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(Millôr Fernandes)

sábado, 12 de outubro de 2013

Obamacare e liberdade

Sábado, 12 de outubro de 2013
Por Ivan de Carvalho
Um furdunço está se desenvolvendo nos Estados Unidos em torno de um programa federal de saúde que o presidente Barack Obama instituiu, com sua assinatura, em 23 de março de 2010, e que já deveria estar em execução, mas não está, pois apesar do apoio do Senado, onde a maioria é do Partido Democrata (o mesmo do presidente da República), a maioria republicana na Câmara de Representantes se opõe ao programa tal qual está formulado.
         O governo precisa aprovar o Orçamento da União e também aumentar o limite da dívida da União. O impasse sobre o Obamacare – apelido popular de Patient Protection and Affordable Care Act ou, numa nomenclatura simplificada, Affordable Care Act (ACA) – levou o Partido Republicano, pressionado por seu setor mais radicalmente liberal, o Tea Party, a vetar o Obamacare em sua formulação atual, sob pena de não aprovar o Orçamento da União e a elevação do limite da dívida pública. Exigem cortes de despesas no Orçamento, centradas sobretudo no Obamacare.
Sem orçamento o governo fica semiparalisado e sem a elevação do limite da dívida os Estados Unidos, logo terão de dar calote nos credores, desencadeando uma perigosa crise financeira mundial. Essa situação está levando a maioria dos políticos, analistas e a mídia a crucificarem os republicanos em geral e sua bancada na Câmara dos Representantes em especial, enquanto apedrejam o Tea Party. Sugere-se que estão cegos, que não compreendem a situação.
Os republicanos alegam que o Obamacare amplia de forma temerária o poder estatal, com a redução da liberdade e da autonomia individual. Para o segmento republicano Tea Party, os indivíduos são responsáveis por eles mesmos e têm direito ao que conseguem com o que produzem e não a esmolas do governo – o Obamacare, em um país em que não existe qualquer coisa do tipo SUS, é um programa de planos de saúde fortemente subsidiado pela União. A oposição republicana tem se voltado para o seguinte ponto: se a União está precisando aumentar o limite de sua dívida, então está precisando gastar menos e portanto tem que cortar gastos – e para isto o Obamacare seria o alvo ideal.
Isto parece ou é mesmo cruel, pois deixaria muitas dezenas de milhões de pessoas nos Estados Unidos sem qualquer cobertura de saúde e sequer com algo como o caótico e sucateado SUS, esse mata-mata que existe no Brasil com o apelido oficial de Sistema Único de Saúde.
Mas o Obamacare tem dois aspectos sinistros. Certamente muitos republicanos (além de outras pessoas e instituições) estão atentos a um deles. É o caráter impositivo, quase inacreditável, do Obamacare. A pessoa é obrigada, literalmente, a ter um plano de saúde. Caso não o contrate, será punida com multa. Dependendo da renda anual da pessoa, o Estado subsidiará o pagamento até o percentual máximo de 90 por cento.
Trata-se de uma generosidade (embora não com o dinheiro dos parlamentares e gestores, mas dos contribuintes), mas o que repugna aos republicanos (e, não vou negar, também a mim) é o caráter obrigatório que se introduz numa esfera totalmente privada, sujeitando as pessoas que resistam a punição.
O caráter impositivo, diria mesmo – sem medo de errar ou exagerar – autoritário ou ditatorial, do governo de Barack Obama é de criar a obrigação, para as pessoas, que serão obrigadas a filiar-se ao sistema Obamacare, de se submeterem à colocação de um chip subcutâneo com sua identificação, histórico e outros dados médicos. A previsão era de que isto valeria a partir deste ano, mas houve um adiamento para 2014. A alegação é de que o chip facilitaria as coisas no caso de atendimentos médicos, sobretudo em casos de emergência. Os médicos já teriam tudo no chip subcutâneo, poderiam dispensar todas ou quase todas as perguntas e grande parte das investigações através de exames. É verdade. Mas praticamente nenhuma diferença faria, para essa facilitação, se o chip, ao invés de subcutâneo, estivesse em um cartão (tipo cartão bancário) que a pessoa levasse na carteira.
Mas ninguém seria capaz de garantir que o chip (ou algum outro como ele, já que estabelecido o precedente, sucedâneos podem ser aceitos como rotina), logo ou mais adiante, não poderia viabilizar o rastreamento da pessoa, transmitir sinais vitais (dando conta se está viva ou morta), ser desligado remotamente e com isto produzir sabe-se lá que consequências.
         Há coisas no Obamacare muito mais preocupantes que os recursos financeiros que preocupam os republicanos.
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Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.