Terça, 24 de novembro de 2015
“O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do sistema Único de Saúde tem diminuído”
=============
Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos
“O Brasil, até o ano passado,
era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há
gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o
financiamento adequado”, afirmam os médicos.
Foto: prsouza.wordpress.com |
“O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde
para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o
pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência
dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm
planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir”,
dizem Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo os médicos, o estímulo do Estado brasileiro ao setor privado de saúde ocorre
desde meados da década de 1960, via incentivos fiscais. “Até hoje
incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde
e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos,
entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país.
Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma
rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento
de campanhas para os legislativos e executivos”, afirmam.
Na avaliação dos médicos, atualmente várias propostas políticas tentam desmantelar o Sistema Único de Saúde, como a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 451, de autoria do deputado Eduardo Cunha,
que “inclui, como garantia fundamental, plano de assistência à saúde,
oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na
utilização dos serviços de assistência médica” e a PEC 358/13, conhecida como PEC do ‘Impositivo’,
“que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a
ser destinado a partir de emendas (...). São diversas evidências de que
existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao
custo do desmantelamento do SUS”, pontuam. Segundo eles, “há um campo
político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que
pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940”.
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro reforçam que atualmente o “sistema público possível para o Brasil é o SUS,
não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta
que seus avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver
maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos
serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o
SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa
Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade
para todos”.
Gerson Salvador de Oliveira
é graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – USP, especialista em Infectologia pela mesma universidade.
Médico assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário
da Universidade de São Paulo e infectologista do Instituto de Medicina
Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da USP.
Pedro Carneiro é
graduado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto pela Universidade
de São Paulo e mestrado em Saúde na Comunidade pela Universidade de São
Paulo.
Confira a entrevista.
Foto: ocponline.com.br |
IHU On-Line - Evidencia no Brasil um movimento em que o Estado está
privilegiando planos de saúde em detrimento do SUS? Se sim, desde quando
isso vem acontecendo e por quais razões?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Desde meados da década de 1960 o Estado brasileiro estimula o setor privado em saúde,
via incentivos fiscais. Até hoje incentiva, através de desconto no
imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços
classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais
hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com
objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua
intensificação tem a ver com o financiamento de campanhas para os legislativos e executivos. O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do Sistema Único de Saúde tem diminuído.
IHU On-Line - Identifica uma tentativa de desmantelar o SUS? Quais são as evidências de que isso está acontecendo?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Garantir atenção integral à saúde de toda nossa população custaria muito, e o Brasil
nunca investiu num patamar que pudesse viabilizar plenamente esse
direito. Em tempos de crise há algumas iniciativas claras de
desmantelamento do que existe, como por exemplo, por parte do Governo
Federal: a PEC 86, que estabelece que os percentuais
mínimos para investimento em saúde devem ser calculados não mais sobre a
receita bruta do Estado, mas sobre a receita corrente líquida; a Lei de Diretrizes Orçamentárias em que os recursos previstos para custear a saúde pública não chegam ao mês de outubro de 2016; a “Agenda Brasil”, proposta pelo Senador Renan Calheiros que em seu texto original orientava “avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”; a proposta do deputado Eduardo Cunha: PEC 451
que “inclui como garantia fundamental, plano de assistência à saúde,
oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na
utilização dos serviços de assistência médica”; PEC "do Impositivo"
que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a
ser destinado a partir de emendas; a aprovação pela Câmara de Medida
Provisória, que visava anistiar dívidas bilionárias de multas das
empresas de medicina de grupo, vetada pela presidente Dilma. São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS.
“O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do sistema Único de Saúde tem diminuído” |
IHU On-Line - Que avaliação faz
dos SUS ao longo desses 25 anos? Quais foram os avanços e quais ainda
são as principais dificuldades do Sistema Único de Saúde brasileiro?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - A saúde a ser garantida como direito de todos e dever do Estado em nossa Constituição, através de um sistema único, provavelmente é a maior conquista cidadã da história de nossa República. Houve grandes avanços:
o Plano Nacional de Imunizações; a oferta de atenção primária à saúde,
principalmente através da estratégia saúde da família; o programa
nacional de HIV/AIDS; os serviços de transplantes e captação de órgãos; a
atenção pré-hospitalar a partir do SAMU; entre outros. Os principais obstáculos:
financiamento insuficiente, serviços com qualidade muito heterogênea,
dificuldade de acesso à atenção especializada na maioria dos municípios,
leitos de internação insuficientes, emergências lotadas, recursos
humanos com formação muito heterogênea e com vínculos dos mais variados
devido à "salada" que existe na gestão da saúde pública: há servidores
federais, estaduais e municipais admitidos por concursos, outros
contratados por autarquias, outros através de terceirizações,
organizações quer seja para formação quer seja para a carreira dos
profissionais de saúde.
IHU On-Line - A que atribui as
dificuldades do SUS, como a oferta insuficiente de serviços e os
déficits de leitos de internação, por exemplo? O problema é
orçamentário, de gestão ou outras razões? Quando se trata de
funcionamento do SUS, que pontos fundamentais devem ser considerados?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro -
Em resumo há problema de gestão, há problema de recursos humanos, mas o
financiamento é muito insuficiente. O Brasil, até o ano passado, era a
sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado.
IHU On-Line - Quais são as
principais contradições que percebe entre o financiamento do Estado ao
setor privado e ao setor do SUS?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - O setor privado
conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta
da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de
40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4
em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em
tratamentos que os planos se isentam de cobrir: atenção pré-hospitalar,
emergências, tratamentos para câncer, transplantes, medicamentos para
HIV e hepatites virais por exemplo, além de ações de vigilância e
imunizações para toda a população.
Ao SUS cabe, como diz o professor Ricardo Teixeira,
fazer muito mais com muito menos. Além do orçamento insuficiente, a
União continua oferecendo descontos no imposto de renda para serviços
privados e isentando de impostos grandes serviços privados classificados
como filantrópicos.
IHU On-Line - Que comparações faz entre o SUS e o sistema de saúde público de outros países da América Latina?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - O Brasil
é o único país da América Latina que oferece sistema universal de
atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros. Mas o
financiamento per capita é menor do que a média de países da América Latina.
“O Brasil é o único país da América Latina que oferece sistema universal de atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros” |
|
IHU On-Line - De que modo, além da questão do financiamento, a crise política pode impactar no SUS?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento
de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto
legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e
exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década
de 1940. Há disposição de tentar proibir a pílula do dia seguinte
também. O estatuto da família, a redução da maioridade penal, a iniciativa de cancelar o estatuto do desarmamento, caso essas propostas sejam aprovadas, caberá ao SUS atender às pessoas afetadas.
IHU On-Line - O que seria um sistema de saúde público possível para o Brasil neste atual momento?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - O sistema público possível para o Brasil agora é o SUS,
não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta
que os avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores
recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos
serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o
SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos.