Por
Roberto Amaral*
Escrevo
como beneficiário da Revolução de 1917, que desde o primeiro momento
extrapolou os largos limites territoriais e políticos herdados do
império czarista – dois séculos de domínio mongol, quatro de absolutismo
monárquico – fundado na repressão a mais brutal, na ausência de
direitos dos trabalhadores, fâmulos e párias a serviço de uma estrutura
social fundada em modos de exploração humana similares ao escravagismo
que compreendiam, inclusive, o castigo físico.
Levante
popular e de massas – camponeses, soldados, marinheiros, trabalhadores
dirigidos pelo leninismo –, lutando contra o mundo (ao tempo da guerra
civil, mal saída da Primeira Guerra Mundial, a Rússia sofreu a invasão
de 15 exércitos estrangeiros) a Revolução bolchevique conheceu êxito
surpreendente em país sem base industrial, mudou o curso da História,
para melhor, e suas conquistas permanecem atuais, muitas incorporadas
pelo patrimônio político da humanidade e mesmo assimiladas por governos
social-democratas.
Promoveu
os direitos das mulheres, instalou o primeiro sistema universal
(gratuito) de saúde, promoveu a educação pública (da creche à
universidade), habitação, transporte público de massa e o pleno emprego,
ainda sonhos brasileiros na segunda década do terceiro milênio.
Sua
influência sobre o mundo não se encerrou na noite de 26 de dezembro de
1991, quando a bandeira vermelha foi arriada pela última vez do mastro
do Kremlin e Gorbachev entregou o bastão a Iéltsin.
À
Revolução bolchevista devemos nossa própria sobrevivência: depois de
poupar a humanidade do totalitarismo nazifascista, ao derrotar a
Alemanha – ao preço da morte de 22 milhões de mulheres e homens,
soldados e civis soviéticos – livrou-nos da morte planetária,
dissuadindo a guerra nuclear perseguida pelos EUA e os países seus
tributários após a Segunda Guerra mundial.
O
esforço militar, científico e tecnológico desenvolvido pela URSS,
mesmo em prejuízo da qualidade de vida de seu povo (uma das raízes da
debacle), possibilitou a paridade nuclear que evitou, e tem evitado até
aqui, até quando não se sabe, a hecatombe com a qual a Guerra Fria
ameaçava destruir a Terra. Espectro, aliás, sempre presente enquanto a
paz depender dos interesses que movem o complexo militar-industrial que
governa os EUA – em guerra ininterrupta há mais de um século! –, ou
enquanto o futuro da humanidade depender da insanidade de líderes como
Donald Trump.
A
Revolução de 1917 – primeira grande tentativa de construção de uma
sociedade fundada na igualdade, primeiro projeto de abolição da
propriedade privada, promessa de um Estado dirigido pelos trabalhadores –
alterou definitivamente a geopolítica mundial, influenciou o pensamento
político-filosófico e detonou o colonialismo, o racismo e o apartheid,
abalando definitivamente as fontes de alimentação das velhas potências
europeias.
Vitoriosa
na Segunda Guerra, a URSS foi a parteira da descolonização da África e
da Ásia, ensejou e garantiu experiências como a cubana e foi decisiva na
libertação do Vietnã. Em síntese, não houve, no século passado, uma só
experiência de luta pela independência nacional que não tenha contato
com a cooperação, material, militar e política da URSS.
Seus
sucessos econômicos, sociais, científicos e militares transformaram-se
em instrumentos de luta ideológica e alimentaram em todo o mundo a
organização dos trabalhadores, abrindo caminho para os partidos
socialistas, trabalhistas e de esquerda, a que tiveram de responder a
socialdemocracia e as forças conservadoras, temerosas de que o exemplo
soviético, ganhando a consciência social, se reproduzisse em seus
países.
As
políticas sociais e econômicas do Ocidente capitalista foram obrigadas
a fazer concessões aos programas socialistas, como tentativa, afinal
bem sucedida, de administrar a luta de classes, quando crescia
planetariamente o movimento comunista.
No
seu rastro avançaram as políticas democráticas, socialistas e
progressistas de um modo geral, elevaram-se à ordem do dia a defesa da
dignidade humana, a luta contra as discriminações sociais, econômicas e
étnicas, os direitos de camponeses e trabalhadores, a liberdade
sindical, conquistas fundamentais como a jornada de oito horas, o
direito a férias e aposentadoria, o sufrágio universal e o voto feminino
e, principalmente na Europa, a defesa da paz.
Deve-se
ainda à Revolução e a essa emergência das ideias progressistas o
surgimento do que se viria chamar de ‘constitucionalismo social’,
marcando de forma decisiva todas as constituições políticas elaboradas
ou revisadas após 1917, inclusive as brasileiras a partir do texto de
1934.
Cessada,
porém, a ameaça, cessados seriam os direitos, cassadas as conquistas
que haviam sido assimiladas pelo Ocidente. Uma das muitas consequências
do colapso da URSS em 1991 é o desencadeamento, em escala mundial, de
ofensiva destinada a retirar ou reduzir os direitos dos trabalhadores e
assalariados de um modo geral, onda que atinge principalmente a Europa, e
chega até nós, aqui embalada pela hegemonia conservadora representada
pelo governo de fato de Michel Temer e sua base de apoio,
midiático-financeira.
O
que estamos assistindo, no Brasil, reproduzindo o avanço antissocial do
neoliberalismo vitorioso, não seria possível se os direitos agora
ameaçados ou cassados tivessem a sustentá-los um amplo e forte movimento
sindical, cujo declínio se deve maiormente à crise da ação e do
pensamento de esquerda, detonada com a autodissolução do império
soviético. Um de seus indicadores é a quase absoluta falência dos
partidos comunistas ocidentais e o recuo histórico da esquerda
socialista, subsumida, política e eleitoralmente, pela socialdemocracia
em trânsito para a direita.
Exemplo
paradigmático nos oferecem a Itália com o fim do Partido Comunista
Italiano e a França de nossos dias, com os suicídios dos seus Partido
Comunista e Partido Socialista. Os partidos comunistas, com raras
exceções, e o português pode ser uma delas, se autodissolveram, a
socialdemocracia optou pela direita, os trabalhistas se confundem com os
conservadores e todos renunciam ao debate político-ideológico. O
refluxo da esquerda socialista brasileira é apenas um tópico.
Não há mastro para a bandeira socialista, que havia sido o ponto aglutinador das lutas sociais do século passado.
Se
fracassou em seu projeto de construir a primeira experiência de governo
e sociedade comunistas, e o fim da URSS e a opção chinesa constituem
atestado definitivo, o grande feito da Revolução foi transformar na
segunda grande potência do mundo um país de economia agrária, quase
feudal, sem base industrial, destroçado pela Primeira Guerra Mundial e
pela guerra civil animada pelas potências ocidentais, sem
infraestrutura, com a produção agrícola em queda e a indústria aos
frangalhos.
Acrescente-se
que a revolução detonada em 1917 só se daria como estabelecida em 1921,
com a derrota da última brigada branca na Crimeia, para, poucos anos
passados, enfrentar a segunda invasão alemã, e na sequência o isolamento
– político, militar, econômico, científico – imposto pelos antigos
aliados mediante as mais variadas ações, compreendendo inclusive a
sabotagem.
O
Estado soviético, ademais de seus gravíssimos problemas internos, teria
que lidar, sempre, do primeiro ao último dia, com a hostilidade, a
agressão e o bloqueio político, econômico, científico, tecnológico e
militar das potências ocidentais. Para conter o ‘expansionismo
comunista’ foi criada, em 1949, a OTAN – Organização do Atlântico Norte,
a mais terrível e poderosa coalizão bélica jamais conhecida pela
humanidade, ainda hoje de pé e ameaçadora.
A
ofensiva militar, cobrando da URSS esforço acima de suas
possibilidades, foi, todavia, apenas uma das faces da guerra
anticomunista, não necessariamente a mais cruenta, pois a grande vitória
do imperialismo se dá no campo ideológico, mercê do monopólio da
informação e da sotoposição dos valores nacionais.
A
‘globalização’, projeto do capitalismo financeiro, caminha muito além
da internacionalização da economia e dos exércitos e das políticas de
defesa, pois, após fazer soçobrar as soberanias nacionais, instala a
guerra na paz, a ditadura do pensamento único, a unanimidade ideológica e
a adoção, mesmo pelas nações pobres, do quadro de valores éticos,
sociais, estéticos e políticos do capitalismo.
A
debacle, acionada sem que o Ocidente precisasse dar um só tiro de
garrucha, a interrupção da experiência do chamado ‘socialismo real’,
substituída pela concretude de um capitalismo selvagem, representa,
porém, como o outro lado da mesma moeda, uma catástrofe geopolítica
quando consolida a hegemonia econômica, militar, política e cultural de
uma só potência, imperialista e guerreira.
Talvez
ainda seja cedo para o julgamento dessa Revolução que representou para o
mundo a promessa da sociedade sem classes e nos legou um modelo de
Estado autoritário e burocrático. Como talvez ainda seja cedo para
explicar a sociedade russa de nossos dias e o contemporâneo refluxo dos
ideais libertários do socialismo que empolgaram o mundo da primeira
metade do século passado.
Roberto Amaral
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia