter Winn (“Tecedores
da Revolução), depois de muito pressionar o governo e contando com a
oposição pessoal de Allende, os trabalhadores o dobraram e o governo
utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e
em desuso para intervir a empresa. Segundo o autor, nos ásperos
diálogos, Allende foi claro e disse: “se eu ceder a vocês, outros farão o
mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo
caminho.
Os moradores sem teto que, entre ocupações e favelas, constituíam
cerca de 20/25% da população de Santiago seguiram ocupando terrenos e
exigindo a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de
“pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e
consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a
ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a
influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda
Revolucionário - MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).
O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade
Popular e havia sido formado originalmente por dissidentes do PS,
trotskistas e independentes e depois seguiu uma linha castrista sob a
direção de Miguel Enriquez.
Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem
apenas um pouco mais do clima de ascenso e crise que se vivia antes da
posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores
porque sentiam que o governo estava supostamente ao seu lado ou pelo
menos que não usaria a repressão, como havia prometido solenemente.
Em julho de 71 o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização
completa das minas de cobre e Allende propôs que as empresas
(americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros
extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que
por pressão popular acabou sendo confirmado pelos órgãos do estado. Na
verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras
haviam lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país
durante sua história!
Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio
invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando
a renegociação da dívida externa do país, entrando em juízo para
confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais
os movimentos de oposição ao governo. O nervosismo do imperialismo se
explica pela situação na América Latina naquele período, com a
desestabilização de vários países, como Argentina, Uruguai e Bolívia, no
marco da iminente derrota no Vietnã e os reflexos da crise de 68 ainda
bem presentes.
Começa a polarização extrema entre as classes fundamentais
A situação em direção ao final de 1971 vai lentamente mudando: a
oposição burguesa se reorganizou, foi feita a primeira manifestação de
massas contra o governo, com as senhoras de classe média orquestrando a
“marcha das panelas vazias”, que coincidiu com a visita de um mês de
Fidel Castro ao país, quando deu seu apoio à chamada “via pacífica ao
socialismo”; a produção começou a cair por falta de investimentos, a
inflação recomeçou a subir , as divisas do país se esgotaram,
dificultando a importação de bens de consumo e insumos para a produção, o
que levou o governo suspender o pagamento da dívida externa pela
simples impossibilidade de continuar pagando.
Frente a isso, a UP começou a deliberar para mudar de rumo. Foram
várias reuniões na primeira metade de 72, quando finalmente a linha
econômica do governo foi mudada. Foi demitido o ministro Pedro Vuskovic,
independente, e assumiu Orlando Millas, do PC, com a orientação de
frear as nacionalizações e os aumentos salariais e negociar um acordo
com a DC sobre a extensão da APS.
Pois foi naquele ano de 72 em que tudo realmente começou a mudar de
curso no que toca à disposição de luta das massas e à radicalização da
oposição burguesa.
É preciso dizer que as nacionalizações previstas pelo governo da UP
não representariam mais do que 20% dos trabalhadores industriais do
país, ou seja a política de alianças proposta deixava de fora o restante
dos trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da
construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual
de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária. Um autor
chileno, Fernando Mires, calcula que ficavam de fora 1,7 milhões de
pessoas, em uma força de trabalho que era de cerca de três milhões de
pessoas...
Além disso, o método preferido da UP para nacionalizar era o de
comprar as ações das empresas, o que foi feito em especial com os
bancos; isso não tinha nenhuma semelhança com uma nacionalização de
caráter socialista, expropriatória daqueles que tinham se apoderado por
muitos anos da riqueza produzida por seus trabalhadores. Por pressão dos
trabalhadores e pela resistência da patronal, as nacionalizações por
esse método não mais foram possíveis e o governo utilizou os métodos de
intervenção e requisição das empresas, que tinham o inconveniente de
perpetuar o conflito com os antigos proprietários nos meandros do
aparato legal do país.
Por outro lado, o segundo o convênio CUT-governo de 1971, sobre a
participação nas empresas da APS, o modelo de gestão seria dominado pelo
Estado: a direção das empresas ficou nas mãos de um diretório com
maioria nomeada pelo governo e a participação dos trabalhadores
resumia-se, em geral, aos comitês de produção, que ajudavam a
implementar a política preferida do governo, impulsionada em especial
pelo PC, a chamada “batalha da produção”, que levou a que a produção das
empresas da APS tivesse resultados espetaculares antes que a crise
econômica e o mercado negro não se tornassem dominantes.
Na própria APS começaram a haver muitas críticas ao modelo, exigindo
aumento da participação real dos trabalhadores, apontando em direção ao
controle efetivo das empresas, como se expressou, por exemplo, no
Encontro de Empresas Têxteis da APS, o principal setor industrial
nacionalizado, realizado em meados de 72.
Começou a se formar, ao calor dos acontecimentos e da pressão das
massas, uma polarização dentro da própria UP: contra a posição de
Allende e do PC, alinhou-se a ala esquerda, majoritária, do PS, mais o
MAPU, a Esquerda Cristã (uma nova cisão da DC ocorrida após a eleição de
Allende) e de fora da Unidade Popular, o MIR. Os lemas da época eram
“consolidar para avançar” e “avançar sem conciliar”, o que parece um
jogo de palavras, mas significava que amplos setores das massas
começaram a manifestar um enfoque diferente sobre a forma de enfrentar
os patrões e a reação, sem deixar de apoiar o governo.
Em maio, a direita se propõe a ocupar as ruas de Concepción, a
segunda cidade industrial do país; a ala esquerda da UP e o MIR
lideraram uma das maiores manifestações na historia da cidade a fim de
impedi-los, sendo reprimidos pela polícia sob as ordens do prefeito do
PC. Mais tarde, em julho, realiza-se a chamada Assembleia Popular de
Concepción, na verdade um fórum público onde a esquerda debateu os rumos
do processo chileno, com a presença independente, pela primeira vez, de
vários organismos sociais, onde se pediu essencialmente a convocação de
uma Assembleia Popular para implementar o programa da UP. Mesmo assim,
foram publicamente desautorizados por Allende que reclamou da tentativa
de se criar uma nova direção para o movimento popular.
Em junho um acontecimento de grande magnitude ocorreu: a energia das
massas começa a se expressar em lutas mais radicais, como já acontecia
em todo o país, com o aumento ainda maior do número de greves ilegais,
ocupações, barricadas nas ruas. Como em todos os grandes processos
revolucionários, começaram a surgir organismos mais amplos, para dirigir
as lutas, que haviam se ampliado e não mais poderiam ser levadas a bom
termo pelas estruturas tradicionais, no caso da CUT. E isso se produziu,
como costuma ocorrer sempre em situações semelhantes, da forma menos
esperada.
O primeiro cordão industrial : Cerrillos-Maipu
A região de Cerrilos, ao sul da capital, era a principal concentração
fabril de Santiago, contando com 46 mil trabalhadores espalhados por
250 fábricas ( o país contava com 550 mil operários industriais). A
maior parte das fábricas da região era moderna e não estava contemplada
nos planos de nacionalização do governo, muito menos com a redução de
seu número sob a nova orientação econômica da UP. Algumas dezenas de
fábricas se mobilizaram, e os trabalhadores ocuparam as ruas do
distrito, chegaram a ocupar o ministério do trabalho, dirigido por
Mireya Baltra, comunista. Esse movimento se chocava frontalmente com os
novos planos da Unidade Popular de frear as nacionalizações e ainda
uniu-se às mobilizações dos camponeses da região. O cordão Cerrillos foi
formado como uma coordenação entre os sindicatos de fábrica da região
(os sindicatos chilenos eram organizados por fábrica), passando por cima
da compartimentação imposta pela lei sindical e pela estrutura da CUT
que não tinha organismos locais para coordenar as lutas, adotando uma
forma territorial de organização. A plataforma de fundação do cordão já
anuncia uma clara pressão para radicalizar o processo, pedindo além da
passagem de muitas fábricas para a APS, o controle operário sobre todas
as demais empresas na cidade e no campo, o estabelecimento de uma
assembleia popular em substituição ao parlamento burguês e, sem deixar
de reafirmar a legitimidade popular do governo, consideravam apoiá-lo
“na medida em que este interpretasse as lutas e as mobilizações dos
trabalhadores”, o que dava uma nota bem mais crítica ao movimento
social. Posteriormente organizaram-se mais cerca de 30 cordões
industriais em Santiago e ao longo do país. Eles contaram com um grau
desigual de adesão e massividade, dependendo das conjunturas. Assim,
durante as grandes crises que analisaremos a seguir tiveram um papel
destacadíssimo, assumindo, a partir de sua origem sindical tarefas
claramente políticas, refluindo posteriormente para reuniões de
dirigentes sindicais com militância em partidos mais à esquerda
(esquerda do PS, MIR) sem se independizarem do governo, funcionando como
uma espécie de pressão de massas para tentar radicalizá-lo.
O locaute de outubro e o surgimento de uma situação abertamente revolucionária
A burguesia e o imperialismo, utilizando métodos que já haviam
experimentado em outros países e conjunturas, como no Brasil de Jango,
começaram a estimular os setores de classe média e todos os descontentes
com o governo e se propuseram a lançar uma ofensiva final para derrubar
ou fazer capitular a UP.
Tudo começou com uma greve de caminhoneiros privados contrários à
criação de uma empresa regional de transportes estatal no sul e que se
estendeu a todo o Chile. Em um país tão longo e estreito, o cálculo é
que isso faria o governo capitular rapidamente. Somaram-se as
associações de profissionais liberais, em especial os médicos, os
estabelecimentos comerciais, o transporte urbano e a patronal
industrial. Era o locaute patronal massivo...
O governo e a CUT reagiram formalmente, sem muita energia nem
iniciativa, mas as massas deram uma resposta impressionante. Os
trabalhadores decidiram que a conspiração burguesa para paralisar o país
não prosperaria e decidiram tomas a produção em suas mãos. As fábricas
foram ocupadas, os meios de transporte foram em muitos casos
requisitados, muitos comércios foram abertos à força, começaram a se
organizar formas de controle de preços e de distribuição direta em forma
massiva, contra o cada vez mais florescente mercado negro. (calcula-se
que cerca de metade da população de Santiago era abastecida pelos
organismos populares em 73, apesar de que 70% da distribuição atacadista
estava nas mãos privadas e abastecia o mercado negro). Ah, sim, sem
esquecer os comitês de vigilância para enfrentar os bandos fascistas e
proteger as indústrias. Além dos cordões, surgiram comitês de
coordenação com as lutas de bairros, os comandos comunais. Nas fábricas e
bairros, pouco importava a filiação política, mesmo os trabalhadores
democrata-cristãos aderiram a esta frente única de classe que tinham um
caráter muito mais amplo que os setores organizados pela CUT e os
partidos de esquerda . O locaute patronal havia fracassado! E nunca
antes a classe trabalhadora chilena havia expressado tal combatividade,
união e energia!
Mas os dirigentes da UP não estavam à altura dos seus liderados. Em
vez de se apoiarem na mobilização para encurralarem e derrotarem a
burguesia e seus partidos, optaram pelo caminho da conciliação. Um
processo que tinha começado como uma série de reformas, todas
compatíveis com o sistema capitalista, havia chegado pouco a pouco a um
impasse por força da intensa polarização de classes para chegar um novo
auge em outubro. Sem chegar ainda a uma situação tão explosiva como em
outras situações revolucionarias como na Espanha em 36 ou a Bolívia em
52, mas com um grau de mobilização inédito na América Latina há muito
tempo, havia as condições para romper as amarras do legalismo e do
programa autorestritivo da UP. Mas não foi essa a conclusão da maioria
da liderança da UP. E mesmo os que pediam o avanço, na ala esquerda da
própria UP, não percebiam que era preciso forjar uma alternativa
independente à UP. Na verdade, constituíam-se em outro empecilho para a
radicalização necessária, pois insistiam que o poder popular não deveria
ser realmente independente, procuravam utilizá-lo como um elemento de
pressão pela esquerda nos marcos do apoio ao governo.
Allende concluiu um acordo com a DC para incluir os comandantes das
forças armadas ao gabinete com a principal missão de garantir as
eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas
durante o locaute de outubro. Do ponto de vista econômico, isso veio a
ser conhecido como o plano Prats-Millas (seus formuladores haviam sido o
general Prats, comandante do Exército, e Orlando Millas, comunista e
ministro de Economia) que previa reduzir a Área de Propriedade Social
das 120 empresas inicialmente previstas para somente 49. Recordemos que
cerca de 200 estavam ocupadas àquele momento como fruto do locaute de
outubro. Este número chegou a mais de 300 em 73, agrupando cerca de 40%
dos trabalhadores industriais do país. Quando foi oficialmente lançado
foi duramente combatido pelos cordões industriais com novas
manifestações no centro de Santiago e barricadas nos distritos
industriais. O plano teve que ser convenientemente engavetado, pois o
governo não tinha forças para impô-lo.
As eleições de 73, o tancazo e a preparação do golpe
Contrariamente a todas as expectativas, a oposição burguesa não
conseguiu os 2/3 dos votos para declarar o impedimento de Allende, mesmo
com os milhões de dólares despejados pelo imperialismo americano, o
galopante mercado negro, a inflação que fechou 72 ao redor de 200%. Com
os 44% dados à UP, a via institucional do processo chileno estava
fechada, como reconheceu o principal assessor político de Allende, o
catalão Joan Garcés. Era voz corrente que o enfrentamento entre o
processo revolucionário e a contrarrevolução era inevitável.
O padrão após a metade de 72 se repetiu de forma acentuada: a
oposição utilizou todas as suas armas legais, o poder Judiciário, o
Congresso, a Controladoria da República, o seu poder econômico,
financiando o mercado negro, o desabastecimento, os locautes patronais,
as associações de classe média e seus meios extralegais, os bandos
armados fascistas.
Em 29 de junho se dá o penúltimo ato do processo, já prenunciando o
desastre: um regimento de tanques se levanta em Santiago, cerca o
palácio presidencial, mata cerca de 22 pessoas, mas não consegue a
adesão das demais unidades das Forças Armadas. A reação popular é
espetacular, novamente, e num tempo concentrado: naquele dia, outra vez,
a grande maioria das empresas foi ocupada. Uma grande manifestação
comandada pelos cordões industriais vai a uma concentração em frente ao
palácio exigindo o fechamento do Congresso e a punição aos golpistas.
Mas Allende foi inflexível e se apegou desesperadamente à
institucionalidade, deixando até de aplicar medidas elementares de
saneamento dentro das corporações militares, coisa que muitos
governantes pelo mundo já o fizeram sem serem revolucionários. Ao final
da manifestação apresentou os generais que, junto com Prats haviam sido
os heróis que haviam impedido o triunfo do golpe (entre eles,
incrivelmente, o próprio Pinochet) e declarou o estado de emergência, o
que dava aos militares o controle do país.
Os meses seguintes mostraram a oposição preparando o terreno para o
golpe: a Suprema Corte e o Congresso declararam a ilegalidade do
governo, abrindo o caminho “legal” aos golpistas.
Os militares começaram a se exercitar e coesionar suas fileiras. O
pretexto foi a Lei de Controle de Armas aprovada após o locaute de
outubro, sem que Allende a vetasse, e que permitia que os militares
realizassem operações de busca e apreensão em qualquer lugar. Com essa
desculpa foram acostumando os soldados rasos a se enfrentarem aos
trabalhadores, foram testando a resistência dos cordões industriais.
Uma última e patética negociação foi patrocinada por Allende e o PC:
um novo diálogo com a DC, já claramente voltada para a derrubada do
governo. O jornal do PC, El Siglo, estampava a manchete, “depois de um
tancazo, por que não um dialogazo?” E por intermináveis cerca de 30 dias
perderam tempo com uma campanha contra a guerra civil, quando havia é
que se preparar para ela...A DC exigiu a capitulação total (um gabinete
só de militares, a devolução de todas as empresas ocupadas, a
promulgação de reforma constitucional que limitava drasticamente a APS e
a repressão aos cordões industriais), o que Allende não podia aceitar.
Os trabalhadores ficaram confusos e desmoralizados pela negativa do
governo em contra-atacar a direita e pelas concessões feitas. Uma
última, simbólica e inútil concessão foi a entrega do Canal 9 de TV,
ocupado por seus trabalhadores e que conseguiam furar um pouco o
bloqueio jornalístico dos monopólios televisivos. Prevendo qualquer
ataque os trabalhadores por meio de seus sindicatos designavam guardas
permanentes para proteger o canal 9.
O resto já é conhecido. O golpe de 11 de setembro teve pouca, mas
heroica resistência, em especial em algumas fábricas dos cordões.
Cabem algumas considerações finais sobre o caráter do governo da
Unidade Popular, seu programa e as alternativas que se estavam gerando
ao final do processo, mas que não tiveram tempo de amadurecer.
O programa da Unidade Popular revelou-se equivocado, pois não
contemplava a união das amplas camadas de explorados e oprimidos do país
e propunha a aliança com uma suposta burguesia nacional antimonopolista
que se demonstrou estar mais ligada aos interesses do grande capital e
ter uma clara concordância ideológica com este, mesmo no momento em que
auferiu imensos lucros, arrastando setores importantes da classe média.
Há na caudalosa polêmica sobre a experiência chilena: uma corrente
majoritária dentro da esquerda e fora dela argumenta que o desastre se
deveu à falta de acordo com o centro político (que supostamente
representava a classe média e a burguesia “nacional”), ou seja, a DC.
Sem poder entrarmos profundamente no tema, uma observação:
A DC era o partido mais importante do capital no Chile, seus setores
mais progressistas haviam rompido pela esquerda e sua base trabalhadora
estava disposta a enfrentar o patronato como se demonstrou no locaute de
outubro. Por outro lado, o limitado programa de reformas da Unidade
Popular em uma sociedade dependente do imperialismo e tremendamente
desigual abriu as comportas da luta social em uma sociedade extremamente
desigual, o que desembocou em um grandioso processo revolucionário, que
não comportava soluções parlamentares, nem a conciliação. As classes
sociais fundamentais estavam em movimento e só o confronto poderia
saldar contas. Revolução e contrarrevolução se enfrentavam nas ruas,
fábricas campos e minas do país. O acordo com a DC significaria
claramente a capitulação de todo o movimento social e a repressão de sua
vanguarda, o que a UP não se atreveu a fazer. Ficou na metade do
caminho, tentando desesperadamente conter o movimento que de certa forma
provocou e que a ultrapassou completamente.
A política militar da UP
O conjunto da orientação da UP já explica o porquê de ter havido tão
pouca resistência ao golpe militar. Mas no terreno da sua atitude frente
às forças armadas as coisas chegaram a um ponto incrível. Durante os
três anos de governo em nenhum momento houve uma política frente à
inevitável oposição da oficialidade à qualquer reforma social mais
profunda. Inclusive se incutiu um mito que depois ficou claro que não
tinha nenhum fundamento, o suposto caráter profissional e legalista das
forças armadas chilenas. Na verdade, elas intervieram de forma sangrenta
sempre que foram chamadas, como nas greves e mobilizações no governo
Frei, com mortos e feridos. Em 1969 houve uma tentativa de golpe
comandada pelo general Viaux, o mesmo que prepararia o assassinato do
general René Schneider, mas isso não mudou uma vírgula esta orientação
suicida. Não levantaram um programa de reivindicações básicas e muito
sentidas na base e na suboficialidade contra os privilégios dos
oficiais, a brutalidade e a falta de direitos democráticos, entre eles o
direito de voto, e por melhorias no nível de vida, já que sofriam, como
o conjunto de seus irmãos de classe, com a tremenda crise econômica
exacerbada pela luta distributiva entre as classes fundamentais da
sociedade, o flagelo do mercado negro e o desabastecimento. Nenhum
controle das promoções militares, nenhuma depuração de oficiais
golpistas e o principal, nenhuma propaganda antigolpista que passasse
por cima da rígida estrutura militar e apelasse diretamente aos
trabalhadores sob uniforme. Nem é preciso dizer que em nenhum momento se
alentou a defesa armada do governo, única garantia que os soldados,
marinheiros e suboficiais poderiam se atrever a rebelar-se, sem que isso
significasse suicídio...
A mentalidade legalista levou a que nem houvesse uma estratégia de
resistência, as rádios de esquerda foram silenciadas e não havia
transmissores alternativos, a orientação de ficar nos locais de trabalho
não servia mais para uma situação extrema...mas era tudo consequência
de três anos perdidos, de não ter a clareza e a coragem de enfrentar a
realidade do enfrentamento, coisa que a burguesia demonstrou ter de
sobra.
Estamos em um terreno em que há poucas informações, mas hoje
conhecemos melhor um episódio simbólico: o caso dos marinheiros
antigolpistas.
Desde a eleição de Allende, a tremenda divisão de classes que existia
na Marinha chilena fez com que os marinheiros e suboficiais
comemorassem intensamente a eleição e os oficiais a considerassem uma
grande derrota. Por mais de dois anos centenas de marinheiros
organizados nos barcos e em terra controlavam a atividade dos oficiais e
quando viram que estavam abertamente organizando o golpe tentaram
alertar o governo e pedir a ajuda aos partidos de esquerda para tomarem
os barcos, como havia acontecido com a revolta da Armada em 31. “Depois
do golpe será impossível”, diziam, profeticamente. Não receberam
resposta e foram presos e barbaramente torturados. Allende, no dia 5 de
agosto de 73, formava um novo e final gabinete cívico-militar,
ironicamente chamado de “Gabinete de Segurança Nacional”, e, para
apaziguar a oficialidade da Marinha, denunciou a subversão feita pela
ultra-esquerda, fiel à sua estratégia de não afrontar a hierarquia
militar. Somente 15 dias depois dos fatos retratou-se. Que poderia ter
ocorrido se fossem alentados todos os filhos da classe trabalhadora sob
uniforme a que rechaçassem as ordens golpistas e que o movimento
sindical e popular fizesse uma campanha de massas com esse eixo sobre a
base das forças armadas?
Por uma dessas casualidades da vida, os marinheiros antigolpistas, em
especial o principal dirigente, o sargento Cárdenas, sobreviveram, pois
já estavam presos e os meandros burocráticos das prisões da ditadura
fizeram com que não fossem assassinados e fosse ao exílio. Mais de 30
anos depois, um pesquisador chileno, Jorge Magasich, produziu um belo
livro, “Los que dijeron no”, em que conta essa história e entrevista os
marinheiros (há um site referido a isso)
Nos dias do golpe, juntamente com os bolsões de resistência, houve
fuzilamentos nos quarteis e houve resistência ativa na escola de
suboficiais da polícia, mas foram poucos, muitos menos dos que poderiam
ter sido se a política da UP tivesse sido distinta. Claro que sempre uma
derrota como essa parece inevitável e seria impossível provar com
certeza o contrário, mas o conjunto das condições da época, os vasos
comunicantes que havia entre um exército de conscritos e um movimento de
massas que ocupava como nunca antes o centro político do país não
poderiam deixar de influir para que as divisões surgissem. Mas para isso
faltou uma política por parte do governo e do conjunto da esquerda com
um tempo suficiente, e não os últimos chamados desesperados da esquerda
do PS e do MIR para que os soldados desobedecessem às ordens golpistas.
O poder popular
Esta foi a expressão chilena para um fenômeno recorrente nos grandes
processos revolucionários, que é o surgimento de organismos de poder
dual que se enfrentam à institucionalidade burguesa. A originalidade
chilena é que o termo poder popular consta no programa da UP, com uma
conotação de apoio ao governo e como tal foi reivindicado por Allende e
pela direita da UP, o PC e setores do PS. O proletariado e a esquerda
chilenos tinham uma enorme tradição política, fruto de quase um século
de atividade socialista quase ininterrupta, com seus altos e baixos. Por
isso, na vanguarda havia debates interessantes, ao calor dos
acontecimentos. Somente para citar, havia uma interpretação de que havia
um poder dual dentro do aparelho de Estado, entre o governo e as demais
instituições, numa grosseira deturpação do conceito tradicional do
poder dual como um poder independente e oposto ao estado e suas
instituições como se viu em tantos processos revolucionários. Mas, mesmo
os mais radicais dentro da UP e o MIR consideravam o governo como um
aliado vacilante, mas um aliado.
De novembro de 72 até o golpe houve vários foros em que se debateu o
poder popular, com a presença de seus dirigentes e/ou de dirigentes dos
partidos de esquerda. Basicamente esboçavam-se duas posições:
a de Allende e do PC que primeiro atacaram fortemente os cordões
industriais, mas frente ao seu fortalecimento acabaram reconhecendo-os e
aos comandos comunais formalmente, mas os concebiam como subordinados
ao governo. Os comunistas somente neles ingressaram nos cordões a partir
de julho de 73 e mesmo assim sem muita força.
A segunda posição era apoiada por quase todos os dirigentes dos
cordões e sustentava que eles deveriam ser autônomos do governo, mas não
a ele se opor. Nenhuma corrente expressiva se colocava a perspectiva de
organizar uma força política e/ou social fora da UP, inclusive para
melhor lutar contra os golpistas.
Uma polêmica dentro desse campo era entre os que defendiam a primazia
dos cordões industriais e os que defendiam os comandos comunais, como o
MIR, argumentando que estes agrupavam ao conjunto dos explorados e que
os cordões somente poderiam ter um papel sindical. Muito ainda está por
ser escrito sobre os detalhes do movimento real, de base, dentro da
revolução chilena, mas nos limitamos a observar que, mesmo sendo uma
posição correta em abstrato, não respondia à realidade daquele momento,
em que os cordões industriais tinham um peso muito maior. Na verdade,
estranhamente, esta posição do MIR coincidia na prática com a opinião
dos comunistas de integração dos cordões à CUT, desconhecendo o papel
claramente político, muito além do meramente sindical, que tinham
adquirido e como única alternativa real de exercerem um papel de
vanguarda social naquele momento. Uma das razões que possivelmente
influiu para essa posição do MIR foi a sua maior implantação nos setores
de “pobladores”, enquanto sua inserção no proletariado industrial era
bem reduzida ainda.
A falta de independência dos cordões e dos órgãos de poder popular
foi dramática quando se tratou de enfrentar o golpe que se preparava,
pois se aguardavam as iniciativas do governo, que nunca vieram...por
tudo isso, os cordões somente podem ser classificados como os mais
avançados organismos embrionários, potenciais, de poder dual, que
poderiam ter se desenvolvido como tais se o tempo permitisse o
amadurecimento das suas posições.
O mais próximo que se chegou a uma posição independente foi a carta da coordenação dos cordões industriais endereçada a Allendedias
antes do golpe, em que o tom já era de bastante distância Após
refletirem sobre o significado do programa e da eleição da UP, sobre as
concessões feitas à direita, enumeravam as medidas mínimas para lutar e
terminavam com essas palavras que consideramos serem o ponto mais
avançado a que ia chegando a vanguarda revolucionária chilena, mas que
infelizmente não teve o tempo necessário para amadurecer e se fazer de
massas. Outra poderia ter sido a história da classe trabalhadora e do
povo do Chile e da América Latina se isso tivesse ocorrido.
Dizia a carta:
“Nós lhe advertimos camarada, que com o respeito e a confiança que
ainda lhe temos, se não cumprir com o programa da Unidade Popular, se
não confiar nas
massas, perderá o único apoio real que tem como pessoa e dirigente e
que será responsável por levar o país não à guerra civil que está já
está em pleno desenvolvimento, mas ao massacre frio, planificado da
classe operária mais consciente e organizada da
América Latina. E [nós o advertimos] que será responsabilidade
histórica deste Governo, levado ao poder e mantido com tanto sacrifício
pelos trabalhadores, habitantes, camponeses, estudantes, intelectuais,
profissionais, a destruição e descabeçamento, quiçá a tal prazo, e a tal
custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno, mas também o
de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo Socialismo”.
No entanto, essa evolução era lenta, limitada ainda a uma vanguarda
ampla e dificultada pelas posições ambivalentes da esquerda do PS, que
procurava conciliar o apoio aos cordões e a necessidade de superar a
institucionalidade capitalista com a participação no governo, sem
colocar a necessidade de forjar uma alternativa à UP. Se em um primeiro
momento serviram de estímulo à mobilização, depois serviram como um
freio, uma justificativa elaborada desde a “esquerda”, impedindo os
trabalhadores de avançarem politicamente. Tinham a seu favor a enorme
tradição de legalismo dentro do movimento de massas do Chile, na crença
no que seus dirigentes lhe diziam sobre a imparcialidade dos militares
e, fundamentalmente a confiança em seus dirigentes, a quem atribuíam
muitas de suas conquistas. Sabemos como custou cara essa tradição...
Falta dizer algumas palavras sobre o MIR, visto como a única
alternativa à esquerda em relação à UP. Em que pese sua extrema
juventude teve um crescimento importante durante os anos do governo
Allende (calcula-se sua militância orgânica em cerca de 10 mil
militantes, ainda que seja difícil determinar com precisão este número).
No entanto, tinha limitações claras:
do ponto de vista político, não tinha uma estratégia clara frente à
UP, na verdade, suas caracterizações apostavam em pressionar o governo
para que radicalizasse suas posições. Isso explica o seu acordo
eleitoral e programático com a esquerda do PS para as eleições
parlamentares de 73 e para a atuação dentro do movimento de massas.
Do ponto de vista da organização para atuar no movimento de massas,
fez uma transição incompleta de um partido de quadros, militarista, para
um partido que aspirava conquistar influência de massas. Não conseguia
incorporar organicamente uma grande quantidade de militantes que se
sentiam atraídos por suas posições, pelos seus métodos internos bastante
burocráticos (seu congresso de 68 foi sucessivamente adiado até o
golpe, em que pese o acúmulo de novos problemas e debates criados pela
novíssima situação do país), o que aumentou a sua incoerência e as
tensões internas. Seu ultimatismo no movimento dificultou sua
estruturação no movimento operário (só teve 1,5% dos votos na eleição da
CUT de 1972), mantendo sua força essencialmente entre os estudantes e
favelados das cidades. Isso não nega, como no caso das demais
organizações políticas de esquerda do pais, a abnegação e heroísmo de
seus militantes.
No momento mais difícil, apareceu com toda a sua forca a principal
deficiência do processo chileno: a inexistência de uma corrente
revolucionária que tivesse acumulado as experiências e os quadros
durante o processo revolucionário para poder propor à vanguarda e às
massas a construção de uma alternativa à UP, com base na própria
experiência da luta de classes, e não de forma doutrinária ou
ultimatista. Uma alternativa à sua variante mais reformista, PC-Allende,
como às suas variantes mais à esquerda – a esquerda do PS e o MIR.